A travessia da reforma tributária

Enfim aprovamos a reforma tributária, almejando a superação de antigas mazelas que afetam nosso crescimento econômico. Sairemos de um sistema antigo para um novo, iniciando a regulamentação e implementação das medidas gerais da Emenda Constitucional 132. Chegou a hora de começarmos nossa travessia — prevista para dez anos — rumo à terra prometida em busca de crescimento do PIB, equidade tributária, neutralidade fiscal, simplificação, transparência, desburocratização, modernização dos impostos, redistribuição da arrecadação entre os entes federativos, diminuição da sonegação, arrecadação no destino, mudanças no imposto de renda, fim do efeito cascata.

Começamos uma longa caminhada, e o antigo e o novo conviverão na transição.

Nessa caminhada haverá o debate de dezenas de leis complementares, detalhando mais de 70 pontos que deverão ser regulamentados mediante propostas do governo para o Parlamento.

A definição das alíquotas; quem pagará e para quem; as exceções com alíquotas menores; como será a administração do sistema e a interação entre os entes federativos; a arrecadação, fiscalização e distribuição dos tributos pelo Comitê Gestor que será criado; os mecanismos de compensação entre estados e municípios; normas processuais e definição do imposto seletivo são alguns dos importantes temas que despertarão muitas disputas e gerarão grande movimentação em toda a sociedade, com profundas discussões técnicas nos setores jurídico, de auditoria e contábil.

Enfrentaremos a divergência entre os que defendem, com razão, o necessário equilíbrio das contas públicas e quem não concorda com corte de gastos, instalando um embate que afetará o tamanho da carga tributária.

No meio corporativo haverá conflitos entre setores produtivos para definir que atividades serão mais ou menos oneradas e como serão estabelecidos os critérios para a incidência do Imposto Seletivo. E ainda temos de garantir os direitos dos contribuintes, diminuir o trilionário contencioso tributário, combater a sonegação e o crescimento do mercado ilegal, questões que necessariamente deverão estar diretamente inseridas nesses debates.

Diante de tantas matérias que deverão ser esmiuçadas, e sabendo que “Deus ou diabo estão nos detalhes”, chegou o momento de decidir se aproveitaremos ou perderemos essa oportunidade histórica de, finalmente, aperfeiçoar nosso sistema tributário.

Com certeza, não será uma travessia tranquila. Teremos que abrir mares, enfrentar maus conselheiros e profundos conflitos de interesses, aceitar mudanças estruturais e assim, sem Moisés para nos guiar, temos de seguir em frente.

Sair do discurso e partir para a ação. Nosso destino depende de acertarmos o rumo e superarmos arcaicas estruturas que dificultam o nosso desenvolvimento econômico e social. Em verdade, precisamos nos afastar do que afirmou Roberto Campos: “O Brasil não perde a oportunidade de perder uma oportunidade.”

 

Reforma Tributária: Pilar para um Brasil mais justo e desenvolvido!

A Reforma Tributária está cada vez mais próxima de se tornar uma realidade em nosso país. E o ETCO está atento e engajado nesse importante debate. Há 20 anos, defendemos e estimulamos a ética nos negócios, promovendo um mercado mais justo e transparente.

Entendemos que a questão tributária é essencial para o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Por isso, defendemos pilares fundamentais para uma reforma eficiente: segurança jurídica, simplificação de procedimentos, racionalização de processos e não aumento da carga tributária.

Acreditamos que a Reforma Tributária é uma oportunidade única para impulsionar nosso país, gerando mais investimentos, empregos e renda. Além disso, é preciso combater práticas ilegais, como a sonegação fiscal e os devedores contumazes, que prejudicam toda a sociedade.

Nossas propostas estão alinhadas com estudos e avaliações realizados em parceria com renomadas consultorias, demonstrando a importância de enfrentar o contencioso tributário e a economia subterrânea, que envolvem trilhões de reais.

É diante desse cenário que, com o avanço da proposta de reforma tributária no parlamento brasileiro, o ETCO entende que é necessário aprofundar o tema de modo a auxiliar nas decisões dos poderes constituídos, em especial o legislativo. Tudo isso com vistas à melhoria do ambiente de negócios, ao incremento de segurança jurídica e ao efetivo e eficaz combate à sonegação.

