Projeto de Lei no Senado prevê combate a devedor contumaz

No momento em que se avalia a implantação de um novo Refis, para a renegociação de dívidas das empresas, surge a discussão sobre a busca de medidas compensatórias.

Nesse sentido, há uma iniciativa pronta para ser votada pelo plenário do Senado Federal que irá permitir o combate ao devedor contumaz, que sangra os cofres federais na ordem de R$ 14 bilhões ao ano, só no mercado de combustíveis. É o PLS 284/17 que prevê entre uma série de medidas a distinção objetiva entre os devedores: o devedor eventual e o devedor reiterado (que não serão afetados pelo referido PLS) e o devedor contumaz, esse sim, deve ser combatido, pois, se estrutura dolosamente para não pagar os impostos devidos.

Para se ter uma ideia do passivo, também no setor de combustíveis, as dívidas ativas chegam a R$ 70 bilhões. O que corresponde, por exemplo, a 8% do PIB de Minas Gerais no ano passado.

O PLS 284/17 foi relatado pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES) e foi aprovado por diversas comissões e agora só depende do Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) para seguir adiante e ser pautado. A demora na aprovação desse projeto incentiva o devedor contumaz, prejudicando os cofres públicos e toda a sociedade.

Para o presidente do ETCO (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial), Edson Vismona, que acompanha a tramitação da pauta no Congresso, o grande desafio do sistema legal brasileiro é diferenciar o inadimplente do devedor contumaz. “O contumaz não é um contribuinte, ele é criminoso, pois pratica fraude no exercício de suas atividades. Já o inadimplente quer estar em dia, mas por circunstâncias diversas não conseguem arcar com suas obrigações tributárias, este sim, merece atenção do governo e estímulo para sua regularização, já o contumaz deve ser repelido”, afirma.

Refis contumaz: sucessão de programas prejudica o bom contribuinte

É inegável que o contribuinte brasileiro, pessoa jurídica ou física, enfrenta um verdadeiro emaranhado de leis, decretos, atos e regulamentos normativos relacionados aos tributos, o que dificulta a compreensão do intrincado processo tributário, gerando crescente insatisfação para os contribuintes que desejam cumprir suas obrigações, aumentando a insegurança jurídica que prejudica especialmente o ambiente de negócios e a atração de investimentos.

Estudo patrocinado pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), realizado pela consultoria internacional EY, demonstra que temos em discussão nas instâncias administrativas e judiciais, só em débitos federais, 3,4 trilhões de Reais. Ao se somar débitos nas esferas estaduais e municipais, as estimativas apontam para mais de 5 trilhões de reais!

A esse quadro insólito, que prejudica os bons contribuintes e também o erário, temos ainda uma carga tributária das mais elevadas em comparação com países do mesmo nível de desenvolvimento, onerando empresas e toda a sociedade. Pagamos muito e temos um baixo retorno em serviços. Uma situação anacrônica.

Essa realidade aumenta a inadimplência e, diante da permanente necessidade do Fisco conseguir aumentar a arrecadação, estimula a instituição de Programas de Parcelamentos de Débitos Tributários Federais, popularmente conhecidos como Refis. Não é sem razão que desde o ano 2000 tivemos pelo menos cinco dessas iniciativas em âmbito geral. Em média, a cada três anos temos um programa com esse perfil.

A sucessão de parcelamentos tem sido criticada por especialistas da área tributária. Entre outros argumentos, podem-se destacar: redução da arrecadação, com aumento do passivo tributário; ineficiência; desestruturação do sistema, estimulando a inadimplência na expectativa da aprovação de um novo parcelamento; desestímulo ao contribuinte que cumpre com suas obrigações; aproveitamento ilegítimo pelos que utilizam do não pagamento de tributos como modelo de negócios.

Sem aprofundar as críticas, o momento que vivemos, com a pandemia drenando recursos públicos, das empresas e pessoas, está em jogo a sobrevivência de toda a economia. Frente à tragédia que entra no segundo ano, a iniciativa do presidente do Senado Federal, de termos um novo programa de regularização tributária encontra terreno fértil, de fácil justificativa.

Um instrumento que pode servir aos dois lados da relação tributária — agilizar o pagamento de tributos, extremamente necessário para um alívio ao tesouro e melhorar a situação de contribuintes duramente impactados pelo abalo causado pela tragédia da covid-19.

Porém, como já aconteceu em outros Refis, é necessário não esquecer quem sempre está à espreita para se aproveitar de meritórios propósitos, de apoio ao contribuinte em dificuldades, para obter vantagens a fim de continuar a lesar o fisco e a concorrência leal. Trata-se dos chamados devedores contumazes, “espertos” que montam seu negócio estruturando-o para, dolosamente, nunca pagar impostos. Não é um contribuinte eventualmente em dificuldades ou que, enfrentando situação econômica mais grave, reiteradamente deixa de cumprir com suas obrigações. É contumaz, seu lucro altíssimo é resultado da evasão fiscal recorrente, corroendo a competitividade e a ética concorrencial, causando perdas bilionárias ao fisco e portanto, à sociedade. Essa estruturada inadimplência, só nos setores de combustíveis e de tabaco, acumula dívidas ativas de 100 bilhões de reais.

