Pandemia afeta atividade informal no Brasil e derruba indicador

Economia subterrânea no Brasil, movimentou algo próximo a R$ 1,2 trilhões de reais, maior que o PIB de países como Suíça e Suécia

A economia subterrânea sofreu uma pequena queda na participação na economia brasileira e atingiu 17,1% do PIB, o que representa cerca de R$ 1,2 trilhões de reais. O resultado faz parte do Índice de Economia Subterrânea (IES), uma parceria entre o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) e o IBRE/FGV que acompanha, desde 2003, a evolução das atividades que operam à margem das legislações e regulamentações que afetam as atividades formais no país.

O indicador, ligeiramente menor que o observado em 2019 (17,3%), aponta para uma interrupção nas sucessivas altas observadas desde 2015, provocada pelos eventos associados à pandemia da covid-19 que elevaram de forma extraordinária o nível de incerteza em relação ao desempenho da economia.

Os impactos negativos sobre a atividade econômica e sobre o mercado de trabalho afetaram de forma mais intensa os trabalhadores informais, em comparação com os trabalhadores formais, contribuindo para a queda do Índice da Economia Subterrânea (IES) no ano de 2020.

De acordo com Edson Vismona, presidente do ETCO, a queda observada no índice, ao contrário do que aconteceu no passado, não está associada ao aumento da atividade formal.

“É uma redução de que não podemos comemorar. As restrições de circulação durante os meses mais críticos da pandemia, tiraram as pessoas das ruas, prejudicando sensivelmente ambulantes, motoristas de aplicativos e comerciantes informais. Essa população teve sua atividade interrompida de forma brusca e isso trouxe um forte impacto econômico e social”, completa o executivo.

 

O Gráfico mostra a evolução do Índice de Economia Subterrânea desde 2003 – Fonte: Elaboração ETCO e FGV/IBRE

Fazendo um resgate histórico, as altas observadas no indicador até o ano de 2019 foram consequência da crise iniciada em meados de 2014, que reduziu o setor formal da economia, e da lenta recuperação da atividade econômica, concentrada em sua parte mais flexível a economia informal, que estava puxando o emprego no país. Ao mesmo tempo, a redução das taxas de juros e o lento aumento da renda amenizaram o quadro de crescimento da economia subterrânea que seria mais forte na ausência destes fatores.

O economista do IBRE/FGV, Paulo Peruchetti, acredita que a atual crise, de características únicas, o trabalhador formal foi mais protegido, principalmente por conta do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego (BEm). Já em relação aos informais, o benefício emergencial garantiu a renda, mas não o emprego.

“Por ser mais flexível, é bem provável que a recuperação do emprego ao longo do próximo ano ocorra em função de aumentos mais fortes no mercado de trabalho informal, o que pode reverter a queda no indicador de economia subterrânea nos próximos anos”, conclui Peruchetti.

Vismona e Peruchetti concordam que fatores estruturais que proporcionaram a redução da economia subterrânea entre 2014 e 2019 permanecem presentes na economia brasileira, mas que é preciso cautela quanto a avaliação da evolução do indicador, pois sua dinâmica dependerá da velocidade de recuperação da economia, que dependerá do avanço das reformas necessárias ao estímulo da economia.

 Evolução do Índice

O ETCO e o IBRE/ FGV desenvolveram um índice para acompanhamento da economia subterrânea proporcionando um indicador da evolução das atividades informais. A economia subterrânea é definida como a produção de bens e serviços não reportada ao governo, deliberadamente, para: sonegar impostos; evadir contribuições para a seguridade social; driblar o cumprimento de leis e regulamentações trabalhistas; evitar custos decorrentes das normas aplicáveis a cada atividade.

O índice se inicia em 2003, com o maior valor da série histórica, cerca de 21% do PIB Brasileiro e desde então, apresentou uma forte tendência de queda, alcançando em 2014 o seu menor valor (16,1%). No entanto, a partir de 2015, no entanto, observou-se uma piora no indicador, com um aumento de mais de 1 ponto percentual entre 2015 e 2019.

A redução do índice no país nos anos 2000 está relacionada a diversos fatores estruturais que estimularam a formalização do mercado de trabalho e dificultaram a atuação das empresas à margem da lei. Dentre os fatores que ajudaram a elevar a formalização da economia, podemos citar o aumento do mercado de crédito e a ampliação da escolaridade média do brasileiro.

Além disso, as medidas de simplificação das normais legais ajudam a reduzir o custo da formalização, estimulando a redução da economia subterrânea. Neste sentido, medidas com a implantação das Notas Fiscais eletrônicas (NFes), o SIMPLES e o MEI tendem a formalizar mais a economia.

Entre o segundo trimestre de 2014 e o quarto trimestre de 2016 o Brasil enfrentou um longo período de recessão (11 trimestres) de acordo com o Comitê de Datação de Ciclos Econômico (CODACE).  Uma das consequências desta perda de dinamismo na economia foi o aumento do número de pessoas ocupadas em atividades informais.

Podemos notar (Gráfico) uma piora no Índice de Economia Subterrânea entre os anos de 2015 e 2019. Neste período, houve um aumento de mais de 1 ponto percentual no Índice de Economia Subterrânea, de modo que ele passou de 16,2% em 2015 para 17,3% em 2019.

Entre 2016 e 2019, houve uma recuperação do emprego, porém informal, cujas relações de trabalho são bem mais flexíveis, gerando aumentos no número de pessoas sem carteira assinada e na participação da renda deste grupo na renda total.

Logo, o aumento da informalidade observado neste período fez com que o impacto via mercado de trabalho fosse maior, levando assim a sucessivos aumentos no Índice de Economia Subterrânea entre os anos de 2015 e 2019.

