Lei de transação fiscal aproxima contribuintes e PGFN, mas ainda tem baixa adesão

Até outubro do ano passado, quando foi editada a Medida Provisória do Contribuinte Legal, a única forma de o contribuinte conseguir descontos em multas e juros de tributos federais era em programas especiais de parcelamento, conhecidos como Refis. Quanto ao parcelamento, há um modelo ordinário de pagamento em até 60 vezes, mas sem desconto algum por parte da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.

A MP 899/2019 foi aprovada pelo Congresso no fim de março e em abril foi convertida na Lei 13.988, conhecida como lei da transação fiscal. Ela estabelece parâmetros permanentes para que os contribuintes possam obter descontos e parcelamentos para pagar tributos que entraram na categoria de Dívida Ativa da União. O estoque atual da Dívida Ativa da União e do FGTS é de R$ 2,4 trilhões, de acordo com o levantamento mais recente da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). O valor está dentro das expectativas, de acordo com própria PGFN.

Os descontos são de até 50% do valor total, desde que não altere o montante principal, ou seja, o tributo em si. Já o prazo de quitação é de até 84 meses. Há regras diferentes para sociedades cooperativas e Santas Casas de Misericórdia: com redução de até 70% do valor total e prazo de até 145 meses. Há a possibilidade de desconto total de multas, juros e encargos legais, desde que a soma não atinja os limites estabelecidos, de 50% e 70%, em relação ao montante.

“A Lei 13.988 trouxe uma vantagem para o contribuinte negociar suas dívidas direto com o ente público, mas os prazos que são concedidos são pequenos. Então dificilmente você vai ter um empresário fazendo isso, ele vai aguardar um novo Refis”, diz Luis Alexandre Oliveira Castelo, sócio do Lopes & Castelo Advogados.

Também há queixas quanto aos descontos propostos. “Na minha visão, como os descontos da transação não são atraentes, é provável que nós tenhamos novos projetos de lei de Refis, justamente para criar benefícios maiores para que mais gente venham a aderir ao programa para o governo arrecadar mais dinheiro”, avalia Leonardo Andrade, sócio da área tributária do escritório Andrade Maia Advogados.

Andrade também crítica o fato de a lei não tratar de precatórios: “Outra crítica que faço é que a lei não permite que o contribuinte devedor utilize seu precatório como uma moeda de troca na transação com o governo”.

Por outro lado, há um consenso quanto à importância da nova lei para estabelecer um diálogo maior entre contribuintes e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. “Em 20 anos de carreira, posso contar nos dedos das mãos as vezes que consegui conversar com um procurador. Não conseguíamos achar um canal de comunicação com a Procuradoria”, lembra Tatiana Chiaradia, sócia do Candido Martins Advogados.

“A Procuradoria, há mais de uma década, se predispôs a evitar litígios desnecessários que custam dinheiro. E tem se dedicado a essas ferramentas que colocam Fisco e contribuinte lado a lado em uma mesa redonda, sem arestas”, diz João Grognet, coordenador-geral de Estratégia de Recuperação de Créditos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. “Não quero que fique a imagem que estamos em uma mesa onde a discussão tenha um balanço sem compasso”.

Uma das principais novidades trazidas pela lei da transação fiscal é que há uma distinção dos contribuintes na hora de negociar o pagamento. A dívida a ser negociada é dividida em quatro categorias: A, B, C e D. “Só posso dar desconto para o crédito irrecuperável. A regra geral, é que a recuperabilidade é medida a partir da capacidade de pagamento do devedor”, explica João Grognet. “A capacidade de pagamento é estimada a partir de uma equação matemática em cima dos signos presuntivos de atividade econômica, financeiros e patrimoniais”.

Essas regras quanto ao cálculo da capacidade de pagamento estão presentes nos artigos 19 e 20 da portaria 9917/2020 da PGFN. O artigo 19 diz: “a situação econômica dos devedores inscritos em dívida ativa da União será mensurada a partir da verificação das informações cadastrais, patrimoniais ou econômico-fiscais prestadas pelo devedor ou por terceiros à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou aos demais órgãos da Administração Pública”.

Para Edson Vismona, presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), é preciso uma alta transparência na definição dessa classificação. “Uma sugestão que poderá conferir maior segurança jurídica é a criação de um canal para que se possa reportar possíveis equívocos no enquadramento”, diz.

Dívidas de até R$ 15 milhões só podem ser parceladas por adesão. Nesse caso, o contribuinte precisa aceitar todas as condições impostas no edital que propõe o parcelamento. Os editais publicados até o momento podem ser vistos aqui. Se o valor da dívida for maior do que R$ 15 milhões, é possível realizar a transação individual, com negociação direta com a PGFN. Para saber a situação da dívida de cada contribuinte, é preciso acessar o site da Receita Federal, mais especificamente o Centro de Atendimento ao Contribuinte, o e-CAC.