É crucial combater essa prática predatória. Com esse objetivo há o projeto de lei no Senado Federal (PLS nº 284/2017), pronto para ser votado, que define quem deve ser considerado devedor contumaz. Essa lei irá conferir maior segurança jurídica nas relações tributárias, diminuindo o espaço da atuação de ações organizadas de evasão fiscal continuada.

Assim, nesse momento dramático, a proposta de uma reestruturação de dívidas tributárias não pode ser um estímulo para o comportamento espúrio por parte de quem se aproveita de legitimas medidas para mais uma vez se locupletar.

O legislativo brasileiro deve atentar para essa realidade e não permitir que uma legítima iniciativa seja desvirtuada.

Por essa razão, a reabertura de mais um Programa Especial de Regularização Tributária (Pert) não deve incluir devedores que tenham sido excluídos de dois ou mais programas de parcelamento de dívidas tributárias.

Transação, reforma e divisão de devedores: saídas para o contencioso tributário

Enfrentar o descontrole do contencioso tributário brasileiro, que hoje já alcança magnitude equivalente a 73% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, segundo dados do Insper, precisa passar necessariamente por uma transformação profunda em inúmeras frentes do sistema tributário nacional.

Em webinar realizado pela Casa JOTA em parceria com Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) nesta sexta-feira (16/10), especialistas e autoridades elencaram algumas das prioridades que podem auxiliar na redução desses litígios.

Dentre elas estão a iniciativa da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional para transações tributárias, que só até agosto deste ano negociou R$ 28 bilhões em dívidas. Os palestrantes também frisaram a urgente necessidade de ampla reforma no tributária, assim como garantir que haja a separação do devedor contumaz do devedor eventual e do bom e do mau contribuinte.

Participaram do webinar João Henrique Grognet; coordenador-Geral de Estratégia de Recuperação de Créditos da PGFN; Breno Vasconcelos, advogado e pesquisador do Insper; Zabetta Macarini Gorissen, presidente executiva do Grupo de Estudos Tributários Aplicados (Getap); e Ana Amélia, ex-senadora.

Foi consenso, e não é novidade, que o grande e principal problema está na complexidade do sistema de cobranças de tributos. “Não existe país rico sem um modelo de jurídico que garanta previsibilidade e segurança. É impossível. E contencioso tributário é gerado na imprevisibilidade. Como que faz o contribuinte e empresário para navegar em um ambiente tão difícil de prever?”, afirmou Breno Vasconcelos.

Segundo o advogado, há alguns fatores que ampliam essa insegurança: possibilidade de retroatividade em novas interpretações, ausência de atos que registrem qual é a interpretação formal e oficial da nova norma tributária, ausência de processos de consulta eficaz, a excessiva duração dos processos, que hoje levam em média 19 anos para conclusão, e as incertezas decorrentes das novas tecnologias. “Esses são os indicados pela OCDE como fatores de insegurança jurídica e o Brasil gabarita todos eles”, apontou Vasconcelos.

A ex-senadora Ana Amélia citou como exemplo da complexidade na cobrança de impostos a realidade de um empresário brasileiro, Jorge Gerdau Johannpeter, do Grupo Gerdau, que tem uma siderúrgica no Rio Grande do Sul e outra igual no Canadá. “No RS, ele tem para a área tributária só para atender as mudanças quase diárias 250 profissionais. Para fazer o mesmo serviço no Canadá, ele precisa de apenas 3 pessoas”.

“Isso ilustra com uma clareza cristalina a situação que nós estamos vivendo. E o investidor estrangeiro, quando olha para nosso país, ele não vê só a questão de competição, mas também essas estruturas arcaicas que nós temos”, completou.

Para Zabetta Gorissen, nos último quatro anos, o Brasil intensificou o entendimento crítico em torno do contencioso tributário, com uma tentativa de aproximar contribuinte, governo, Congresso Nacional e Poder Judiciário. “Infelizmente, o contencioso virou um problema multifacetado, que afeta demais a todos”, disse.

Leia também: Contencioso tributário brasileiro ultrapassa 50% do PIB

Neste sentido, a presidente do Getap citou o desenvolvimento de mecanismos de coperative compliance, sempre com foco em aproximar o fisco do contribuinte para resolver com mais facilidade os problemas enfrentados. Zabetta também chamou atenção para “o grande marco” trazido pelas transações tributárias, que são um instrumento de renegociação para extinção do crédito tributário.

De acordo com dados apresentados por João Henrique Grognet, coordenador-Geral de Estratégia de Recuperação de Créditos da PGFN, a renegociação de R$ 28 bilhões em dívidas atingiu 77,4 mil contribuintes e 275 mil inscrições agrupadas em acordos.

“Me parece que foi muito acertado, com largas vantagens na Justiça fiscal. Essa Justiça é boa em qualquer hipótese, mas não estávamos encontrando essa clareza nos programas de Refis anterior. Afinal de contas você dá desconto a quem não precisa”, disse Grognet.

Segundo Zabetta, um ponto que precisa de melhoria na transação tributária envolve o fato de a Lei 13.988/20, que instituiu o programa, ter estabelecido um limite da transação do contencioso de pagamento de 50% do valor da dívida. “Colocar esse limite pode restringir um pouco o apetite da sociedade com relação a essa modalidade. Mas, como a gente sempre disse, vamos aguardar”.