Já no ano de 2020, foi possível notar um recuo de 0,2 pontos percentuais no indicador, explicada pela mudança de composição do mercado de trabalho, com maior peso da formalização, aliada a expectativa de forte redução do nível de atividade econômica. Este valor observado em 2020, mostra que a economia subterrânea no Brasil, movimentou algo próximo a R$ 1,2 trilhões de reais, maior por exemplo que o PIB de países como Suíça e Suécia que correspondem a algo próximo de 16% do PIB brasileiro, segundo dados do FMI.

O recuo do indicador no ano de 2020 está associado a mudança de composição no mercado de trabalho. Com o avanço da pandemia da Covid-19 houve uma maior redução relativa dos trabalhadores informais em comparação com a queda observada nos trabalhadores formais, o que gerou um aumento na formalização.

O lado positivo é que os fatores estruturais que proporcionaram a redução da economia subterrânea permanecem presentes na economia brasileira. O processo de simplificação das normas e regulamentações permanece ativo (com perspectivas de ampliação pelo atual governo), a escolaridade média do brasileiro continua aumentando e o mercado de crédito deve voltar a sua trajetória de crescimento. Além disso, a reforma trabalhista realizada no governo anterior tende a estimular a formalização do mercado de trabalho, reduzindo o custo relativo da formalização, estimulando a volta do emprego formal.

“Eleitor esquece em quem vota e eleitos esquecem por que são escolhidos”

No clássico “Os Donos do Poder – A Formação do Patronato Brasileiro”, o grande jurista Raimundo Faoro descreveu os chamados estamentos que historicamente exercem o poder no Brasil e que resultaram na realidade que consolida condutas: o patrimonialismo; a troca de favores como fator de estabilidade de quem é eleito; a ideia generalizada de que o Estado trabalha para atender aos seus próprios interesses, afastando-se da condição de prestador de serviços; o apego aos meios, sem foco nos fins; a força do corporativismo que resiste às mudanças que afetem seus “direitos”. Enfim, demonstrações de que os interesses da sociedade não são compreendidos pelo Estado que sustenta, traduzindo em distanciamento, como se não houvesse uma relação entre eleitores e eleitos para governar. Parece até que o sinal que a urna eletrônica emite ao final da votação teria um efeito hipnótico: o eleitor esquece em quem votou e os eleitos esquecem por que foram escolhidos.

Na prática, a defesa do bem comum fica em segundo plano, restrita aos livros de direito constitucional e aos juramentos de posse. Não obstante os discursos de campanha eleitoral afirmarem o contrário, a formação de coalizões resulta no loteamento de cargos, não importando a capacitação técnica de quem vier a exercê-los ou a busca de resultados. O relevante é ter acesso aos recursos do erário. Assim, aumentar as despesas públicas, sem a definição de metas ou processos de controle, torna-se equivocadamente aceitável, afastando o Estado da eficácia, da efetiva entrega de serviços aos cidadãos, especialmente aos mais necessitados.

Deturpando conceitos com argumentos que não se sustentam, há quem afirme que o equilíbrio dos gastos públicos ocasionaria a retirada de recursos para as causas sociais ou seria afetado o poder da administração pública na atuação do governo.

A estrutura que suporta os governos, apontada por Faoro, estimularam a ineficiência e o desperdício de recursos públicos. Um singelo exemplo: o tempo que se leva para prestar um serviço não é considerado, assim, é comum a demora de meses para um simples registro de alteração de uma empresa, impactando na geração de novos investimentos e empregos. Essa é uma demonstração, entre tantas, de que a definição de metas a serem alcançadas pelo serviço público não é prioridade.

Por outro lado, é fácil identificar na execução orçamentária de qualquer ente federativo que o volume mais expressivo de recursos sustenta a máquina administrativa em prejuízo da atividade fim, que é atender o cidadão. Há órgãos públicos com uma rede de escritórios sem necessidade, e muitos gestores sequer perguntam o porquê e, sem a pergunta, não se encontra a resposta.

Não bastasse essa estrutura disfuncional histórica do Estado brasileiro, ainda sofremos com o crescimento da corrupção que se arraigou e interfere diretamente na administração pública.

E, para piorar, se constata o avanço da ação de organizações criminosas que vão deixando as chamadas “franjas” da sociedade e procuram não só influenciar as decisões políticas mas exercê-las diretamente, dominando territórios, se financiando com o mercado ilegal e procurando assumir o poder político. Essas eleições municipais demonstraram, como nenhuma outra, a luta política exercida de modo violento por milícias e organizações criminosas para garantir a eleição de seus cooptados.

Temos assim outros candidatos a “donos do poder”, que se entrelaçam, ameaçando o Estado Democrático de Direito e influenciando nossos destinos sem qualquer preocupação com valores e princípios da cidadania. O ideal republicano fica distante, a defesa do interesse nacional parece uma utopia, e a garantia de privilégios é o objetivo.

Para enfrentar essas ameaças, algumas ações podem ser apontadas. São iniciativas urgentes a retomada da esquecida reforma política e uma reforma administrativa significativa, acrescidas do combate à impunidade e fortalecimento dos programas de integridade. Em verdade, a sociedade civil e os setores produtivos devem se articular na defesa de propostas e na cobrança de atitudes por parte dos poderes da República que realinhem o Estado, pois é certo que, com a régua e compasso tortos que estamos usando, nos afastamos cada vez mais do rumo do desenvolvimento.

Artigo publicado em 20/11/2020, no Portal Exame/Bússola

Empresa com alma

A Constituição Federal, no artigo 1º, define a livre iniciativa como um dos fundamentos da República, garantindo, assim, que as empresas podem atuar no mercado, agindo livremente dentro dos parâmetros legais. Nesse artigo inicial, no mesmo inciso IV, estão previstos os valores sociais do trabalho demonstrando que hão de ser respeitados os direitos dos trabalhadores (art. 7º).

Nesses parâmetros constitucionais, trabalho e capital são completados pelos direitos do consumidor, enfeixando o tripé empreendedor: capital, emprego e consumo, formando os chamados stakeholders (investidores, clientes, funcionários, fornecedores, comunidade). Por esse conceito, criado pelo filósofo americano Robert Edward Freeman, o sucesso da empresa depende da geração de valor para esses agentes e, complementando, esse objetivo deve também contemplar o cumprimento das obrigações legais, fiscais e ambientais.