“O limite que estabeleceram, de R$ 15 milhões, é bastante alto para que os contribuintes possam fazer os pedidos de recuperação individual, que são mais interessantes, com as bases de pagamento e descontos sendo negociadas de forma mais personalizada”, avalia Fernanda Lains, sócia do Bueno e Castro. “Quando a gente fala em R$ 15 milhões é um valor baixo para contribuintes do Sul, Sudeste, que têm uma maior geração de receita. Quando vamos para as regiões Norte e Nordeste, fica difícil de alcançar esse limite”.

Há uma ressalva que gera críticas: o fato de o contribuinte que optar pela transação por adesão ter que abrir mão do litígio administrativo ou judicial relacionado ao tributo negociado. “A Lei dificulta a possibilidade de manutenção de medida judicial para a discussão de questão processual nos casos em que a tese de mérito seja objeto de proposta de transação, diz Edson Vismona, do ETCO.

Uma vez que a transação individual é estabelecida, a negociação é feita entre o contribuinte e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. “Uma transação individual exige inúmeras reuniões e discussões em torno do texto de um termo de transação. Pode envolver inspeção local no estabelecimento do devedor. Não é uma coisa para se acontecer no atacado, é no varejo”, explica João Grognet, da PGFN. “Os procuradores estão abertos, querendo resolver. Anos atrás eu não via essa disponibilidade na Fazenda”, ressalta Maurício Maioli, sócio head na área tributária do Feijó Lopes Advogados.

Até julho, foram transacionados 204 mil débitos, de 55 mil contribuintes, no valor total de R$ 18,8 bilhões, segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Em junho, o Ministério da Economia e a PGFN publicaram a Portaria 14.402, que estabelece condições para transação excepcional por causa dos efeitos econômicos causados pelo coronavírus. O período de adesão termina no dia 29 de dezembro e a transação pode ser feita no portal Regularize.

Baixa adesão com contribuintes esperando novo Refis

O primeiro programa de parcelamentos especiais foi criado no ano 2000, com a instituição do Programa de Recuperação Fiscal (Refis). Desde então, foram concebidos cerca de 30 programas de parcelamentos especiais, de acordo com levantamento da Receita Federal. Houve casos em que os contribuintes tinham acesso a uma redução de até 100% de juros e multas.

Diante desse histórico, grande parte daqueles que possuem dívidas tributárias com a União preferem esperar um novo programa de parcelamento e, por isso, a procura pela transação fiscal tem sido baixa. “Dos meus clientes, poucos aderiram porque estão na expectativa de obter descontos maiores com um novo programa de parcelamento”, diz Leonardo Andrade, sócio da área tributária do escritório Andrade Maia. “Muitos clientes nos procuraram para fazer uma simulação, mas ninguém efetivou”, conta Luis Alexandre Oliveira Castelo, sócio do Lopes & Castelo Advogados.

“Não vejo no curto prazo, depois dessa lei de transação, nenhuma possibilidade de Refis. Não há clima político para um novo Refis”, avalia Mauro Silva, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco). Em maio, o deputado federal Ricardo Guidi (PSD-SC) apresentou o Projeto de Lei 2735/2020, que propõe um novo programa de parcelamento em decorrência do estado de calamidade pública motivado pela pandemia.

A proposta prevê descontos de até 90% das multas de mora e de ofício, dos juros de mora e do encargo legal, mas não há perspectiva quanto ao avanço do texto no Congresso.

Também há quem considere os prazos permitidos pela lei da transação muito curtos. “Na lei de transação, o máximo de prazo que a Fazenda pode conceder é de 84 meses, e se for empresa do Simples até 100 meses. Os Refis antigos tinham prazos de 15 e até 20 anos”, destaca Maurício Maioli, do Feijó Lopes Advogados.

Além disso, a lei resolve uma parte das dívidas tributárias das empresas, especificamente aquelas com a PGFN. Por enquanto, negociações das dívidas com a Receita carecem de regulamentação.

“Se eu sou um empresário, fico pensando ‘tenho débito na Procuradoria, na Receita Federal e de ICMS’. Essa lei me concede o parcelamento do federal na parte da Procuradoria da Fazenda, eu ainda vou ficar inadimplente tanto para os débitos que tenho na Receita Federal, como para os débitos que tenho com o estado”, relata Castelo, do Lopes & Castelo. “Que benefício o empresário teria? Nenhum. Porque o que é preciso para operar no mercado é a certidão de regularidade fiscal, a CND, e com essa transação não é possível obtê-la. Não há um atrativo que estimule a adesão à transação tributária hoje”.

Por outro lado, há advogados que entendem que a lei vai exigir uma mudança de pensamento dos contribuintes. “A lei tem que evoluir junto com os bons contribuintes, que vão amadurecer com essas novas regras do jogo que a União está trazendo para a negociação”, avalia Tatiana Chiaradia, sócia do Candido Martins Advogados. “Vai ter que haver uma mudança de cultura, principalmente pelos contribuintes que são mal pagadores”, afirma Fernanda Lains, sócia do Bueno e Castro.