Expectativas para a reforma tributária

O desafio de enfrentar o contencioso tributário é grande, mas na visão dos especialistas e autoridades, este cenário só terá de fato uma mudança a partir da reforma tributária.

“Nada disso vai ser resolver se a gente só trabalhar no contencioso. Precisamos trabalhar na origem. Contencioso é sintoma, não um problema por si só. Ele nasce de um sistema extremamente complexo, cheio de exceções. Uma reforma tributária substancial é essencial para o Brasil sair desse quadro disfuncional e contraproducente”, afirmou o advogado Breno Vasconcelos.

A princípio, essas mudanças não significam automaticamente que não surgirá um novo contencioso, uma vez que haverá uma legislação completamente nova em vigência. Na visão de Zabetta Gorissen, a sociedade deve dar uma “atenção absurda” para que as propostas em tramitação no Congresso Nacional saiam com o melhor texto possível e que eliminem a maior quantidade de contencioso possível.

“Se tiver contencioso, a gente tem que imediatamente voltar para o Congresso e arrumar. Não vamos fazer o que a gente faz hoje. Se não der certo logo de cara, tem que mexer na legislação”, disse.

Devedor contumaz

Para a ex-senadora Ana Amélia, autora do Projeto de Lei do Senado nº 284/2017 para caracterizar o devedor contumaz, quanto mais complicado for o sistema tributário de um país, mais fácil fica a sonegação.

“Neste projeto, estamos separando duas naturezas do contribuinte: um que tem como religião dever contumazmente, dever por ofício, dever por crença. É uma forma de sonegação. É um trampolim da sonegação”, disse, acrescentando que a intenção do PL é tratar de forma diferente contribuintes que têm comportamento diferente.

A ex-parlamentar citou que a caracterização desse tipo de devedor gerou uma briga dentro do Congresso e, por causa desse vazio legislativo, o Supremo Tribunal Federal (STF) entrou no debate. Em dezembro do ano passado, a Corte fixou tese no sentido de criminalizar o devedor contumaz, desde que se comprove dolo de apropriação.

“O STF fez um julgamento elevando a pena para o devedor contumaz de prisão. No nosso caso era uma multa, que tinha muito mais significado educativo do que a questão penal. A Corte deu um tratamento muito mais pesado do que aquele que a gente pretendia na lei”, afirmou Ana Amélia.

Cassação de registro de empresas tabagistas inadimplentes volta à pauta do STF

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) volta a discutir, nesta quinta-feira (17/9), a possibilidade de cancelamento de registro de empresas tabagistas pelo não pagamento contumaz de tributos. Trata-se de um dos assuntos mais importantes dentre os pautados pelo novo presidente da Corte, Luiz Fux, até o fim do ano.

Em setembro de 2018, o plenário do Supremo se debruçou sobre o tema. Oito ministros entenderam ser constitucional a cassação do registro, mas, na ocasião, eram três as linhas diferentes de fundamentação ou argumentação alinhadas a esta visão.

Diante da  complexidade da discussão num processo que tramita na Corte há 13 anos e já acumula oito volumes,  a ministra Cármen Lúcia, então presidente, adiou a proclamação do resultado. Agora, a expectativa é que o voto de Cármen Lúcia seja entendido como o médio e dê os contornos à proclamação.

A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 3952 chegou a voltar à pauta do plenário em 19 de outubro de 2019 e 12 de março de 2020, mas acabou não sendo apregoada. Diante dos seguidos adiamentos, a Corte passou a receber pedidos para que a proclamação fosse concluída logo.

A ação, proposta pelo Partido Trabalhista Cristão (PTC), contesta o “cancelamento sumário” pela Receita Federal do registro especial das empresas tabagistas quando houver inadimplência de tributos federais. O partido alegava que a restrição ao exercício de atividade econômica ou profissional lícita constituiria sanção política vedada pela Constituição, na medida em que não se admite a existência de “instrumentos oblíquos” para coagir ou induzir o contribuinte ao pagamento de tributos .

Em síntese, alegava que o artigo 2º do Decreto-Lei nº 1.593/77, com a redação dada pela Lei 9.822/1999, violaria os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência, da liberdade de iniciativa e da proporcionalidade. Segundo o partido, a sanção imposta às empresas de cigarro não atingiria o fim almejado, que é o pagamento de tributo ou de contribuição.

Edson Vismona, presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), que é amicus curiae na ação, defende que, na verdade, a cassação é medida adequada para aqueles que, segundo ele, estruturam um empreendimento com o fim de lesar o Fisco para lucrar. Na medida em que assim agem, não se deveria contar com uma possibilidade de recuperação do imposto devido.

“Tem devedores contumazes com dívidas de milhões. A ação corrosiva do devedor contumaz fica muito clara. E não se pode mais protelar. E esse é o verbo preferido do devedor contumaz. ele existe para protelar, não ter decisão, cassação e ele continuar livre e solto, seguir sonegando. A cassação é importante porque impede a continuidade de um delito criminoso e que afeta toda a concorrência”, enfatiza Vismona.

Devedor contumaz é a empresa que declara possuir uma dívida tributária, mas de forma reiterada e premeditada não age para quitá-la. Como o empresário não sonega, apenas não paga o imposto devido, em tese, não comete um crime. Mas, deixa a concorrência para trás, já que o não pagamento dos tributos impacta positivamente o preço dos produtos, que ficam artificialmente mais baratos.