Assim, os pilares de qualquer proposta tributária devem assegurar (i) segurança jurídica; (ii) simplificação de procedimentos do contribuinte e de fiscalização em tempo real; (iii) racionalização de processos; (iv) não aumento da carga tributária; (v) definição de alíquotas uniformes, combatendo a guerra fiscal; e (vi) desoneração das exportações (com a manutenção da imunidade e de créditos existentes).

Considerando as propostas inicialmente apresentadas ao parlamento, importante destacar alguns temas:

  1. Sobre a instituição de imposto seletivo, defendemos que, se for adotado:
  2. Seja de caráter restrito, com a previsão de incidência “ad rem” e “ad valorem”, dependendo do setor produtivo que for expressamente definido em lei – não em sede constitucional, para que seja conferida flexibilidade ao governo para adaptação à realidade e efetiva necessidade da sua implantação;
  3. Deve haver, no próprio texto constitucional, mecanismos e limites que impeçam que o imposto seletivo seja utilizado como forma de aumento da arrecadação para fechamento de déficit público;
  4. A pretensão de criação ou majoração deve estar devidamente suportada no referido projeto de lei por estudos prévios de impacto econômico e social que a justifiquem;
  5. Deve ter suas limitações bem claras na Constituição Federal (alíquota máxima), bem como, no caso de mercadorias já sujeitas à incidência da Contribuição sobre o Domínio Econômico (CIDE), deve ser acompanhada dos ajustes necessários no texto constitucional, de forma a se evitar a cumulação de tributos; e
  6. O imposto não deve ser discriminatório;
  7. A manutenção dos créditos acumulados no regime antigo deve ser garantida – ainda que o seu aproveitamento, por circunstâncias de cada contribuinte, não aconteça dentro do período de transição, deve haver uma forma de manutenção desses créditos –, com a expressa definição na própria PEC sobre a devolução de créditos acumulados e a monetização de saldos credores existentes na transição, com fixação de prazo;
  8. Em linha com os pilares da simplicidade e da segurança jurídica, aplicação do regime monofásico de tributação para determinados setores, em detrimento do atual modelo de substituição tributária “para frente”, e
  9. O prazo de transição deve garantir previsibilidade e ser ajustado para os casos de operações com incentivos fiscais como contrapartida a investimentos realizados, equilibrando o prazo para não aumentar complexidade de compliance tributário.

Por todo o apresentado, é evidente que a Reforma Tributária representa oportunidade de elevar o Brasil a um patamar de maior desenvolvimento e esse momento não pode ser desperdiçado. A garantia da necessária segurança jurídica, simplificando a estrutura tributária, fomentando a formalização da economia, ao lado da diminuição do espaço do contencioso e o combate às práticas de devedores contumazes, constituem parâmetros e premissas que devem balizar a conformação de uma nova realidade na relação fisco/ contribuinte.

Contamos com o apoio de todos para construirmos um sistema tributário mais justo, transparente e eficiente.

Desinformações Tributárias

É indiscutível que o sistema tributário brasileiro tem muitos problemas, agravados, aliás, por incompreensíveis decisões judiciais e pela mora legislativa em relação a leis complementares, previstas na Constituição de 1988 e jamais editadas.

Esse quadro propicia a construção de falácias, saltos lógicos e desinformações de todos os gêneros.

Aponta-se, como evidência da complexidade do sistema tributário, a existência de alíquotas distintas de IPI para produtos de perfumaria. Se isso fosse um problema era algo que seria resolvido com um modesto decreto.

Outra evidência, inclusive utilizada em peça veiculada na internet, é o caso dos sapatos crocs. Afirma-se que mudanças na classificação desses sapatos resultou em autuações fiscais. Erro palmar. A questão não era tributária. Tratava-se da aplicação pela Câmara de Comércio Exterior (Camex) de direitos antidumping em importações de calçado da China. Além disso, a classificação já tinha gerado controvérsias no âmbito internacional, tendo demandado deliberação específica na Organização Mundial de Aduanas, em Bruxelas.