“As pessoas estavam muito acostumadas com aquele velho modelo do Refis. E a transação não é isso, envolve um outro tipo de diálogo com a Procuradoria. Junto com o contribuinte vai ser pensado quase que um plano de recuperação judicial, mas pensando os créditos tributários”, diz. “É um diálogo em novas bases, é uma nova cultura”.

Transação no contencioso

Outra novidade da Lei 13.988/2019 está no artigo 16, que diz que o Ministério da Economia poderá propor aos sujeitos passivos transação de litígios aduaneiros ou tributários decorrentes de relevante e disseminada controvérsia jurídica.

“Estamos esperando a regulamentação da transação que envolve o contencioso de controvérsias. Essa vai ser a grande novidade. Aqui vai envolver as empresas que estão discutindo teses”, explica Leonardo Varella Gianetti, advogado do Rolim, Viotti e Leite Campos.

As regras para desconto e negociação serão as mesmas, com limites de descontos e classificação de cada dívida. Nesse caso, a PGFN vai classificar como créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação aqueles nos quais há chances maiores de o contribuinte ter a tese aceita pelos julgadores.

“O que estamos antevendo é que se o contribuinte tem uma ação tramitando e vai ser julgada pelo STF em recurso de repercussão geral, por que ele vai abrir mão daquilo? Vai ser uma decisão de teoria dos jogos e caso a caso”, diz Maurício Maioli, do Feijó Lopes Advogados. Gianetti faz uma ressalva: “O problema é saber o tempo do processo e se vai ganhar. Um critério objetivo que temos é a jurisprudência. Demora muito tempo e é muito temeroso dizer que a tese é vencedora”.

Multas penais de fora

A lei de transação fiscal não permite descontos sobre multas de natureza penal. O presidente executivo do ETCO, Edson Vismona, entende que a lei deveria ter deixado de forma mais clara o que seriam “multas de natureza penal”.

“A expressão ‘de natureza penal’ acarreta dúvidas quanto aos limites da vedação imposta pelo dispositivo”, diz Vismona. “Seria conveniente esclarecer que apenas as multas impostas no âmbito de processo penal, conforme a Lei nº 8.137, não poderão ser objeto de transação, inexistindo restrição com relação às multas qualificadas, impostas por autoridades tributárias”.

O tributarista Leonardo Andrade também é crítico a este ponto da lei. “Esse tipo de medida ignora a prática de que tem muitos planejamentos tributários que tiveram a aplicação indevida da multa. Na prática, as multas foram aplicadas para qualquer caso”, argumenta. “Tenho vários clientes que tiveram aplicação de multa qualificada em casos que não havia crime e eles não vão ter benefício nenhum porque se entendeu na lei que não pode haver desconto para multas qualificadas”, diz. “A transação teve um escopo muito mais reduzido do que deveria”.

Matéria publicada em 21/08/2020 no Portal Jota, na sessão Jota Discute, que tem o apoio do ETCO.

 

“Se nada for feito, vai piorar”

Na avaliação do tributarista Everardo Maciel, presidente do Conselho Consultivo do ETCO, o problema do contencioso tributário tende a piorar se as lideranças do País não se conscientizarem de sua gravidade. Em sua opinião, a questão é árida e os políticos preferem temas que dão mais visibilidade, como a mudança no modelo de impostos. “É flagrante a dimensão, a magnitude, a persistência, a disfuncionalidade, enfim, a patologia do processo tributário no Brasil”, diz.

As soluções, no entanto, não lhe parecem tão difíceis de alcançar, desde que partam do diagnóstico correto. Com a experiência de quem comandou a Receita Federal durante os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002, ele aponta três grandes fontes de litígio que precisam ser enfrentadas: a excessiva liberdade do Fisco para interpretar as normas tributárias e autuar os contribuintes; as intermináveis demandas judiciais, promovidas por contribuintes, sobre a constitucionalidade de normas tributárias, no âmbito do que ele denomina “indústria das teses”; e a falta de clareza de alguns conceitos legais que provocam grandes disputas judiciais.

Nesta entrevista, ele explica os três problemas e apresenta as soluções que defende para cada um deles. Sua adoção, segundo Everardo, teria o efeito de fechar a torneira que inunda os órgãos de julgamento administrativos e judiciais de novos processos o tempo todo. Mas seria necessário resolver também o problema do elevado estoque de contencioso já formado – e para essa questão ele também apresenta uma proposta: permitir o uso de precatórios, créditos e prejuízos acumulados para liquidar dívidas tributárias inscritas em dívida ativa.
A seguir, os principais trechos da entrevista.

Revista ETCO: O contencioso tributário federal cresceu em cinco anos do equivalente a 42,7% para 50,4% do PIB, segundo pesquisa feita pela consultoria EY para o ETCO. O que esperar para o futuro?