O trabalho para recuperar os montantes devidos é, segundo Vismona, hercúleo. E, com o tempo, tende a ficar ainda mais dificultado. “É um processo contínuo para o Fisco. A cassação não impede que a ação se repita, porque esses grupos abrem novos CNPJs, têm uma estrutura em torno disso. Mas temos de cercá-los, diminuir o espaço que tem.”

A definição final da ADI 3.952 consolida um precedente importante e, na visão do ETCO, fortalece a atuação do Congresso para legislar sobre o combate aos devedores contumazes. Dois projetos de lei em tramitação no Congresso contêm critérios para detectar e punir empresas que se valem desta prática: o PLS 284/2017 e o PL 1646/2019. O primeiro, por exemplo, diferencia o devedor contumaz do eventual — justamente uma das preocupações de quem acompanha o debate. Mas, no Parlamento, a discussão está parada.

O advogado constitucionalista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Gustavo Binenbojm atua na causa pelo Sindicato da Indústria do Fumo no Estado do Rio Grande do Sul (Sindifumo-RS). De acordo com ele, “a cassação se dá diante da circunstância especial de que essa é uma indústria que a tributação é tão elevada que não basta o Fisco ter à sua disposição os instrumentos tradicionais para cobrança, penhora de bens”.

Nesses casos, avalia Binenbojm, o que se tem é a constituição de empresas que vivem da sonegação fiscal e “por meio dela distorcem o mercado porque oferecem valores muito inferiores aos economicamente viáveis para uma competição justa”.

Desta forma, o dano comercial provocado pela ação é irreversível. Nesse contexto, o fato não se enquadraria na jurisprudência do Supremo de não permitir o que se chama de sanção política. Como regra, não se permite que haja efeitos extrafiscais para o não pagamento de tributo. Mas, neste caso, o entendimento é o de que o Estado não dispõe de outros meios para combater a prática.

“O Direito funciona a partir da realidade. Não é uma abstração filosófica. O argumento de que se fechar a empresa, aí mesmo é que não vai ter como pagar não se coloca com empresas que abrem e fecham e criam novos CNPJs para praticar o mesmo ilícito. A única forma de estancar a sangria e evitar novos danos é impedir a continuidade da ação”, disse.

Binenbojm lembra o caso em que o Supremo autorizou a prisão por dívida de ICMS declarado, mas não pago. “Agora não envolve privação à liberdade. Mas o direito de a pessoa praticar atividade econômica ou não. Se o STF validou a prisão, muito mais grave, por maior razão deve validar a cassação do registro de empresas com intenção inerentemente ilícita”, ressalta.

No fim de 2019, o plenário do Supremo, por sete votos a três, definiu a tese de que o contribuinte que deixa de recolher o ICMS pratica crime desde que haja dolo e de forma contumaz. Na ocasião, a Corte julgou o RHC 163.334 impetrado pelos proprietários de lojas de roupas em Santa Catarina denunciados por não recolher ICMS entre 2008 e 2010. Venceu o voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, que incluiu o critério da contumácia para a construção da tese proposta — alterando a sugestão inicial, sem a expressão.

As correntes de voto

O julgamento teve início em 2010 e foi suspenso após pedido de vista de Cármen Lúcia. Na ocasião, o relator, ministro Joaquim Barbosa, votou pelo provimento parcial da ADI, para conferir aos dispositivos normativos impugnados interpretação conforme a Constituição Federal, estabelecendo as seguintes condições para que a cassação do registro das empresas aconteça: a análise do montante dos débitos tributários não quitados; o atendimento do devido processo administrativo tributário na aferição da exigibilidade das obrigações tributárias e o exame do cumprimento do devido processo legal para aplicação da sanção.

Cármen Lúcia acompanhou Barbosa. Segundo a ministra, essa interpretação “equaliza os princípios da livre iniciativa econômica lícita, da livre concorrência, conciliando com a garantia do devido processo legal tributário e da inafastabilidade da jurisdição, com o dever do contribuinte de cumprir suas obrigações tributárias”. Acompanharam esse mesmo entendimento a ministra Rosa Weber e o ministro Celso de Mello.

O ministro Alexandre de Moraes defendeu que a empresa deve continuar funcionando até que o secretário da Receita Federal julgue o recurso por ela apresentado. Assim, ele votou no sentido de excluir a expressão “sem efeito suspensivo” do parágrafo 5º do artigo 2º da norma, mantendo o restante da lei. Segundo o ministro, a norma, com as alterações feitas pela nova legislação (Lei 12.715/2012), prevê as condicionantes propostas pelo relator da ação. Os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes acompanharam a corrente aberta por Moraes.

Uma terceira linha foi aberta por Fux. Ele afirmou que a opção do legislador deve ser obedecida e votou pela improcedência do pedido. “Se o legislador entendeu que a medida tem que ser severa, ele tem expertise melhor do que a nossa para saber se um efeito suspensivo não posterga uma atividade ilícita”. Além disso, para Fux, a medida do cancelamento do registro não impede de modo definitivo a atividade econômica da empresa, que poderá ser estabelecida desde que cumpridas as exigências legais. “A liberdade de iniciativa quando exercida de forma abusiva deixa de merecer a tutela do ordenamento jurídico”, concluiu.