Está moldada a estrutura que vem sendo cada vez mais exigida. Uma empresa, para alcançar o lucro, deve respeitar seus stakeholders, caso contrário, seus resultados serão impactados negativamente. Entre as duas pontas, acionista e consumidor, existe um conjunto de atitudes que deve constituir a formação de princípios e valores que orientam a ação empreendedora. É certo que a sociedade está atenta para posturas que englobam regras de convivência ética.

Interessante notar que programas de integridade, combate aos desvios de conduta e corrupção, promoção da equidade das minorias, garantia de segurança psicológica no ambiente de trabalho, afastando assédios e viabilizando a participação e a interação dos colaboradores, o cumprimento das leis e das obrigações regulamentares, fiscais e ambientais, assegurando os direitos do consumidor, são comportamentos que se entrelaçam, formando os pilares que constituem as bases da livre iniciativa moderna, que não se enquadra no conceito de liberalismo econômico clássico e sim, cada vez mais, nos indicadores ESG.

O amadurecimento da ação empresarial não pode se restringir ao formalismo sem conteúdo, que aponta a missão e valores em um quadro; precisa ser exercitado, construído dia a dia, exigindo uma dimensão ética efetiva.

Vale dizer que a cultura organizacional deve evoluir, estimulando o respeito, propósitos e também as habilidades comportamentais, afastando antigos ditados como “manda quem pode, obedece quem tem juízo” ou “bom cabrito não berra”, que devem ser substituídos por opinar para inovar e não sofrer calado injustiças ou abusos.

Nesse contexto, as empresas muito exigentes no cumprimento de metas são questionadas para criar ambientes mais harmônicos e participativos.

É verdade que, na implementação de padrões de conduta e de programas de integridade, pode haver radicalismos, o que é natural, mas, com a experiência, o equilíbrio vai sendo alcançado, O certo é que nunca a gestão de pessoas e procedimentos foi tão exigida.

E, com a pandemia, uma verdadeira revolução está em curso, gerando desafios, com a aceleração de projetos de home office, flexibilizando horários, enfim, reestruturando as instituições e as relações interpessoais.

Todas essas mudanças estão impulsionando a superação de posturas dogmáticas para atitudes cooperativas: da judicialização para a mediação e composição de conflitos; do conservadorismo para o incentivo constante da inovação; da hierarquia rígida para a valorização da participação com responsabilidade.

Esse é o sentido da evolução: o lucro a qualquer preço não é mais aceitável e só os meios físicos não garantem resultados econômicos e financeiros. É preciso mais.

Empresas com desígnio, com alma que, além dos produtos que vendem ou dos serviços que oferecem, expressa-se na experiência de cada colaborador, em operar não somente dentro da lei, mas dentro da ética para alcançar as metas almejadas.

As pessoas físicas sendo motivadas para se integrarem na construção da identidade e alcance dos objetivos da pessoa jurídica. Lucro, mas com a valorização das pessoas, que desejam trabalhar onde sintam orgulho. A realidade indica que esses conceitos estão renovando o capitalismo.

*Edson Vismona é advogado, presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) e do  Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP). É também fundador e atual presidente do conselho deliberativo da Associação Brasileira de Ouvidores/Ombudsman — ABO. Foi secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (2000/2002).

Transação, reforma e divisão de devedores: saídas para o contencioso tributário

Enfrentar o descontrole do contencioso tributário brasileiro, que hoje já alcança magnitude equivalente a 73% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, segundo dados do Insper, precisa passar necessariamente por uma transformação profunda em inúmeras frentes do sistema tributário nacional.

Em webinar realizado pela Casa JOTA em parceria com Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) nesta sexta-feira (16/10), especialistas e autoridades elencaram algumas das prioridades que podem auxiliar na redução desses litígios.

Dentre elas estão a iniciativa da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional para transações tributárias, que só até agosto deste ano negociou R$ 28 bilhões em dívidas. Os palestrantes também frisaram a urgente necessidade de ampla reforma no tributária, assim como garantir que haja a separação do devedor contumaz do devedor eventual e do bom e do mau contribuinte.

Participaram do webinar João Henrique Grognet; coordenador-Geral de Estratégia de Recuperação de Créditos da PGFN; Breno Vasconcelos, advogado e pesquisador do Insper; Zabetta Macarini Gorissen, presidente executiva do Grupo de Estudos Tributários Aplicados (Getap); e Ana Amélia, ex-senadora.

Foi consenso, e não é novidade, que o grande e principal problema está na complexidade do sistema de cobranças de tributos. “Não existe país rico sem um modelo de jurídico que garanta previsibilidade e segurança. É impossível. E contencioso tributário é gerado na imprevisibilidade. Como que faz o contribuinte e empresário para navegar em um ambiente tão difícil de prever?”, afirmou Breno Vasconcelos.

Segundo o advogado, há alguns fatores que ampliam essa insegurança: possibilidade de retroatividade em novas interpretações, ausência de atos que registrem qual é a interpretação formal e oficial da nova norma tributária, ausência de processos de consulta eficaz, a excessiva duração dos processos, que hoje levam em média 19 anos para conclusão, e as incertezas decorrentes das novas tecnologias. “Esses são os indicados pela OCDE como fatores de insegurança jurídica e o Brasil gabarita todos eles”, apontou Vasconcelos.

A ex-senadora Ana Amélia citou como exemplo da complexidade na cobrança de impostos a realidade de um empresário brasileiro, Jorge Gerdau Johannpeter, do Grupo Gerdau, que tem uma siderúrgica no Rio Grande do Sul e outra igual no Canadá. “No RS, ele tem para a área tributária só para atender as mudanças quase diárias 250 profissionais. Para fazer o mesmo serviço no Canadá, ele precisa de apenas 3 pessoas”.