Everardo Maciel: Se nada for feito, inevitavelmente, vai piorar. É isso o que vem acontecendo sistematicamente ao longo do tempo. Acho que não existe ainda uma consciência muito clara sobre a natureza e a dimensão do problema. Esse tema não tem visibilidade política. É mais charmoso, mais elegante falar sobre a criação de um novo imposto, alegando que é adotado em países desenvolvidos, do que falar em reformas processuais, por ser um tema muito árido e técnico e, por isso, de difícil assimilação. Elas não têm, por conseguinte, o necessário apelo político para que possam prosperar.

O nosso principal problema tributário é o processo. Qualquer que seja o sistema tributário, no aspecto material, se o processo for disfuncional, não vai dar certo. É claro que a incidência dos tributos, portanto, a competência tributária, é matéria importante. Mas a mais relevante é o processo. Especialmente no caso brasileiro, onde é flagrante a dimensão, a magnitude, a persistência, a disfuncionalidade, enfim, a patologia do processo tributário.

Quais as razões do alto nível de litígios tributários no Brasil?

Everardo Maciel: A litigiosidade tem dois aspectos a destacar. Primeiro, a origem do litígio: por que ele surge? Segundo, a resolução: como liquidar o litígio gerado? Vamos começar pela questão da origem. O litígio tributário tem basicamente três fontes: o Fisco, o contribuinte ou o conceito. O Fisco é fonte de litígio especialmente porque inexistem limites para os lançamentos de ofício. Se não existem restrições à lavratura de autos de infração, eles vão ocorrer. Porque o Fisco pode fazer qualquer autuação, sem que exista custo caso seja insubsistente. É o que chamo “lançamento sem ônus”.

Em relação à segunda fonte de litígios, o contribuinte, a razão está relacionada com o nosso modelo de controle de constitucionalidade das matérias tributárias. Mais especificamente, com o controle difuso, que permite a qualquer contribuinte entrar na Justiça para arguir a constitucionalidade de uma norma.

Por que o controle difuso alimenta tanto a litigiosidade?

Everardo Maciel: Porque nossa Constituição contém uma extensão amazônica de matéria tributária. Para ter uma ideia, o capítulo sobre tributação tem mais que o dobro de palavras que toda a Constituição dos Estados Unidos, que não tem nem sequer uma palavra sobre tributos, ou seja, o contribuinte tem amplo espaço para questionar a matéria tributária no aspecto constitucional. Então, um contribuinte entra na Justiça contra determinada matéria e logra êxito na primeira instância. Seu concorrente ingressa com uma ação idêntica em outro juízo, mas perde. E ambos percorrem um longo caminho pela via recursal até o Supremo Tribunal Federal encerrar a questão, o que costuma demorar de dez a vinte anos. E nesse período o que perdeu tem que seguir recolhendo os tributos e o que venceu, não, numa clara ofensa ao princípio constitucional da isonomia tributária. E isso se faz acompanhar daquilo que eu chamo de “indústria das teses”, um termo elegante que implica tentar descobrir qualquer coisa que exista do lado do contribuinte em relação à qual se possa arguir inconstitucionalidade e, no final, ele não pagar os impostos. Isso no Brasil se tornou uma indústria.

E a terceira fonte do contencioso, os conceitos?

Everardo Maciel: São concepções muito indeterminadas ou ambíguas presentes na legislação tributária, que facultam, especialmente por parte do Fisco, a geração de litígios. São conceitos que têm, para usar uma expressão do meu amigo e companheiro do ETCO, professor Hamilton Dias de Souza, “baixa densidade normativa”. A rigor, não são muitos os casos realmente importantes. Entendo que existem três bastante relevantes e que merecem uma solução: o planejamento tributário abusivo, o ágio [valor que pode ser abatido do Imposto de Renda quando uma empresa adquire outra por valor superior ao de seu patrimônio líquido] e a hipótese de multa substitutiva de perdimento no caso de interposição fraudulenta no comércio exterior [punição severa que o Fisco aplica ao enquadrar como fraude o uso de intermediários em operações de importação e exportação]. São matérias extremamente relevantes na constituição de litígios, mas note: nenhuma delas guarda relação com a natureza do imposto.

Até aqui, falamos apenas da origem dos litígios. Mas o senhor disse que o contencioso elevado se deve também ao nosso sistema de resolução das
disputas. O modelo atual precisa ser reformado?

Everardo Maciel: A resolução do litígio tem a ver com todos os procedimentos administrativos que existem para resolvê-lo – e o nosso modelo precisa de uma ampla reforma. Mas se eu fosse estabelecer uma hierarquia de importância, diria que resolver as causas que dão origem aos litígios é mais importante do que consertar os procedimentos de resolução, porque, me permita usar uma expressão do cotidiano, é inútil ficar enxugando o chão com a torneira aberta. Se o processo na sua origem continua descontrolado, por melhor que seja o modelo que eu venha a adotar para a resolução dos conflitos, ele será ineficaz pelo volume de litígios gerado. Frequentemente, quando se tenta tratar desse assunto no Brasil, vejo alguma atenção à resolução do litígio, mas quase nenhuma atenção à geração do litígio.