Único a votar pela total procedência do pedido do PTC, e consequentemente contra a constitucionalidade da cassação dos registros das empresas, o ministro Marco Aurélio ressaltou que a norma impugnada compele a empresa devedora do tributo, não importando o valor devido, à satisfação do débito tributário. “O preceito não se refere a devedor eventual, reiterado ou devedor contumaz, não há distinção. Contenta-se o dispositivo atacado, para chegar-se a esse ato extremo da cassação do registro, com o inadimplemento puro e simples”, disse.

Os ministros Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso se declararam impedidos e o ministro Luiz Edson Fachin não votou por ter assumido a cadeira de Barbosa.

Devedor contumaz: falta de lei específica mantém prática sem punição

A lei brasileira não tem uma definição sobre o que é um devedor contumaz. Por isso, o combate aos sonegadores criminosos sempre esbarra na capacidade de impor sanções àqueles que adotam a prática de forma sistemática para ter vantagens concorrenciais. Os setores nos quais há mais devedores contumazes — que deixam de pagar impostos propositalmente — são os de combustíveis, cigarros e bebidas, altamente regulados pelo Estado.

Dois projetos de lei em tramitação no Congresso contêm essas definições sobre a figura do devedor contumaz: o PLS 284/2017 e o projeto de lei 1646/2019.

Para especialistas ouvidos pelo JOTA, definir de forma clara o que caracteriza um devedor contumaz é fundamental. “O devedor contumaz se aproveita para se esconder atrás de um monte de questionamentos jurídicos”, afirma Guilherme Barranco, sócio do escritório Barranco Sociedade de Advogados e ex-conselheiro do Carf. “Quanto menos precisos são os critérios, mais ele pode se opor no juízo para dizer que ele não é um devedor contumaz.”

O PLS 284/2017 define devedor contumaz como aquele que atua no campo do ilícito, “trata-se de criminoso, e não de empresário, que se organiza para não pagar tributos e, com isso, obter vantagem concorrencial”.

O presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), Edson Vismona, considera o PLS 284/2017 o melhor projeto para combater o devedor contumaz. “Ele traz a diferença do que é um devedor contumaz e um devedor eventual e dá segurança jurídica para o uso do termo ‘devedor contumaz’”, explica. “Segurança jurídica é fundamental e a lei vem justamente nesse sentido. O projeto de lei está pronto, mas parado, esse é o problema”.

O parecer mais recente, de 2018, feito pelo ex-senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), estabelece medidas para combater o devedor contumaz nas esferas federal, estadual e municipal. Como exemplos de possíveis sanções aos infratores, o parecer cita: suspensão ou cancelamento da inscrição fiscal; perda do registro para funcionamento; interdição do estabelecimento; aplicação de regimes especiais de fiscalização e de arrecadação. Atualmente a relatoria do projeto é do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

“A lei é um bom passo, porque hoje o ambiente é sem definições, nebuloso. E tudo o que é nebuloso nesse ambiente de alta tributação esses devedores contumazes usam para seu benefício”, destaca Luciano Godoy, sócio do LUC Advogados, árbitro e advogado especializado em contencioso.

PL 1646/2019

Na Câmara dos Deputados tramita um outro projeto de lei, o PL 1646/2019, que tem uma amplitude menor em relação ao texto do Senado. “O 1646 está sendo chamado de projeto do devedor contumaz. Mas são quatro artigos que falam do devedor contumaz e o resto do projeto fala da modernização da cobrança da dívida ativa da União”, diz o advogado tributarista Guilherme Barranco.

O projeto de lei define devedor contumaz como “aquele cuja atuação extrapola os limites da inadimplência e se situa no campo da ilicitude, com graves prejuízos a toda sociedade”. O texto estabelece ainda que a inadimplência “substancial e reiterada” de tributos ficará configurada quando constatada a existência de débitos de valor igual ou superior a R$ 15 milhões por um ano, em nome do próprio devedor ou de pessoa integrante do grupo econômico ou familiar. “Na esfera tributária, principalmente com empresas maiores, é muito fácil ter débitos acima de R$ 15 milhões”, pontua Barranco.

Supremo

No ano passado, o plenário do Supremo Tribunal Federal, por sete votos a três, definiu a tese de que o contribuinte que deixa de recolher o ICMS pratica crime desde que haja dolo. Na ocasião, a Corte julgou o RHC 163.334 impetrado pelos proprietários de lojas de roupas em Santa Catarina denunciados por não recolher ICMS entre 2008 e 2010.

A tese fixada foi a de que “o contribuinte que de forma contumaz e com dolo de apropriação deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente de mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º inciso II da lei 8137/1990”. Essa lei define os crimes contra a ordem tributária. O inciso citado diz que constitui crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher os cofres públicos”.

O diretor titular do Departamento Jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Hélcio Honda, alerta que é preciso cuidado na definição de devedor contumaz. “A figura do devedor contumaz é perniciosa, mas ela tem que ter uma definição cautelosa. Você precisa ter um outro elemento além do inadimplemento”, diz. “E qual é o outro elemento? É a figura dolosa de não fazer o pagamento do tributo, o desejo de prejudicar o mercado. A questão subjetiva do dolo é muito importante”.