“Isso ilustra com uma clareza cristalina a situação que nós estamos vivendo. E o investidor estrangeiro, quando olha para nosso país, ele não vê só a questão de competição, mas também essas estruturas arcaicas que nós temos”, completou.

Para Zabetta Gorissen, nos último quatro anos, o Brasil intensificou o entendimento crítico em torno do contencioso tributário, com uma tentativa de aproximar contribuinte, governo, Congresso Nacional e Poder Judiciário. “Infelizmente, o contencioso virou um problema multifacetado, que afeta demais a todos”, disse.

Leia também: Contencioso tributário brasileiro ultrapassa 50% do PIB

Neste sentido, a presidente do Getap citou o desenvolvimento de mecanismos de coperative compliance, sempre com foco em aproximar o fisco do contribuinte para resolver com mais facilidade os problemas enfrentados. Zabetta também chamou atenção para “o grande marco” trazido pelas transações tributárias, que são um instrumento de renegociação para extinção do crédito tributário.

De acordo com dados apresentados por João Henrique Grognet, coordenador-Geral de Estratégia de Recuperação de Créditos da PGFN, a renegociação de R$ 28 bilhões em dívidas atingiu 77,4 mil contribuintes e 275 mil inscrições agrupadas em acordos.

“Me parece que foi muito acertado, com largas vantagens na Justiça fiscal. Essa Justiça é boa em qualquer hipótese, mas não estávamos encontrando essa clareza nos programas de Refis anterior. Afinal de contas você dá desconto a quem não precisa”, disse Grognet.

Segundo Zabetta, um ponto que precisa de melhoria na transação tributária envolve o fato de a Lei 13.988/20, que instituiu o programa, ter estabelecido um limite da transação do contencioso de pagamento de 50% do valor da dívida. “Colocar esse limite pode restringir um pouco o apetite da sociedade com relação a essa modalidade. Mas, como a gente sempre disse, vamos aguardar”.

Expectativas para a reforma tributária

O desafio de enfrentar o contencioso tributário é grande, mas na visão dos especialistas e autoridades, este cenário só terá de fato uma mudança a partir da reforma tributária.

“Nada disso vai ser resolver se a gente só trabalhar no contencioso. Precisamos trabalhar na origem. Contencioso é sintoma, não um problema por si só. Ele nasce de um sistema extremamente complexo, cheio de exceções. Uma reforma tributária substancial é essencial para o Brasil sair desse quadro disfuncional e contraproducente”, afirmou o advogado Breno Vasconcelos.

A princípio, essas mudanças não significam automaticamente que não surgirá um novo contencioso, uma vez que haverá uma legislação completamente nova em vigência. Na visão de Zabetta Gorissen, a sociedade deve dar uma “atenção absurda” para que as propostas em tramitação no Congresso Nacional saiam com o melhor texto possível e que eliminem a maior quantidade de contencioso possível.

“Se tiver contencioso, a gente tem que imediatamente voltar para o Congresso e arrumar. Não vamos fazer o que a gente faz hoje. Se não der certo logo de cara, tem que mexer na legislação”, disse.

Devedor contumaz

Para a ex-senadora Ana Amélia, autora do Projeto de Lei do Senado nº 284/2017 para caracterizar o devedor contumaz, quanto mais complicado for o sistema tributário de um país, mais fácil fica a sonegação.

“Neste projeto, estamos separando duas naturezas do contribuinte: um que tem como religião dever contumazmente, dever por ofício, dever por crença. É uma forma de sonegação. É um trampolim da sonegação”, disse, acrescentando que a intenção do PL é tratar de forma diferente contribuintes que têm comportamento diferente.

A ex-parlamentar citou que a caracterização desse tipo de devedor gerou uma briga dentro do Congresso e, por causa desse vazio legislativo, o Supremo Tribunal Federal (STF) entrou no debate. Em dezembro do ano passado, a Corte fixou tese no sentido de criminalizar o devedor contumaz, desde que se comprove dolo de apropriação.

“O STF fez um julgamento elevando a pena para o devedor contumaz de prisão. No nosso caso era uma multa, que tinha muito mais significado educativo do que a questão penal. A Corte deu um tratamento muito mais pesado do que aquele que a gente pretendia na lei”, afirmou Ana Amélia.

Ser legal no Brasil não pode ser uma opção

As pessoas físicas e jurídicas, no Brasil, vivem cotidianamente as dificuldades decorrentes do não cumprimento das leis. Esse tema está diretamente ligado a um dos fundamentos do próprio desenvolvimento do país, a segurança jurídica.

O poder público tem o dever de respeitar e fazer com que seja respeitada a Constituição Federal. Ninguém está acima dos seus princípios. A atração de investimentos, com a geração de empregos e renda, depende da certeza de que todos os agentes do mercado vão respeitar as mesmas regras, que os direitos e contratos serão respeitados. O Estado deveria, de um lado, facilitar a vida de quem quer agir corretamente e, de outro lado, combater aqueles que transgridem a lei. Conceitos óbvios, porém, o caminho para garantir essa realidade normal em uma República não é nada simples.

O necessário cumprimento de leis, decretos, regulamentos em qualquer área pode ser um verdadeiro tormento. São evidentes as agruras de quem quer constituir uma empresa, conseguir um mero habite-se para uma casa, obter licenças de funcionamento de uma loja, acompanhar a transbordante legislação tributária ou as interpretações oscilantes dos tribunais.

Em paralelo, temos o avanço das práticas ilegais no mercado: contrabando, pirataria, contrafação, fraudes, subfaturamento, não cumprimento de regulamentos técnicos, sonegação, atos que distorcem a concorrência e pervertem o ambiente de negócios.

Esse quadro é preocupante. As empresas que cumprem suas obrigações têm que competir com quem busca obter vantagens ilícitas, que se estruturam para burlar todas as regras e assim conquistar o mercado, elevando suas margens de lucro de modo totalmente irregular, às custas de toda a sociedade.