Como resolver esses problemas?

Everardo Maciel: Em relação aos litígios originários da administração tributária, acredito em uma solução que procure ajustar aos dias de hoje ideias que foram apresentadas nos anos 1960 e 1970 por grandes tributaristas, como Rubens Gomes de Souza, Gilberto de Ulhôa Canto, Geraldo Ataliba e Gustavo Miguez de Mello. Consiste na integração do processo tributário administrativo com o judicial, que possibilite à parte vencida no contencioso administrativo recorrer diretamente à segunda instância do Judiciário: o Tribunal Regional Federal, no caso de tributos federais, ou o Tribunal de Justiça, no caso de tributos estaduais e municipais.

Significa eliminar a primeira instância do Judiciário?

Everardo Maciel: Não necessariamente. Se o contribuinte não quiser entrar pela via administrativa, pode entrar pela via judicial, como aliás é hoje. Mas ambas acabariam direcionadas para o mesmo lugar. Porque o recurso, tanto administrativo como judicial de primeira instância, desaguaria no tribunal.

Quais são as principais implicações dessa integração?

Everardo Maciel: Primeiro, elimina a restrição que hoje impede a administração tributária de recorrer à Justiça quando perde o processo no âmbito administrativo. Segundo, obriga o perdedor a pagar sucumbência [os gastos que a parte vencedora teve com o processo]. E tendo sucumbência, passa a haver agora um limite ao lançamento, porque se o lançamento for insubsistente, haverá custo para o Estado. Assim, faz combinar autoridade com responsabilidade e previne abusos de lançamento.

Terceiro, permite eliminar a exigência atual de o contribuinte efetuar depósitos ou apresentar garantias para discutir o débito na Justiça, algo que é muito oneroso para as empresas.

E, quarto, a integração do processo possibilita substituir a execução judicial pela cobrança estritamente administrativa do crédito tributário. Isso teria um efeito extraordinário no funcionamento do Judiciário. O Brasil tem hoje cerca de 80 milhões de ações em curso na Justiça. Desse total, em torno de 31 milhões, ou seja, 38% correspondem a ações de execução fiscal. Já imaginou o que significa tirar todo esse peso do Judiciário? Seria uma mudança quase que revolucionária do ponto de vista do funcionamento da Justiça brasileira.

Existe proposta nesse sentido em discussão no País?

Everardo Maciel: Já se tentou fazer avançar isso no Senado Federal com a Proposta de Emenda Constitucional nº 112, de 2015, que teve origem na Operação Zelotes e na chamada CPI do Carf. Essa PEC, no entanto, não prosperou, sendo arquivada, aparentemente, pela nossa tendência de não tratar de matérias com um pouco mais de densidade técnica, apesar da sua relevância. Mas as linhas gerais dessa ideia estão lá montadas.

Seria necessário mudar a estrutura do órgão que cuida do contencioso administrativo, certo?

Everardo Maciel: Sim. Para que haja essa integração e a possibilidade de revisão da decisão administrativa no juízo, é preciso que o órgão do contencioso administrativo goze de autonomia administrativa e financeira. Eu defendo a tese de que o provimento dos cargos desse órgão seja feito por concurso público, ou seja, que tenhamos juízes administrativos independentes, que, ao contrário do que existe hoje, não representem nem o Fisco nem os contribuintes. E com vitaliciedade.

A integração deve vir acompanhada de previsão constitucional de normas gerais de processo administrativo e tributário, regulamentadas por lei complementar, e permitindo a delegação de competência, em relação a essa matéria, dos pequenos municípios para os Estados em que estão localizados. Hoje, 88% dos municípios brasileiros têm menos de 50 mil habitantes e, a rigor, não dispõem de condições necessárias para dar curso a processos de cobrança, fiscalização e julgamento de tributos. Deveriam ser autorizados a delegar essa competência à administração tributária estadual.

E os litígios relacionados com o controle difuso de constitucionalidade: como resolver?

Everardo Maciel: Acredito que isso possa ser feito por meio de uma mudança na Lei nº 9.868/1999, que trata do controle concentrado de constitucionalidade – aquele no qual o questionamento é feito diretamente ao Supremo Tribunal Federal. Essa lei estabelece as hipóteses para se ajuizar com uma Ação Declaratória de Constitucionalidade. O artigo 14, inciso 3, permite esse tipo de ação quando há relevante controvérsia judicial. Precisaríamos apenas acrescentar o seguinte complemento: “ou relevante repercussão fiscal”.

Assim, não seria necessário esperar que os processos envolvendo teses percorressem todo o caminho da primeira instância até o Supremo para se ter uma solução definitiva. A Fazenda Pública, ao entender que determinada matéria tem grande relevância fiscal, poderia entrar prontamente com uma Ação Declaratória de Constitucionalidade no STF.