Como age um devedor contumaz

O devedor contumaz se utiliza da lentidão para ter dívidas executadas e da possibilidade de questionar cobranças tributárias para ganhar tempo e obter altas taxas de retorno. “A empresa se estabelece e já se estrutura para não pagar imposto, porque vai ter uma vantagem competitiva ilegal, uma margem de lucro muito alta e vai inibir a concorrência leal”, diz Edson Vismona, diretor-presidente do ETCO. “É o que ocorre nos setores mais tarifados, de combustíveis, de cigarros, de bebidas.”

O advogado Luciano Godoy explica também que esses produtos são mais difíceis de serem fiscalizados: “Eles [os devedores contumazes] vão em produtos que são de consumo rápido. Cigarro e combustível, por exemplo, você usou e não há mais rastro do crime. Ninguém vai ser devedor contumaz, por exemplo, fazendo geladeira e televisão”.

Com parcelamentos de tributos e questionamentos de cobranças, uma empresa consegue operar sem problemas por até cinco anos. “Uma discussão de parcelamento pode levar três, quatro anos. Na via judicial, vai depender. Há discussões de teses que podem levar até quatro ou cinco anos”, diz Gustavo Amaral, sócio responsável pela área tributária na Paulo Cesar Pinheiro Carneiro Advogados Associados. “E isso não necessariamente é linear, porque pode surgir um programa de parcelamento e quebrar essa sequência.”

Conteúdo especial: A luta contra o devedor contumaz de tributos

No setor de combustíveis, a figura do devedor contumaz se concentra na venda de etanol, que tem tributação dividida no refino e na distribuição, o que facilita a fraude.

O começo de tudo isso são empresas de fachada, com o discurso de bom cristão, falando para a ANP que estão começando com capital mínimo”, explica Carlo Faccio, diretor do Instituto Combustível Legal. “Em paralelo, começam a fazer vendas com operações interestaduais e a acumular dívidas. Só que até a Fazenda [do estado] identificar o não pagamento, há uma demora de dois a três anos.”

Depois desse período, quando há caracterização de devedor contumaz, as secretarias de Fazenda não conseguem exercer o direito de cobrança das empresas, que costumam não ter patrimônio e são registradas com capital mínimo.

Isso ocorre bastante com distribuidoras, que dependem de pouco capital para operar. “O débito não é cobrado, então tudo aquilo que a empresa deixou de recolher ao longo do tempo vira um lucro em detrimento do Fisco e dos competidores”, diz o advogado Gustavo Amaral.

Para continuar na atividade, outras empresas são abertas para fazer o mesmo, só que com um novo nome e registro. “Chega uma hora em que a Receita Federal toma uma atitude, suspende a atividade. Mas ele [devedor contumaz] já, paralelamente, criou um outro CNPJ, e simplesmente pula de uma empresa que vai abandonar, passa para outra e segue seu negócio”, explica Edson Vismona, do ETCO.

Os efeitos negativos do devedor contumaz são contraídos pelo Estado, que arrecada menos, e pelo mercado do setor em questão.

“O efeito sobre a concorrência é uma disrupção do que seria a concorrência natural daquele mercado”, destaca Eduardo Frade, sócio do VMCA e ex-superintendente do Cade. “Gera um desincentivo à entrada de novos concorrentes, além de uma série de saídas, com uma concentração maior do mercado”, diz. “Também há um efeito de seleção adversa, um efeito em que acaba se premiando os agentes que agem contra as regras e punindo aqueles que agem de acordo com as regras.”

No caso dos combustíveis, o preço final da gasolina chega a ser R$ 0,90 menor por litro em postos que comercializam produtos derivados de cadeias irregulares. No etanol, a variação chega a ser de R$ 0,51, de acordo com estudo feito pela consultoria Boston Consulting Group (BCG).

Matéria publicada em 31/08/2020 no Portal Jota, na sessão Jota Discute, que tem o apoio do ETCO.

 

“Vamos trabalhar contornando o pântano”

O sistema tributário brasileiro precisa de mudanças que valorizem os bons contribuintes, combatam os devedores contumazes de impostos e corrijam problemas específicos de setores que sofrem concorrência desleal de natureza tributária, como os de cigarros, bebidas e combustíveis. Esses foram os principais pontos defendidos pelo presidente executivo do ETCO, Edson Vismona, no seminário Tributação no Brasil.

Ele também recordou a participação do ETCO na aprovação e implementação de projetos importantes de combate à sonegação fiscal no País. Citou a implantação de sistemas de controle físico da produção de bebidas e cigarros, a aprovação do artigo 146-A da Constituição, que autorizou tratar de forma mais dura contribuintes que utilizam vantagens tributárias ilícitas contra seus concorrentes, e a criação do Índice de Economia Subterrânea, que acompanha a evolução da economia informal no Brasil desde 2003.

Vismona lembrou ainda os dois manifestos que o ETCO elaborou, com propostas sobre tributação e segurança pública, e que ele entregou pessoalmente aos principais candidatos às eleições presidenciais em 2018.