O resultados são impressionantes. O mercado ilegal (quinze setores produtivos), segundo dados do FNCP – Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade -, movimentou em 2019 R$ 291,4 bilhões. Os devedores contumazes, que se estruturam com o objetivo de não pagar impostos, acumulam mais de R$ 60 bilhões em débitos.

Entretanto, esses prejuízos bilionários são muito maiores, atingem valores intangíveis, pois corroem a crença de que o crime não compensa, desestimulam novos investimentos e esgarçam princípios éticos.

Para alterar essa situação a impunidade deve ser enfrentada; e a obediência das leis, valorizada. Algumas sugestões:

Leis que disciplinem as condutas com clareza e objetividade. E que sejam aplicadas de modo eficaz, diminuindo o espaço, não para o legítimo exercício da ampla defesa, mas sim para atitudes meramente protelatórias, que beneficiam quem deseja ganhar tempo e, assim, permanecer auferindo vantagens e lucros;

As iniciativas dos setores produtivos de denunciar práticas ilegais no mercado devem ser consideradas pelos agentes públicos como um importante apoio para as necessárias ações corretivas, que devem ser encaradas como relevantes e não como uma interferência no ritmo normal de trabalho;

Incentivar a cooperação e a integração entre os entes da administração pública, com a participação da sociedade civil, que pode auxiliar com informações que facilitem e agilizem o trabalho de contenção da ilegalidade;

Combater a corrupção sem tréguas, punindo quem desonra o serviço público. É certo que esse é o único “imposto” pago pelos infratores da lei;

Simplificação de procedimentos administrativos e da legislação, especialmente tributária, para que seja mais fácil cumprir a lei do que ignorá-la;

Essas propostas são conhecidas, mas há resistências. O combate à ilegalidade não é algo natural como deveria.

Um exemplo desse comportamento hostil foi dado pela consulta pública que o Senado faz sobre projetos de lei. A proposta de punir a pirataria de sinal de TV foi rejeitada por 95% das manifestações.

Esse breve panorama expõe alguns dos entraves do chamado “doing business” apresentado pelo Banco Mundial (de 190 países o Brasil está na 124º. posição) e que, há muito tempo, são debatidos, porém, a cada ano postergamos as necessárias medidas e esse atraso prejudica o nosso desenvolvimento.

Em verdade, ser legal no Brasil não pode ser uma opção; é sim um dever para que deixemos de ser o “país do futuro” que nunca chega.

Loucura sem método

“Loucura, embora tenha lá seu método” foi o que dissera Polônio a Hamlet, segundo a narrativa de Shakespeare.

Nos debates sobre reforma tributária e temas conexos consigo perceber as loucuras, mas ainda não consegui identificar, caso exista, o método.

Merece destaque nessas frequentes insanidades a proposta de criação de uma singular “contribuição sobre bens e serviços”, constante do projeto de lei nº 3.887, de 2020, para o qual se requereu urgência na tramitação para, em seguida, abdicar-se dessa urgência sob a patética alegação de desobstruir a votação de “inadiáveis” alterações no código de trânsito.

O projeto sequer esclarece se a base de cálculo dessa contribuição seria operações ou receita, preferindo delegar a resolução desse dilema, caso o projeto prosperasse, para o Judiciário, em robusta contribuição ao aumento da litigiosidade no País.

Muito já se disse sobre as impropriedades daquele projeto de lei, mas nele há que se assinalar a virtude de expor, em escala reduzida, as mazelas da PEC nº 45, que propõe a instituição de um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e um enigmático Imposto Seletivo. Tenta-se encobrir essas impropriedades evitando mensurar as repercussões dos projetos sobre preços, setores e entes federativos, sob a justificativa de que essas informações “não contribuiriam para o debate” (sic).

As mais recentes pérolas desse universo de loucuras são a divulgação de um anteprojeto de lei complementar da PEC nº 45 e discriminação das fontes de financiamento da denominada “renda cidadã”.

O anteprojeto de lei complementar a uma Proposta de Emenda Constitucional que não foi apreciada pelo Congresso Nacional, apesar de inusitado, ajuda a desvelar as deficiências da proposição.

Ao admitir a vulnerabilidade do IVA à sonegação, como especial menção ao que ocorre com esse imposto na civilizada Europa, propõe-se condicionar o aproveitamento de créditos ao efetivo recolhimento do imposto na etapa anterior. Há que se reconhecer o ineditismo da proposta, tanto quanto seu surrealismo. Como poderia um contribuinte fixar o preço da mercadoria ou serviço sem saber se seu fornecedor vai recolher o imposto no mês subsequente?

Para administrar o IBS, é proposta a criação de uma Agência Tributária Nacional visando “implementar federalismo cooperativo” (sic), integrada por servidores da administração tributária dos entes federativos e dirigida por um conselho de administração, escolhido por uma assembleia geral, com poderes para eleger uma diretoria executiva. Esse Conselho teria competência para expedir normas infralegais e proceder ao julgamento administrativo tributário por meio de um órgão denominado “Contencioso Tributário”. Há também alusão, não traduzida no texto do anteprojeto, a um Conselho Consultivo Empresarial. Na história da administração tributária, não me recordo de uma proposta pior do que essa.

Para a renda cidadã, aventou-se, entre outras fontes de financiamento, a postergação do pagamento de precatórios da União. É o auge da temporada de ideias ruins. Qual a autoridade moral de um Estado que posterga o pagamento de suas dívidas e cobra dos contribuintes o pagamento pontual de tributos?

Estamos, hoje, com mais de 4,7 milhões de pessoas infectadas pela Covid-19 e mais de 143 mil mortos, suportamos uma taxa de desemprego recorde (13,8%), “comemoramos” a queda de 9,7%, no segundo trimestre, do PIB brasileiro, o agronegócio é impactado por um entusiasmado desapreço  à política ambiental, há previsões consistentes sobre o aumento da parcela da população em condições de pobreza e extrema pobreza, a crise fiscal dos Estados e Municípios vai aumentar. A despeito de tudo isso, continuamos, ao contrário do que é feito no resto do mundo, a debater uma reforma tributária que hostiliza severamente setores econômicos e eleva o preço de serviços tão essenciais, como saúde e educação, e de livros, que desfrutam de uma longeva isenção de tributos.