Qual a solução para o contencioso que tem origem em conceitos mal formulados, como os três que o senhor citou: planejamento tributário abusivo, ágio em aquisições de empresas e uso ilícito de intermediários no comércio exterior?

Everardo Maciel: Cada um envolve aspectos específicos que não cabe tratar aqui, mas a solução para esses casos segue um modelo geral. Ele consiste em elaborar uma proposta de transação tributária estabelecendo uma solução para o futuro, corrigindo os pontos da legislação atual que estão gerando controvérsia, e outra para o passado. E deixar ao contribuinte o direito de optar pela adesão ou não a essa transação.

A propósito, o que o senhor achou dos modelos de transação tributária aprovados pela Lei nº 13.988/2020, sancionada em abril?

Everardo Maciel: Sobre a solução de conflitos por negociação direta, no caso de solução individual, eu tenho dúvidas de que isso vá prosperar. E por quê? Sobretudo porque vai existir sempre uma espécie de insegurança por parte da autoridade tributária para implementar a transação. Há sempre a perspectiva de tomar uma decisão e depois ser alvo de investigação pelo Tribunal de Contas ou ação de improbidade por parte do Ministério Público. Porque uma solução desse tipo não é nada trivial. Quando a autoridade estabelecer um desconto para a dívida, restará sempre a possibilidade de que alguém diga: “ele fez errado, ele poderia ter sido mais duro”. E isso é impossível avaliar.

Já a chamada “transação temática” eu acho que não dá certo. A transação temática envolve necessariamente anistias. E a Constituição é absolutamente clara ao estabelecer que a anistia, assim como a remissão, a isenção, a redução de base de cálculo, só pode ser feita por lei específica que trate exclusivamente da matéria. Eu sou muito pessimista em relação ao sucesso dessa nova lei, mas espero que o meu pessimismo seja desautorizado pelos fatos.

O que mais de importante precisaria ser feito no enfrentamento ao problema do contencioso?

Everardo Maciel: As ações das quais falei até aqui tratam basicamente do fluxo, da prevenção de novos litígios, mas precisamos enfrentar também o problema do estoque de contencioso. São necessárias medidas de limpeza nesse estoque. Isso pode ser feito por meio de uma grande compensação entre créditos e débitos dos contribuintes e do Estado. Uma possível solução seria permitir que o contribuinte utilize precatórios, prejuízos certificados ou créditos acumulados, próprios ou de terceiros, para liquidar créditos inscritos em dívida ativa. Se uma empresa não tiver créditos próprios, ela pode comprar de terceiros, conferindo liquidez a créditos que hoje são ilíquidos. Alguém pode dizer: “Mas isso vai criar um mercado”. Sim. Mas vende quem quer, compra quem quer. Com essa medida, limparíamos dívidas dos dois lados, reduzindo o volume de créditos inscritos em dívida ativa e também as dívidas do Estado.

Contencioso administrativo tributário federal: diagnóstico e perspectivas

O processo administrativo fiscal tem fundamento constitucional, uma vez que a Constituição Federal assegura a todos os cidadãos o direito ao devido processo legal e ao contraditório e à ampla defesa, tanto no processo judicial quanto no administrativo.

Sua utilidade vai desde possibilitar à Administração Tributária a revisão de seus atos administrativos, como o lançamento, até fornecer ao sujeito passivo um instrumento especializado e de amplo acesso para a solução de litígios tributários. Serve também de filtro ao Poder Judiciário, uma vez que as questões resolvidas em favor do sujeito passivo, em regra, não podem ser judicializadas.

Entretanto, como única porta de saída dos litígios tributários e com um arcabouço jurídico, na essência, de mais de meio século, o modelo atual do processo administrativo fiscal não apresenta a mesma efetividade observada no passado para resolver os problemas que se avolumam no contencioso tributário.
Nesse cenário, apresenta-se a seguir um diagnóstico da situação atual do contencioso administrativo tributário, suas causas e alternativas para o aperfeiçoamento do sistema.

Diagnóstico do modelo atual

O rito processual para solução de litígios tributários é regulado pelo Decreto nº 70.235/72, sendo composto por três instâncias julgadoras colegiadas.

Na primeira instância, de competência das Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJ), havia, em fevereiro deste ano, cerca de 267 mil processos à espera de análise, com tempo médio de permanência em contencioso de 948 dias. Quando se trata de processos prioritários (de contribuintes acima de 60 anos de idade ou com moléstia grave ou deficiência; acima de R$ 15 milhões; com representação fiscal para fins penais, entre outros), a temporalidade média é de cerca de 111 dias.

Os valores envolvidos nos processos em litígio na primeira instância administrativa equivalem a aproximadamente R$ 155 bilhões, entre processos de crédito tributário e de pedidos de restituição, ressarcimento ou compensação de tributos. A título de comparação, em fevereiro de 2019, o estoque de processos nas DRJ era de cerca de 261.000 processos, com permanência média de 969 dias.