A seguir, algumas propostas que ele defendeu em sua palestra:

Contornar o pântano

“Nas discussões no grupo tributário do ETCO, eu me lembrei da orientação que Abraham Lincoln dava aos seus generais na Guerra Civil Americana: ´Senhores, se depararem com um pântano, não entrem nele, deem a volta´. Quando ouço os debates atuais sobre reforma tributária, me vem essa imagem. Isso pode ser um pântano, vamos trabalhar contornando o pântano, porque, quando entramos nessa ideia da reforma, todo mundo pensa: ´vai diminuir a carga tributária´. Mas sem reformar o Estado?”

“Ninguém quer perder. O Estado não quer perder, a União não quer perder, o Município não quer perder, nós não queremos perder, as empresas, os setores. Aí você caminha para um jogo do ´perde você, eu não´. Ou seja, cada um tem uma reforma tributária na cabeça. Diante desse quadro, a ideia do pântano fica cada vez mais clara.”

Arbitrariedades do fisco

“Nós contribuintes queremos estar em dia com as nossas contribuições perante o fisco e encontramos todas as dificuldades. Somos o país que mais gasta tempo para cumprir as obrigações do fisco. Nós trabalhamos para o Estado. E o Estado fica olhando: ´Errou, tome multa, 150% de multa e eu vou te levar para a Justiça Criminal´. E aí surgiu essa máxima dos contribuintes corretos: ´eu não devo, eu nego, mas eu pago´. Um dos nossos associados, diante da ameaça de levar uma autuação criminal, pagou, entrou na Justiça e, depois de alguns anos, ganhou. Olha o ônus disso: pagou algo que não devia! E teve que ir para a Justiça para discutir.”

O que o ETCO defende

“Nós temos propostas: um programa de desburocratização. Já existe um projeto de lei complementar, foi discutido em nosso grupo tributário, com ênfase num cadastro fiscal único, na simplificação dos processos de abertura e fechamento de empresas, isso está ocorrendo agora com a MP da Liberdade Econômica; eliminação da exigência de certidão negativa; compensação universal de tributos; consolidação anual da legislação; e fixação de prazo para respostas, porque a administração tributária não tem prazo, nós temos.”

“Alguns PLs que nós estamos sugerindo: uma reforma radical do processo tributário, já existem duas PECs que estão sendo discutidas. Fixação de normas gerais processuais tributárias, com integração entre processo administrativo e judicial. Reestruturação dos órgãos do contencioso administrativo fiscal. Monofasia do ICMS sobre combustível, conforme prevê a Constituição.”

Frear o contrabando de cigarro

“Nosso mercado está sendo entregue ao contrabandista. Hoje, 54% dele está nas mãos do contrabando. Houve aumento desproporcional nos últimos quatro anos. Já no ano passado, a arrecadação foi menor que a evasão fiscal. Por que disso? No Paraguai, o imposto sobre cigarro é de 18%, no Brasil, de 70% a 90%. A diferença de preço corresponde à metade. A classe de baixa renda só compra produto contrabandeado. O crime organizado já ocupou esse espaço. Ele se financia com esses bilhões que são sonegados. Temos que reprimir as organizações criminosas, mas precisamos olhar a demanda. A própria polícia fala isso: não adianta, só pela repressão, nós não vamos mudar esse quadro. Nossa proposta é manter a carga tributária, mas mudar a distribuição dos impostos: aumenta-se o tributo das marcas premium e cada empresa cria uma marca de confronto com imposto menor para ocupar o espaço do contrabando. É a única proposta que acreditamos ser factível neste momento. E nós queremos avançar com ela, porque senão as projeções já mostram que, no ano que vem, o mercado já estará 60% nas mãos dos contrabandistas, com viés de alta.”

Combate aos devedores contumazes

“O devedor contumaz de tributos estrutura o negócio para não pagar imposto, ele ganha dinheiro não pagando imposto, ele corrói a concorrência não pagando imposto, ele procura discutir em todas as instâncias administrativas e judiciais, de todas as formas. E ele transmite a imagem de que é uma vítima, quer se confundir com um devedor eventual de tributos.  Ele usa essa máxima: ‘Devo, não nego e não pago’. Quando o fisco consegue finalmente chegar nele, já não existe mais a empresa, já fechou, é algo que vai simplesmente se perder. São bilhões de reais no setores de bebidas, de tabaco e de combustíveis. A nossa proposta é o PLS 284/2017 que está tramitando no Senado. É o outro lado da moeda: para o devedor contumaz, nós queremos que o fisco tenha mecanismos efetivos de cobrança e que possa utilizar esses mecanismos para evitar que o passivo cresça de forma absolutamente insustentável.”

Controle físico de bebidas

“O controle físico de bebidas foi suspenso pela Receita Federal. Houve uma grossa corrupção na operação e o governo decidiu jogar a criança junto com a água do banho. Em vez de manter, aperfeiçoar e acabar com a corrupção, preferiram encerrar o sistema, e isso já tem efeitos perversos para a concorrência no setor de bebidas.”

Por que o Senado precisa aprovar o PLS 284/17?

O Brasil precisa acabar com a famigerada indústria dos devedores contumazes de tributos. A oportunidade de realizar esse feito está hoje nas mãos dos 81 senadores do País, mais precisamente na votação do Projeto de Lei do Senado 284/2017, que autoriza a criação de regras mais duras contra essa figura perversa que corrói o ambiente de negócios e a arrecadação de impostos do Estado brasileiro.