A pesquisa Doing Business do Banco Mundial é recorrentemente citada para justificar projetos de reforma tributária, sob a inverossímil alegação de que o pagamento de impostos no Brasil exigia mais de 2 mil horas anuais. Afora ser matéria relacionada com o burocratismo e não com a natureza dos tributos, cerca de 97% dos contribuintes são optantes do Simples e do lucro presumido que cumprem suas obrigações com muita facilidade, graças à simplicidade dos regimes e aos eficientes aplicativos disponíveis. De resto, a pesquisa foi “descontinuada” pelo Banco, em 2021, em virtude de fraudes e inconsistências detectadas por auditoria independente.

Fala-se, também, em aumentar a arrecadação mediante revogação de benefícios fiscais. Essa pretensão, contudo, encerra várias armadilhas: não é claro o conceito de renúncia fiscal, que muitas vezes inclui situações que decorrem de preceito constitucional de observância obrigatória, como a tributação das micro e pequenas empresas; a extinção de um benefício fiscal pode implicar o encerramento do negócio beneficiado, sem proveito para a arrecadação; o Código Tributário Nacional veda o cancelamento de benefício dado por prazo certo e sob condições.

Vence esse torneio de desinformações o anúncio de que uma reforma tributária, cujo escopo a rigor se desconhece, promoverá um crescimento de 10% no PIB brasileiro, em 15 anos. Há, também, quem acredite em duendes.

 

 

Veja os principais pontos defendidos pelo ETCO em relação à Reforma Tributária

A reforma tributária é discutida há décadas no Congresso e sabemos que sua aprovação é bastante complexa, porque afeta diretamente diversos setores da sociedade, bem como as diversas instâncias de governo (União, Estados e municípios).
Desde sua fundação, há 20 anos, o ETCO concentra seus esforços em estudos, propostas e ações que possam contribuir com a melhoria do ambiente de negócios e o combate às práticas ilegais, principalmente no que se refere às questões de âmbito tributário.
Desde 2019, temos acompanhado as discussões sobre as PECs 45/19 (Câmara) e 110/19 (Senado), promovendo diversos debates com renomados especialistas sobre o tema.
Como resultado deste trabalho, chegamos a um consenso sobre os princípios elementares que devem ser assegurados:

I – Vedação a qualquer pretensão de aumento da carga tributária, visando prevenir a indesejada expansão do mercado ilegal que inviabiliza o equilíbrio concorrencial;

II – Simplificação e racionalização dos regimes tributários;

III – Desburocratização tributária;

IV – Disciplinamento do Artigo 146-A da Constituição, objetivando prevenir os desvios tributário-concorrenciais, nos termos do PL 164/22.

V – Resolução dos grandes litígios tributários, notadamente incentivando o uso do instituto da Transação Tributária e o aperfeiçoamento da Arbitragem Tributária como ferramenta para a solução de conflitos.

A lição espanhola

Em abril de 2021, a Espanha decidiu constituir uma comissão formada por especialistas, recrutados no governo e fora dele, para produzir um diagnóstico do seu sistema tributário e a partir daí elaborar propostas visando melhorar sua eficiência e ajustá-lo às novas exigências da fiscalidade ambiental e da economia digital.
Em fevereiro passado, a comissão apresentou, para debates, o “Libro Blanco sobre la Reforma Tributaria”, um consistente documento de 788 páginas.
A Espanha fez a opção correta. Qualquer reforma deve ser precedida por um diagnóstico, que especifique o problema e aponte, de forma transparente, soluções acompanhadas de suas repercussões. Caso contrário, é um mero pacote autoritário, que não raro embute interesses pouco virtuosos.
O caminho espanhol não é inédito. Na década de 1960, foi instituída, no Brasil, a Comissão Especial da Reforma Tributária, integrada por qualificados especialistas, cujos trabalhos resultaram na Emenda Constitucional nº 18, de 1965, nossa mais arrojada reforma da tributação do consumo.
Ninguém tem dúvidas quanto à existência de inúmeros problemas no sistema tributário brasileiro. É preciso, todavia, examiná-los com profundidade e imparcialidade.
A instituição de uma comissão, hoje, poderia ser um bom começo. Alguns critérios para orientar os trabalhos também ajudariam: só reformar o que for essencial, considerados os benefícios e os custos da mudança; buscar a verdadeira modernidade, que inclui a fiscalidade ambiental, a economia digital, o uso parcimonioso da extrafiscalidade, o novo financiamento da previdência social; coibir o planejamento tributário abusivo, que erode as bases tributárias e gera desequilíbrios concorrenciais.
A temática, todavia, não deveria ficar limitada à reforma dos tributos, em sentido estrito, mas conferir atenção a questões sempre ignoradas: o burocratismo tributário, insistentemente alegado como pretexto de proposições e jamais enfrentado; o federalismo fiscal, colcha de retalhos que abriga inconsistentes critérios de partilhas de renda e suspeitosas transferências voluntárias, e desconhece a especificação das competências dos entes federativos e os arranjos de cooperação entre eles; e o processualismo patológico, principal fonte do assombroso volume de litígios e da insegurança jurídica.
Como ensinava Mário Henrique Simonsen, integrante da Comissão de Reforma: “Se for bem enunciado, o problema mais difícil do mundo será resolvido. Mal enunciado, o problema mais fácil do mundo jamais será resolvido”.