A análise do estoque das DRJ revela que a grande maioria dos processos envolve baixos valores. São quase 70% dos processos com valores abaixo de R$ 60 mil, correspondendo a menos de 2% do montante total em litígio. O gráfico abaixo reflete a situação de fevereiro
de 2020:

A situação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), responsável pelos julgamentos em segunda instância e instância especial, não discrepa. Em números aproximados, são R$ 628 bilhões distribuídos em 116.400 processos em fevereiro de 2020, contra R$ 567 bilhões em 121.100 processos, em fevereiro de 20191.

Os processos de pequeno valor também representam o maior desafio para o Carf. Cerca de 61% do estoque atual são de processos abaixo de R$ 120 mil.
Em fevereiro de 2019, o Carf estimou o tempo para julgamento do estoque das Turmas Extraordinárias, que julgam processos de valor até 60 salários mínimos, em cerca de 6 anos, contra cerca de 1 ano na Câmara Superior de Recursos Fiscais e de 3 anos nas Turmas Ordinárias2.

Em suma, considerados apenas os órgãos julgadores administrativos, o montante em litígio perfaz o valor de R$ 783 bilhões. Isso significa 11% do PIB de 2019, equivalente a R$ 7,257 trilhões3.

O atual modelo do contencioso administrativo fiscal está esgotado e exige reformulação. O uso de ferramentas tecnológicas para automatizar o julgamento de processos, a centralização da gestão do acervo de processos aguardando julgamento em âmbito nacional, o fim da competência territorial das DRJs (atualmente, todas julgam processos de todo o país, respeitada a competência por matéria) e outras medidas gerenciais implementadas não foram suficientes para dar concretude ao princípio constitucional da razoável duração do processo4.

Os dados citados demonstram o alto grau de litigiosidade na seara tributária, o que não é uma exclusividade do contencioso administrativo. As execuções fiscais têm sido apontadas como o principal fator de morosidade do Poder Judiciário. Os processos de execução fiscal representam cerca de 39% do total de casos pendentes e 73% das execuções pendentes no Poder Judiciário, com taxa de congestionamento de 90% no ano de 2018. Isto é, de cada cem processos de execução fiscal que tramitaram no ano de 2018, apenas 10 foram solucionados5.

Causas do alto grau de litigiosidade administrativa

A intensa litigiosidade tributária é um fenômeno complexo, multifacetado, associado até mesmo a questões culturais. A complexidade da legislação tributária é a causa que mais se sobressai, mormente porque atrelada a uma série de obrigações acessórias dela decorrentes e à falta de previsibilidade das decisões administrativas e judiciais.

Ao lado disso, o processo administrativo fiscal também pode ser utilizado como meio de financiamento do débito tributário, o que acaba incentivando a litigiosidade. Sua longa duração possibilita o ingresso do sujeito passivo em inúmeros programas de regularização fiscal, os chamados “Refis”, para parcelar débitos de forma beneficiada.

Aliás, a prática reiterada de instituir programas de parcelamentos especiais tem sido um fator de estímulo ao não cumprimento espontâneo das obrigações tributárias, ao crescimento da litigiosidade e certamente uma causa importante do vertiginoso aumento do contencioso tributário administrativo e judicial.

Não obstante pressupor excepcionalidades para suas instituições, ao longo dos últimos 20 anos foram criados 76 programas de parcelamentos especiais, todos eles com expressivas reduções nos valores das multas, dos juros e dos encargos legais, prazos excessivamente longos para pagamento e, sem exceção, com baixos resultados efetivos na redução do passivo tributário.

O processo administrativo fiscal é ainda um processo gratuito, cujos débitos, corrigidos por juros simples, permanecem com exigibilidade suspensa ao longo do seu curso, permitindo a emissão de certidão com efeito de negativa. Nas hipóteses de possível repercussão na esfera criminal, a persecução penal fica ao aguardo da decisão definitiva no processo administrativo fiscal, a teor da Súmula Vinculante nº 24, do Supremo Tribunal Federal.

A decisão administrativa definitiva favorável ao sujeito passivo, em regra, é irreversível no âmbito judicial. De outro lado, se a decisão é favorável à Fazenda, a lide pode ser levada ao Poder Judiciário, sem que haja qualquer integração ou harmonização entre os processos administrativo e judicial, causando enorme desperdício de tempo, trabalho e custos.

Não bastassem todos esses aspectos a estimular a litigiosidade, a ausência de métodos alternativos de solução de litígios sobrecarrega os processos tributários.
Enfim, trata-se de um modelo sem precedentes no mundo quando comparado com outros países de maior competitividade global, que traz prejuízos tanto para o Estado como para a imensa maioria dos contribuintes.

