SOCIOLOGIA DA BUROCRACIA

Por ETCO

Autor: Paulo Moura, cientista político

Fonte: Diego Casagrande, 15/10/2007

Hoje em dia, a percepção do senso comum sobre a burocracia é consensualmente, de sinônimo de ineficiência; lentidão; procrastinação e corrupção. Nem sempre foi assim. A burocracia foi inventada para tornar eficiente a gestão e o funcionamento das organizações complexas da sociedade urbana e industrial nascente. Com o surgimento do trabalho especializado nas linhas de produção, a execução de tarefas antes feitas de forma individual; artesanal e em pequena escala, passou a ser executada por diversos indivíduos que dividiam entre si a realização de tarefas parciais e sincronizadas; feitas dentro de escalas de tempo cronometradas e através de procedimentos padronizados e seqüenciais.

A especialização do trabalho fragmentou as relações entre os indivíduos nas linhas de produção e demandou a articulação entre os mesmos para garantir a execução coordenada e seqüencial das funções especializadas, para viabilizar sua execução. Assim nasceram as inúmeras funções e profissões ligadas ao ramo da administração. A finalidade das estruturas burocráticas era a de conferir eficiência à produção e à gestão das empresas e do Estado.

A imagem que melhor representa graficamente a estrutura das organizações da sociedade urbano-industrial é a de um organograma em formato de funil invertido. O cérebro está no topo e é dele que partem as ordens para a base executar. Desde o topo os comandos escoam para o leque de canais subalternos em direção aos escaninhos horizontalmente alinhados na base da estrutura, A estes cabe realizar o que as mensagens oriundas da cúpula que planeja e decide ordenam, sejam elas de produção ou prestação de serviços.

As cúpulas dirigentes monopolizam as informações estratégicas e repassam comandos através de mensagens elipsoidais, determinando a execução de tarefas aos escaninhos inferiores do organograma, sem que os subalternos tenham conhecimento global do processo e do conjunto do projeto em execução pela organização como um todo. O acesso ao conhecimento e às informações estratégicas da organização ou ao conteúdo global dos projetos em execução é compartilhado de forma desigual com os escaninhos inferiores. As informações são distribuídas de forma controlada. Tal como as engrenagens de máquinas ou soldados de um exército, o funcionário executor não deve avaliar, criar ou criticar as ordens que recebe. Deve apenas cumpri-las.

Os conhecimentos requeridos dos “peões” são elementares, limitados e escassos. Espera-se deles apenas a execução repetitiva, sincronizada com seus pares e padronizada em seus procedimentos operacionais, de modo a viabilizar a articulação combinada, na forma e no tempo, das tarefas coletivas que resultarão num produto final. Esse padrão molda tanto a produção no chão da fábrica como as organizações de execução de serviços.

Visto como diagrama estático, o organograma é “perfeito” e foi levado ao estado da arte com a teoria taylorista da produção científica. Posta a serviço da intermediação das relações entre o topo que pensa e decida e a base que executa sem pensar, a lógica teórica assumiu outras formas. Ao invés de produzirem eficiência, as estruturas intermediárias do organograma produziram distorções cada vez mais críticas. No trajeto entre a cúpula que decide e a base que executa, as mensagens do comando percorrem tortuosos caminhos de um complexo labirinto, permeado por irracionalidades aparentes e obstáculos supostamente intransponíveis para quem desconhece a lógica da teia e necessita agilidade e eficiência na execução e nos resultados.

A racionalidade implícita à gestão dessas estruturas supõe que, pelas atribuições de planejar, gerenciar, fiscalizar e auditar as operações da organização, os segmentos burocráticos intermediários, integrados por funcionários mais qualificados, produzam eficiência na tramitação e execução de sua parte na cadeia de tarefas. No entanto, valendo-se da compartimentalização do organograma e da ocupação das posições estratégicas de filtragem e mediação das informações em circulação, e também, do controle das relações entre a cúpula que manda e a base que faz, a burocracia age como corporação orientada por seus próprios interesses na de preservação de posições e obtenção de vantagens. Aí se introduz outra lógica, em geral conflitante com os requisitos da agilidade e eficiência da organização como um todo na consecução de seus fins.