Não verás país nenhum

A cultura deve ser sempre valorizada. A poesia, a literatura, a música exprimem com arte o sentimento de um povo e despertam emoções, dando sentido a situações que a razão, muitas vezes, não consegue entender.

No meu último artigo me socorri do grande Pessoa para abordar a questão da ética (Para ser grande, sê inteiro). Nesse me apoio em Ignácio de Loyola Brandão, na sua obra “Não Verás País Nenhum”, para expressar um quê de perplexidade diante dos últimos fatos que assombram o nosso querido e sofrido Brasil.

São tantos que teria que escrever muito mais que o espaço que me é dado permite. Vou me limitar a dois temas que exemplificam algumas agruras que acompanho de perto.

Sabemos que para alcançar o almejado desenvolvimento devemos assegurar a segurança jurídica que permita a atração de investimentos, a geração de empregos e renda. Entretanto, longe de avançar nesse objetivo, nos afastamos a cada dia dessa meta. Com esforço, dedicação e muita competência, vamos retrocedendo.

Vejamos a questão tributária: sempre se fala na urgente necessidade de termos uma “reforma tributária” que aperfeiçoe o nosso sistema, seja ampla e que simplifique o cumprimento das obrigações e, claro, não eleve ainda mais tributos.

Esses complexos objetivos só serão alcançados com um amplo debate, com a participação de conhecedores dos meandros do direito tributário, empresários, representantes dos contribuintes, governos, sociedade civil, políticos e que haja um encontro de contas, tudo para avaliar as consequências, riscos e o alcance das medidas que serão adotadas.

Mas eis que surge um pacote que, longe da necessária cautela, promove mudanças severas na estrutura tributária: altera a tributação da renda; dos dividendos; dos lucros acumulados; não dedutibilidade dos juros sobre capital próprio; gera novos procedimentos burocráticos e vai aumentar a carga tributária, onerar investimentos produtivos e, claro, ao final, os consumidores.

Com forte reação da indústria, comércio, serviços, profissionais liberais, estados e municípios, foram apresentados pareceres pelo relator, confundindo ainda mais o que é incompreensível. É a lógica do “puxadinho”. Resultado: unânime e coesa repulsa, contrariando o dito que afirma ser a “unanimidade burra”.

Mas tudo pode piorar. A Câmara Federal decide que essa matéria deve ser votada em regime de urgência! Prejudicando uma discussão mais profunda, com estudos e debates técnicos.

Os contribuintes e os setores produtivos foram atropelados. A lógica política se afasta da sociedade, com justificativas populistas.

Ao lado dessa situação insólita, aponto outro absurdo. O Poder Executivo propõe Medida Provisória para alterar profundamente a estrutura da distribuição de combustíveis. De um lado, permitindo a venda direta de etanol pelas usinas aos postos e de outro, autorizando a venda de combustível de origem diversa da apontada pela bandeira do posto de abastecimento. Proposta açodada e inexplicável.

A singela justificativa é ilusória, o preço há de cair e o consumidor será beneficiado, como se fosse possível diminuir o preço final sem alterar a estrutura tributária que incide sobre os combustíveis. Essas concepções erradas incentivarão o não pagamento de impostos, prática que assola todo o setor.