O Brasil, infelizmente, não desperdiça a oportunidade de cometer erros.

(*) Everardo Maciel foi Secretário da Receita Federal (1995-2002) e é presidente do Conselho Consultivo do ETCO

Cassação de registro de empresas tabagistas inadimplentes volta à pauta do STF

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) volta a discutir, nesta quinta-feira (17/9), a possibilidade de cancelamento de registro de empresas tabagistas pelo não pagamento contumaz de tributos. Trata-se de um dos assuntos mais importantes dentre os pautados pelo novo presidente da Corte, Luiz Fux, até o fim do ano.

Em setembro de 2018, o plenário do Supremo se debruçou sobre o tema. Oito ministros entenderam ser constitucional a cassação do registro, mas, na ocasião, eram três as linhas diferentes de fundamentação ou argumentação alinhadas a esta visão.

Diante da  complexidade da discussão num processo que tramita na Corte há 13 anos e já acumula oito volumes,  a ministra Cármen Lúcia, então presidente, adiou a proclamação do resultado. Agora, a expectativa é que o voto de Cármen Lúcia seja entendido como o médio e dê os contornos à proclamação.

A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 3952 chegou a voltar à pauta do plenário em 19 de outubro de 2019 e 12 de março de 2020, mas acabou não sendo apregoada. Diante dos seguidos adiamentos, a Corte passou a receber pedidos para que a proclamação fosse concluída logo.

A ação, proposta pelo Partido Trabalhista Cristão (PTC), contesta o “cancelamento sumário” pela Receita Federal do registro especial das empresas tabagistas quando houver inadimplência de tributos federais. O partido alegava que a restrição ao exercício de atividade econômica ou profissional lícita constituiria sanção política vedada pela Constituição, na medida em que não se admite a existência de “instrumentos oblíquos” para coagir ou induzir o contribuinte ao pagamento de tributos .

Em síntese, alegava que o artigo 2º do Decreto-Lei nº 1.593/77, com a redação dada pela Lei 9.822/1999, violaria os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência, da liberdade de iniciativa e da proporcionalidade. Segundo o partido, a sanção imposta às empresas de cigarro não atingiria o fim almejado, que é o pagamento de tributo ou de contribuição.

Edson Vismona, presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), que é amicus curiae na ação, defende que, na verdade, a cassação é medida adequada para aqueles que, segundo ele, estruturam um empreendimento com o fim de lesar o Fisco para lucrar. Na medida em que assim agem, não se deveria contar com uma possibilidade de recuperação do imposto devido.

“Tem devedores contumazes com dívidas de milhões. A ação corrosiva do devedor contumaz fica muito clara. E não se pode mais protelar. E esse é o verbo preferido do devedor contumaz. ele existe para protelar, não ter decisão, cassação e ele continuar livre e solto, seguir sonegando. A cassação é importante porque impede a continuidade de um delito criminoso e que afeta toda a concorrência”, enfatiza Vismona.

Devedor contumaz é a empresa que declara possuir uma dívida tributária, mas de forma reiterada e premeditada não age para quitá-la. Como o empresário não sonega, apenas não paga o imposto devido, em tese, não comete um crime. Mas, deixa a concorrência para trás, já que o não pagamento dos tributos impacta positivamente o preço dos produtos, que ficam artificialmente mais baratos.

O trabalho para recuperar os montantes devidos é, segundo Vismona, hercúleo. E, com o tempo, tende a ficar ainda mais dificultado. “É um processo contínuo para o Fisco. A cassação não impede que a ação se repita, porque esses grupos abrem novos CNPJs, têm uma estrutura em torno disso. Mas temos de cercá-los, diminuir o espaço que tem.”

A definição final da ADI 3.952 consolida um precedente importante e, na visão do ETCO, fortalece a atuação do Congresso para legislar sobre o combate aos devedores contumazes. Dois projetos de lei em tramitação no Congresso contêm critérios para detectar e punir empresas que se valem desta prática: o PLS 284/2017 e o PL 1646/2019. O primeiro, por exemplo, diferencia o devedor contumaz do eventual — justamente uma das preocupações de quem acompanha o debate. Mas, no Parlamento, a discussão está parada.

O advogado constitucionalista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Gustavo Binenbojm atua na causa pelo Sindicato da Indústria do Fumo no Estado do Rio Grande do Sul (Sindifumo-RS). De acordo com ele, “a cassação se dá diante da circunstância especial de que essa é uma indústria que a tributação é tão elevada que não basta o Fisco ter à sua disposição os instrumentos tradicionais para cobrança, penhora de bens”.

Nesses casos, avalia Binenbojm, o que se tem é a constituição de empresas que vivem da sonegação fiscal e “por meio dela distorcem o mercado porque oferecem valores muito inferiores aos economicamente viáveis para uma competição justa”.

Desta forma, o dano comercial provocado pela ação é irreversível. Nesse contexto, o fato não se enquadraria na jurisprudência do Supremo de não permitir o que se chama de sanção política. Como regra, não se permite que haja efeitos extrafiscais para o não pagamento de tributo. Mas, neste caso, o entendimento é o de que o Estado não dispõe de outros meios para combater a prática.

“O Direito funciona a partir da realidade. Não é uma abstração filosófica. O argumento de que se fechar a empresa, aí mesmo é que não vai ter como pagar não se coloca com empresas que abrem e fecham e criam novos CNPJs para praticar o mesmo ilícito. A única forma de estancar a sangria e evitar novos danos é impedir a continuidade da ação”, disse.