Os setores que exercem a função de mediação e filtragem das informações passam, então, a lutar pelo controle da maior quantidade possível de funções; escaninhos e funcionários subalternos e, como conseqüência, das informações que saem da cúpula em direção à base do organograma. Conflitos são introduzidos nas relações internas à organização, pois os membros da hierarquia disputam poder, selecionando e redistribuindo, ao seu critério, as mensagens e informações relacionadas aos comandos, com o intuito de valorizar suas posições de poder nas estruturas decisórias, ainda que em prejuízo dos fins da organização. Os mesmos métodos e comportamentos são adotados por diferentes corporações burocráticas em diferentes organizações. O poder do burocrata está relacionando à intermediação de processos decisórios, de alocação de recursos e de distribuição de informações. Inchar a organização com mais burocratas subalternos e com estruturas que consomem energia, tempo e recursos é, em geral, a solução apresentada pelos burocratas para os problemas causados, justamente, pelo excesso de burocracia.

O resultado desse processo, sob efeito cumulativo do tempo, introduz enorme carga de irracionalidade ao funcionamento da organização como um todo. As ordens da cúpula não se traduzem em resultados, ou, quando o são, geram aberrações distantes da intenção do emissor do comando. Ineficiência, desperdício e corrupção reproduzem-se em escala exponencial no seio das organizações burocráticas ao longo do tempo.

Viciados pela lentidão e pela lógica entorpecente da dinâmica da burocracia, os funcionários resistem às inovações; vêem suas posições ameaçadas por quem apresenta níveis de produtividade superiores à média e propõe mudanças visando aumentar a eficiência. A vida interna da organização e suas atividades meio tornam-se o centro das preocupações dos burocratas, que se mostram inflexíveis diante de dificuldades que requeiram criatividade e solução não previstas pelas rotinas e normas habituais, ainda que não vedadas explicitamente pelas regras da organização. Não obstante os conflitos intestinos, a burocracia age como uma corporação sem rosto na defesa de seus interesses, estabelecendo um padrão de comportamento constatado, invariavelmente, em todas as organizações modernas.

Max Weber, o visionário sociólogo alemão que viveu a virada do século XIX para o século XX, crítico competente do marxismo e criador do conceito de patrimonialismo, foi quem primeiro pesquisou o fenômeno da burocracia, sobre a qual desenvolveu clarividente teoria aqui sintetizada. Embora presente em quaisquer organizações complexas e que dempendem de lideranças especializadas, nas empresas privadas submetidas à competição pelo lucro e ao imperativo da sobrevivência no mercado, a existência de um proprietário permite controlar e corrigir as distorções mais rapidamente constatadas. No setor estatal, inexiste concorrência e o proprietário da coisa pública é um ente abstrato – o povo – e distante dos burocratas, comandados por gerentes que mudam a cada 4 anos. Além disso, o caráter público e político da função pública, assim como a proximidade constante do funcionário junto ao gestor político – que vive de votos – torna a cúpula que decide permeável às pressões corporativa da burocracia estatal,agravando as distorções que, sem isso, já prejudicam mesmo a eficiência das organizações privadas. A renda méida da população do Plano Piloto de Brasília é 30% superior à renda média do resto da população brasileira. Por que será?

O surgimento e o uso em escala das novas tecnologias de produção e de comunicação a partir da década de 1980 impuseram a necessidade de implantação de inovações revolucionárias aos gestores das organizações privadas. A automação do trabalho e a comunicação através de redes digitais possibilitaram a redução; ou mesmo a eliminação, das estruturas burocráticas das empresas, impondo a criatividade, a inteligência, a atualização constante do conhecimento, o espírito de iniciativa e a autonomia decisória, como pré-requisitos aos novos trabalhadores. Os gestores e “donos do negócio” foram desafiados a mudar suas relações com seus colaboradores, compartilhando poder, decisões e lucros como forma de superar o desafio da competição do novo sistema.

E o Estado burocrático e patrimonialista brasileiro, gerente dos recursos de nós surrupiados em troca de serviços devidos e não entregues, resiste à mudança e penaliza a sociedade que o sustenta com mais funcionários; mais burocracia, mais ineficiência e mais impostos.