Será muito difícil, senão impossível, fiscalizar a cadeia de distribuição e, para o caso da venda de produto diferente ao da bandeira de um posto, o consumidor será enganado, pois terá a crença de estar abastecendo com um produto de uma marca que confia e receberá algo que desconhece a origem.

Essa assombrosa iniciativa, que é aplaudida pelos devedores contumazes, nunca foi defendida pelo setor e tampouco pelos consumidores. Um verdadeiro equívoco.

Algumas perguntas: Qual a urgência para que uma ação tão disruptiva seja apresentada via MP? Quais são os reais interesses que a motivam? Os riscos foram avaliados?

Esses dois exemplos de repentinas proposições legislativas me fazem lembrar do filme de Hugo Carvana, estrelado pelo saudoso Tarcísio Meira, com o título: “Não se preocupe, nada vai dar certo”.

Tempos difíceis. Há método nessas medidas, que oneram quem contribui e, sem uma validação em estudos, não atendem aos legítimos interesses da sociedade, do consumidor, dos setores produtivos, enfim, de quem sustenta o Estado. E tudo isso em meio a uma pandemia, alta de juros e da inflação, elevado desemprego, cisão institucional, com os titulares dos poderes em claro confronto.

Perdemos o sentido de planejamento, de prioridade, de fazer o que realmente importa e estabelecemos um claro divórcio entre a sociedade e o Estado. Plantando normas erráticas, colhemos mais insegurança jurídica.

Como advogado, sou otimista, mas, tenho que ser realista. Sim, se teimarmos nessa rota, nada vai dar certo e não teremos país nenhum, pelo menos não o que queremos.

A arte fez seus alertas, temos que escutar e reagir.

*Edson Luiz Vismona é advogado, presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial – ETCO e do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade — FNCP.  Foi secretário da justiça e defesa da cidadania do Estado de São Paulo (2000/2002)

**Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a Exame. 

Loucura sem método

“Loucura, embora tenha lá seu método” foi o que dissera Polônio a Hamlet, segundo a narrativa de Shakespeare.

Nos debates sobre reforma tributária e temas conexos consigo perceber as loucuras, mas ainda não consegui identificar, caso exista, o método.

Merece destaque nessas frequentes insanidades a proposta de criação de uma singular “contribuição sobre bens e serviços”, constante do projeto de lei nº 3.887, de 2020, para o qual se requereu urgência na tramitação para, em seguida, abdicar-se dessa urgência sob a patética alegação de desobstruir a votação de “inadiáveis” alterações no código de trânsito.

O projeto sequer esclarece se a base de cálculo dessa contribuição seria operações ou receita, preferindo delegar a resolução desse dilema, caso o projeto prosperasse, para o Judiciário, em robusta contribuição ao aumento da litigiosidade no País.

Muito já se disse sobre as impropriedades daquele projeto de lei, mas nele há que se assinalar a virtude de expor, em escala reduzida, as mazelas da PEC nº 45, que propõe a instituição de um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e um enigmático Imposto Seletivo. Tenta-se encobrir essas impropriedades evitando mensurar as repercussões dos projetos sobre preços, setores e entes federativos, sob a justificativa de que essas informações “não contribuiriam para o debate” (sic).

As mais recentes pérolas desse universo de loucuras são a divulgação de um anteprojeto de lei complementar da PEC nº 45 e discriminação das fontes de financiamento da denominada “renda cidadã”.

O anteprojeto de lei complementar a uma Proposta de Emenda Constitucional que não foi apreciada pelo Congresso Nacional, apesar de inusitado, ajuda a desvelar as deficiências da proposição.

Ao admitir a vulnerabilidade do IVA à sonegação, como especial menção ao que ocorre com esse imposto na civilizada Europa, propõe-se condicionar o aproveitamento de créditos ao efetivo recolhimento do imposto na etapa anterior. Há que se reconhecer o ineditismo da proposta, tanto quanto seu surrealismo. Como poderia um contribuinte fixar o preço da mercadoria ou serviço sem saber se seu fornecedor vai recolher o imposto no mês subsequente?