Binenbojm lembra o caso em que o Supremo autorizou a prisão por dívida de ICMS declarado, mas não pago. “Agora não envolve privação à liberdade. Mas o direito de a pessoa praticar atividade econômica ou não. Se o STF validou a prisão, muito mais grave, por maior razão deve validar a cassação do registro de empresas com intenção inerentemente ilícita”, ressalta.

No fim de 2019, o plenário do Supremo, por sete votos a três, definiu a tese de que o contribuinte que deixa de recolher o ICMS pratica crime desde que haja dolo e de forma contumaz. Na ocasião, a Corte julgou o RHC 163.334 impetrado pelos proprietários de lojas de roupas em Santa Catarina denunciados por não recolher ICMS entre 2008 e 2010. Venceu o voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, que incluiu o critério da contumácia para a construção da tese proposta — alterando a sugestão inicial, sem a expressão.

As correntes de voto

O julgamento teve início em 2010 e foi suspenso após pedido de vista de Cármen Lúcia. Na ocasião, o relator, ministro Joaquim Barbosa, votou pelo provimento parcial da ADI, para conferir aos dispositivos normativos impugnados interpretação conforme a Constituição Federal, estabelecendo as seguintes condições para que a cassação do registro das empresas aconteça: a análise do montante dos débitos tributários não quitados; o atendimento do devido processo administrativo tributário na aferição da exigibilidade das obrigações tributárias e o exame do cumprimento do devido processo legal para aplicação da sanção.

Cármen Lúcia acompanhou Barbosa. Segundo a ministra, essa interpretação “equaliza os princípios da livre iniciativa econômica lícita, da livre concorrência, conciliando com a garantia do devido processo legal tributário e da inafastabilidade da jurisdição, com o dever do contribuinte de cumprir suas obrigações tributárias”. Acompanharam esse mesmo entendimento a ministra Rosa Weber e o ministro Celso de Mello.

O ministro Alexandre de Moraes defendeu que a empresa deve continuar funcionando até que o secretário da Receita Federal julgue o recurso por ela apresentado. Assim, ele votou no sentido de excluir a expressão “sem efeito suspensivo” do parágrafo 5º do artigo 2º da norma, mantendo o restante da lei. Segundo o ministro, a norma, com as alterações feitas pela nova legislação (Lei 12.715/2012), prevê as condicionantes propostas pelo relator da ação. Os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes acompanharam a corrente aberta por Moraes.

Uma terceira linha foi aberta por Fux. Ele afirmou que a opção do legislador deve ser obedecida e votou pela improcedência do pedido. “Se o legislador entendeu que a medida tem que ser severa, ele tem expertise melhor do que a nossa para saber se um efeito suspensivo não posterga uma atividade ilícita”. Além disso, para Fux, a medida do cancelamento do registro não impede de modo definitivo a atividade econômica da empresa, que poderá ser estabelecida desde que cumpridas as exigências legais. “A liberdade de iniciativa quando exercida de forma abusiva deixa de merecer a tutela do ordenamento jurídico”, concluiu.

Único a votar pela total procedência do pedido do PTC, e consequentemente contra a constitucionalidade da cassação dos registros das empresas, o ministro Marco Aurélio ressaltou que a norma impugnada compele a empresa devedora do tributo, não importando o valor devido, à satisfação do débito tributário. “O preceito não se refere a devedor eventual, reiterado ou devedor contumaz, não há distinção. Contenta-se o dispositivo atacado, para chegar-se a esse ato extremo da cassação do registro, com o inadimplemento puro e simples”, disse.

Os ministros Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso se declararam impedidos e o ministro Luiz Edson Fachin não votou por ter assumido a cadeira de Barbosa.

Devedor contumaz: falta de lei específica mantém prática sem punição

A lei brasileira não tem uma definição sobre o que é um devedor contumaz. Por isso, o combate aos sonegadores criminosos sempre esbarra na capacidade de impor sanções àqueles que adotam a prática de forma sistemática para ter vantagens concorrenciais. Os setores nos quais há mais devedores contumazes — que deixam de pagar impostos propositalmente — são os de combustíveis, cigarros e bebidas, altamente regulados pelo Estado.

Dois projetos de lei em tramitação no Congresso contêm essas definições sobre a figura do devedor contumaz: o PLS 284/2017 e o projeto de lei 1646/2019.

Para especialistas ouvidos pelo JOTA, definir de forma clara o que caracteriza um devedor contumaz é fundamental. “O devedor contumaz se aproveita para se esconder atrás de um monte de questionamentos jurídicos”, afirma Guilherme Barranco, sócio do escritório Barranco Sociedade de Advogados e ex-conselheiro do Carf. “Quanto menos precisos são os critérios, mais ele pode se opor no juízo para dizer que ele não é um devedor contumaz.”

O PLS 284/2017 define devedor contumaz como aquele que atua no campo do ilícito, “trata-se de criminoso, e não de empresário, que se organiza para não pagar tributos e, com isso, obter vantagem concorrencial”.

O presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), Edson Vismona, considera o PLS 284/2017 o melhor projeto para combater o devedor contumaz. “Ele traz a diferença do que é um devedor contumaz e um devedor eventual e dá segurança jurídica para o uso do termo ‘devedor contumaz’”, explica. “Segurança jurídica é fundamental e a lei vem justamente nesse sentido. O projeto de lei está pronto, mas parado, esse é o problema”.

O parecer mais recente, de 2018, feito pelo ex-senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), estabelece medidas para combater o devedor contumaz nas esferas federal, estadual e municipal. Como exemplos de possíveis sanções aos infratores, o parecer cita: suspensão ou cancelamento da inscrição fiscal; perda do registro para funcionamento; interdição do estabelecimento; aplicação de regimes especiais de fiscalização e de arrecadação. Atualmente a relatoria do projeto é do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

“A lei é um bom passo, porque hoje o ambiente é sem definições, nebuloso. E tudo o que é nebuloso nesse ambiente de alta tributação esses devedores contumazes usam para seu benefício”, destaca Luciano Godoy, sócio do LUC Advogados, árbitro e advogado especializado em contencioso.