Devedor contumaz é o nome dado a um tipo defraudador que monta sua empresa com o propósito de não pagar imposto. Ele usa essa vantagem ilícita para praticar preços abaixo do custo e ganhar mercado rapidamente. Além disso, sua estratégia consiste no uso de artimanhas para prolongar ao máximo os processos na Justiça, ao mesmo tempo em que desvia os lucros para outras atividades, mantendo seu negócio registrado em nome de “laranjas”. Quando o Estado vence o processo em última instância, não consegue cobrar a dívida e os criminosos recomeçam o mesmo esquema.

Os devedores contumazes agem sobretudo em segmentos de alta tributação. No setor de combustíveis, seus débitos já ultrapassam R$ 60 bilhões; no de tabaco, superam R$ 32 bilhões; no de bebidas, R$ 4 bilhões. Apenas nessas três áreas são mais de R$ 96 bilhões, cerca de 10% da economia anual prevista com a reforma da Previdência.

Sua concorrência desleal inviabiliza a atuação de empresas que recolhem seus tributos corretamente e afasta investimentos. Ela foi apontada como uma das causas da decisão de grandes grupos multinacionais do setor de distribuição de combustíveis de deixarem o Brasil.

E por que tem sido tão difícil acabar com essa praga no País? Basicamente, porque o sistema legal brasileiro não diferencia o devedor contumaz de outros tipos de devedores e os mal-intencionados acabam se aproveitando de mecanismos de proteção que existem para garantir os direitos legítimos dos devedores de boa-fé.

É importante ressaltar que o problema aqui não é simplesmente o dever imposto.  Toda empresa está sujeita a passar por momentos de dificuldade e ficar sem dinheiro em caixa para pagar impostos ou outras dividas. Por vezes, pode ocorrer de deixar de recolher devidamente os tributos, por um período, para futuramente colocar as dívidas em dia. Mas essa compreensão não pode ser aplicada ao devedor contumaz.

O artigo 146-A da Constituição Federal, aprovado por emenda constitucional em 2003, autorizou o Estado a criar regimes especiais de tributação e fiscalização para casos que provocam desequilíbrios concorrenciais, condicionando sua adoção à aprovação de lei complementar especifica pelo Senado Federal. É esse o propósito do PLS 284/2017, que tramita na Casa há dois anos, foi aprovado nas Comissões de Assuntos Econômicos e de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor, e está pronto para ir a plenário.

O PLS faz distinção objetiva entre os três tipos de devedores: o devedor eventual, para o qual nada muda, o devedor reiterado, que também continuará contando com as atuais proteções legais desde que não utilize a vantagem tributária para praticar concorrência desleal, e o devedor contumaz, alvo da lei.

 “Trata-se de criminoso, e não de empresário, que se organiza para não pagar tributos e, com isso, obter vantagem concorrencial, entre outras. Para tanto, viola sistematicamente o ordenamento jurídico, praticando inúmeros ilícitos, comumente mediante a utilização de laranjas, registro de endereços e sócios falsos, possuindo, invariavelmente, patrimônio insuficiente para satisfazer obrigações tributárias, trabalhistas etc.”

O objetivo do PLS 284/2017 é interromper rapidamente a ação criminosa dos devedores contumazes. O foco é a defesa da ética concorrencial e da legalidade, fundamentais para o investimento empresarial e o desenvolvimento econômico. “Uma vez apurada a contumácia da conduta, esta deverá ser reprimida, de forma rigorosa e exemplar, mediante sanções jurídicas que impeçam a continuidade das atividades do agente (interdição do estabelecimento, cassação de inscrição no cadastro de contribuintes), de preservar o Erárlo e o mercado, que tem na livre concorrência um de seus princípios fundamentais, como elo indissociável da livre iniciativa.”

O projeto enumera uma série de medidas que poderão ser adotadas especificamente contra os devedores contumazes, como a manutenção de fiscalização ininterrupta no estabelecimento; o controle especial do recolhimento do tributo, de informações econômicas, patrimoniais e financeiras; a instalação compulsória de equipamentos de controle de produção, comercialização e estoque; entre outras.

O texto em tramitação limita inicialmente o alcance da lei aos setores de combustíveis, tabaco e bebidas, que são os mais afetados pela concorrência desleal dos devedores contumazes, e tem o apoio do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) e das principais entidades representativas desses segmentos.

O tema é urgente. O Brasil não pode mais permitir que agentes económicos desonestos continuem destruindo o ambiente de negócios. O lucro por meio de uma prática ilícita prejudica todos os brasileiros que dependem dos serviços públicos financiados por impostos. A solução está com o Senado Federal.

Programas de conformidade podem elevar concorrência em setores muito tributados

Combustíveis, cigarros e bebidas estão entre as áreas mais afetadas por devedores contumazes

Os programas de conformidade tributária desenvolvidos pelo governo  para endurecer a fiscalização contra contribuintes com maior risco de evasão fiscal afetam principalmente setores econômicos que sofrem maior incidência de tributos. Entidades apontam que nos setores de combustíveis, cigarros e bebidas, por exemplo, há empresas que deixam de pagar tributos como estratégia de negócios para baixar artificialmente os preços e concorrer pela preferência do consumidor de forma desleal. Além dos benefícios tributários, concentrar a fiscalização nos devedores contumazes também melhoraria a concorrência no mercado.

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