Para administrar o IBS, é proposta a criação de uma Agência Tributária Nacional visando “implementar federalismo cooperativo” (sic), integrada por servidores da administração tributária dos entes federativos e dirigida por um conselho de administração, escolhido por uma assembleia geral, com poderes para eleger uma diretoria executiva. Esse Conselho teria competência para expedir normas infralegais e proceder ao julgamento administrativo tributário por meio de um órgão denominado “Contencioso Tributário”. Há também alusão, não traduzida no texto do anteprojeto, a um Conselho Consultivo Empresarial. Na história da administração tributária, não me recordo de uma proposta pior do que essa.

Para a renda cidadã, aventou-se, entre outras fontes de financiamento, a postergação do pagamento de precatórios da União. É o auge da temporada de ideias ruins. Qual a autoridade moral de um Estado que posterga o pagamento de suas dívidas e cobra dos contribuintes o pagamento pontual de tributos?

Estamos, hoje, com mais de 4,7 milhões de pessoas infectadas pela Covid-19 e mais de 143 mil mortos, suportamos uma taxa de desemprego recorde (13,8%), “comemoramos” a queda de 9,7%, no segundo trimestre, do PIB brasileiro, o agronegócio é impactado por um entusiasmado desapreço  à política ambiental, há previsões consistentes sobre o aumento da parcela da população em condições de pobreza e extrema pobreza, a crise fiscal dos Estados e Municípios vai aumentar. A despeito de tudo isso, continuamos, ao contrário do que é feito no resto do mundo, a debater uma reforma tributária que hostiliza severamente setores econômicos e eleva o preço de serviços tão essenciais, como saúde e educação, e de livros, que desfrutam de uma longeva isenção de tributos.

O Brasil, infelizmente, não desperdiça a oportunidade de cometer erros.

(*) Everardo Maciel foi Secretário da Receita Federal (1995-2002) e é presidente do Conselho Consultivo do ETCO

Mensagem do Presidente do ETCO

Com a aprovação da reforma da Previdência, todas as atenções se voltam agora para a reforma tributária. Chegou a hora de resolvermos a barafunda caótica em que se transformou o nosso sistema de arrecadação de impostos. O tema tem importância enorme para a ética concorrencial, o ambiente de negócios e o desenvolvimento do País. Por isso, um dos nossos principais focos de atuação este ano tem sido a promoção de debates com autoridades no assunto para contribuir nas discussões sobre a reforma.

Um ponto ao qual estamos dando ênfase especial é a questão da segurança jurídica tributária, pouco abordada pelos diferentes projetos de reforma. Esse foi o tema de um seminário que realizamos em junho e também a nossa motivação para encomendar uma pesquisa à consultoria Ernst & Young sobre o contencioso tributário brasileiro.

O estudo, que será divulgado em breve, mas cujos resultados preliminares apresentamos nesta edição, revelou que o total de impostos em discussão nas diferentes esferas administrativas e judiciais já atingiu a cifra de R$ 3,4 trilhões, que equivalem a mais da metade do PIB do País.

Realizamos também, em julho, em parceria com o jornal Valor Econômico, o seminário Tributação no Brasil, que somou contribuições dos campos econômico, jurídico e tributário para o debate sobre a reforma.

Em outra frente de atuação, estamos realizando, desde maio, em parceria com a Gazeta do Povo, do Paraná, o projeto #Dentro da Lei, que busca dar mais visibilidade ao problema do mercado ilegal representado por práticas como o contrabando, a pirataria e a falsificação de produtos. Não podemos aceitar o que está ocorrendo, por exemplo, no setor de cigarros, onde o produto ilegal já dominou mais da metade do mercado e a evasão fiscal superou a arrecadação de impostos, como mostra uma nova pesquisa do Ibope que apresentamos na revista.

Esta edição traz também um artigo que publiquei originalmente no jornal Correio Braziliense para sensibilizar os senadores sobre a importância da aprovação do PLS 284/17, que endurece o combate aos devedores contumazes de impostos. Também não dá mais para tolerar essa prática criminosa que vigora com força em segmentos de alta tributação, como combustíveis, tabaco e bebidas.

Nós, brasileiros, precisamos entender que jamais teremos um país desenvolvido se não assumirmos a defesa da ética e da legalidade como valores inegociáveis. Nossa missão é lutar por isso.