PL 1646/2019

Na Câmara dos Deputados tramita um outro projeto de lei, o PL 1646/2019, que tem uma amplitude menor em relação ao texto do Senado. “O 1646 está sendo chamado de projeto do devedor contumaz. Mas são quatro artigos que falam do devedor contumaz e o resto do projeto fala da modernização da cobrança da dívida ativa da União”, diz o advogado tributarista Guilherme Barranco.

O projeto de lei define devedor contumaz como “aquele cuja atuação extrapola os limites da inadimplência e se situa no campo da ilicitude, com graves prejuízos a toda sociedade”. O texto estabelece ainda que a inadimplência “substancial e reiterada” de tributos ficará configurada quando constatada a existência de débitos de valor igual ou superior a R$ 15 milhões por um ano, em nome do próprio devedor ou de pessoa integrante do grupo econômico ou familiar. “Na esfera tributária, principalmente com empresas maiores, é muito fácil ter débitos acima de R$ 15 milhões”, pontua Barranco.

Supremo

No ano passado, o plenário do Supremo Tribunal Federal, por sete votos a três, definiu a tese de que o contribuinte que deixa de recolher o ICMS pratica crime desde que haja dolo. Na ocasião, a Corte julgou o RHC 163.334 impetrado pelos proprietários de lojas de roupas em Santa Catarina denunciados por não recolher ICMS entre 2008 e 2010.

A tese fixada foi a de que “o contribuinte que de forma contumaz e com dolo de apropriação deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente de mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º inciso II da lei 8137/1990”. Essa lei define os crimes contra a ordem tributária. O inciso citado diz que constitui crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher os cofres públicos”.

O diretor titular do Departamento Jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Hélcio Honda, alerta que é preciso cuidado na definição de devedor contumaz. “A figura do devedor contumaz é perniciosa, mas ela tem que ter uma definição cautelosa. Você precisa ter um outro elemento além do inadimplemento”, diz. “E qual é o outro elemento? É a figura dolosa de não fazer o pagamento do tributo, o desejo de prejudicar o mercado. A questão subjetiva do dolo é muito importante”.

Como age um devedor contumaz

O devedor contumaz se utiliza da lentidão para ter dívidas executadas e da possibilidade de questionar cobranças tributárias para ganhar tempo e obter altas taxas de retorno. “A empresa se estabelece e já se estrutura para não pagar imposto, porque vai ter uma vantagem competitiva ilegal, uma margem de lucro muito alta e vai inibir a concorrência leal”, diz Edson Vismona, diretor-presidente do ETCO. “É o que ocorre nos setores mais tarifados, de combustíveis, de cigarros, de bebidas.”

O advogado Luciano Godoy explica também que esses produtos são mais difíceis de serem fiscalizados: “Eles [os devedores contumazes] vão em produtos que são de consumo rápido. Cigarro e combustível, por exemplo, você usou e não há mais rastro do crime. Ninguém vai ser devedor contumaz, por exemplo, fazendo geladeira e televisão”.

Com parcelamentos de tributos e questionamentos de cobranças, uma empresa consegue operar sem problemas por até cinco anos. “Uma discussão de parcelamento pode levar três, quatro anos. Na via judicial, vai depender. Há discussões de teses que podem levar até quatro ou cinco anos”, diz Gustavo Amaral, sócio responsável pela área tributária na Paulo Cesar Pinheiro Carneiro Advogados Associados. “E isso não necessariamente é linear, porque pode surgir um programa de parcelamento e quebrar essa sequência.”

Conteúdo especial: A luta contra o devedor contumaz de tributos

No setor de combustíveis, a figura do devedor contumaz se concentra na venda de etanol, que tem tributação dividida no refino e na distribuição, o que facilita a fraude.

O começo de tudo isso são empresas de fachada, com o discurso de bom cristão, falando para a ANP que estão começando com capital mínimo”, explica Carlo Faccio, diretor do Instituto Combustível Legal. “Em paralelo, começam a fazer vendas com operações interestaduais e a acumular dívidas. Só que até a Fazenda [do estado] identificar o não pagamento, há uma demora de dois a três anos.”

Depois desse período, quando há caracterização de devedor contumaz, as secretarias de Fazenda não conseguem exercer o direito de cobrança das empresas, que costumam não ter patrimônio e são registradas com capital mínimo.

Isso ocorre bastante com distribuidoras, que dependem de pouco capital para operar. “O débito não é cobrado, então tudo aquilo que a empresa deixou de recolher ao longo do tempo vira um lucro em detrimento do Fisco e dos competidores”, diz o advogado Gustavo Amaral.

Para continuar na atividade, outras empresas são abertas para fazer o mesmo, só que com um novo nome e registro. “Chega uma hora em que a Receita Federal toma uma atitude, suspende a atividade. Mas ele [devedor contumaz] já, paralelamente, criou um outro CNPJ, e simplesmente pula de uma empresa que vai abandonar, passa para outra e segue seu negócio”, explica Edson Vismona, do ETCO.

Os efeitos negativos do devedor contumaz são contraídos pelo Estado, que arrecada menos, e pelo mercado do setor em questão.

“O efeito sobre a concorrência é uma disrupção do que seria a concorrência natural daquele mercado”, destaca Eduardo Frade, sócio do VMCA e ex-superintendente do Cade. “Gera um desincentivo à entrada de novos concorrentes, além de uma série de saídas, com uma concentração maior do mercado”, diz. “Também há um efeito de seleção adversa, um efeito em que acaba se premiando os agentes que agem contra as regras e punindo aqueles que agem de acordo com as regras.”

No caso dos combustíveis, o preço final da gasolina chega a ser R$ 0,90 menor por litro em postos que comercializam produtos derivados de cadeias irregulares. No etanol, a variação chega a ser de R$ 0,51, de acordo com estudo feito pela consultoria Boston Consulting Group (BCG).

Matéria publicada em 31/08/2020 no Portal Jota, na sessão Jota Discute, que tem o apoio do ETCO.