Perspectivas para a melhoria do contencioso tributário

A melhoria do contencioso tributário passa por dois eixos principais de atuação: a prevenção à formação de novos litígios e a implementação de medidas visando à maior celeridade na solução dos litígios que surjam.

Prevenção de litígios

Sem dúvida, uma reforma tributária que implemente um sistema tributário mais simples, justo e uniforme possui um papel primordial na prevenção de litígios. Porém, por extrapolar a seara processual e pela sua complexidade, por ora esse assunto não será aprofundado.

Enquanto a reforma tributária não se concretiza, a Receita Federal tem buscado consolidar e sistematizar a legislação tributária e conferir maior agilidade na sua interpretação. Nesse sentido, foram editados vários atos normativos consolidando a legislação de tributos e revogando atos anteriores, como exemplificam o Regulamento do Imposto de Renda de 2018 e as IN RFB nos 1.700/2017, 1.911/2019 e 1.928/2020, tendo sido revogadas mais de uma centena de instruções normativas que não mais produziam efeitos. O tempo médio de permanência das soluções de consulta, por sua vez, foi reduzido de 261 dias em 2018 para 210 dias em 2019.

Outra iniciativa relevante é a promoção da conformidade tributária, visando ao incremento do grau de compliance. A Receita Federal objetiva incentivar e facilitar o cumprimento das obrigações tributárias, principais ou acessórias. Duas ações são complementares para a consecução de referido objetivo: a autorregularização e a simplificação das obrigações acessórias.

A autorregularização busca o cumprimento espontâneo da obrigação tributária, com a emissão de cartas e alertas e a realização de reuniões de conformidade, para que o contribuinte, antes do início do procedimento fiscal, possa regularizar pendências e inconsistências.

O exemplo mais conhecido é o da malha fiscal do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), que tem como resultado milhares de autorregularizações, evitando-se a instauração de procedimentos fiscais e de litígios subsequentes. O quadro abaixo revela o elevado número de autorregularizações relativas ao IRPF e o baixo quantitativo de autuações comparativamente às autorregularizações.

A Receita Federal instituiu também o Projeto Simplificação de Obrigações Acessórias, que contempla a aproximação com os Estados buscando-se o mapeamento e a eliminação de obrigações acessórias. Há ainda o objetivo de padronização dos leiautes de alguns módulos do Sistema Público de Escrituração Digital (Sped). Como resultado, vários Estados dispensaram obrigações tributárias acessórias em virtude da utilização da Escrituração Fiscal Digital de ICMS e IPI.

Implementação de medidas visando à maior celeridade na solução dos litígios

Tendo em vista que o contencioso administrativo tributário há anos não passa por uma reforma substancial, são inúmeras as possibilidades de avanço nesse campo, tais como: implementação de métodos alternativos de solução de litígios; arbitragem tributária como alternativa opcional ao julgamento feito pelo órgão administrativo; adoção de ritos diferenciados e simplificados conforme a natureza do processo; harmonização e/ou integração com o processo judicial; uniformização do marco normativo que vincula as instâncias administrativas; e emprego cada vez mais intensivo de tecnologia da informação, inclusive inteligência artificial, para a formação e julgamento de lotes temáticos e o auxílio na elaboração de decisões. A experiência de outros países, adaptada à nossa realidade, deve ser aproveitada.

Nesse contexto, recentemente foi aprovada pelo Senado Federal a Medida Provisória (MP) nº 899/2019, convertida na Lei nº 13.988 de 14 de abril de 2020, estabelecendo os requisitos e as condições para que a União e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio, nos termos do art. 171 do Código Tributário Nacional.

A referida Lei prevê a transação tributária na cobrança da dívida ativa da União e no contencioso administrativo tributário; quanto a este último, contempla a transação no tocante a litígios que envolvam relevante e disseminada controvérsia jurídica e a litígios de baixo valor. O modelo adotado guarda paralelo com o Offer in Compromise, utilizado pelo Internal Revenue Service dos Estados Unidos da América. Espera-se, assim, uma maior efetividade na arrecadação e a diminuição da excessiva litigiosidade, desafogando as instâncias julgadoras.

O texto sancionado também prevê rito diferenciado para o contencioso administrativo fiscal de pequeno valor, assim considerado aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere 60 salários mínimos. O julgamento passará a ser realizado em última instância pelas Delegacias de Julgamento, com vinculação aos entendimentos do Carf e aplicação subsidiária do Decreto nº 70.235/72.

Assim, à semelhança do que já ocorre nos juizados especiais federais, os processos de baixo valor terão rito simplificado e mais célere e o Carf terá uma redução do influxo desse tipo de processo, que constitui a maioria dos litígios.
Houve ainda a alteração no voto de qualidade (§ 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972), com a inserção por emenda ao texto da MP 899/2019 de dispositivo definindo que, em caso de empate no julgamento do processo, a resolução será favorável ao contribuinte. Esta medida certamente terá grande impacto no contencioso administrativo e, pelos amplos aspectos envolvidos, justifica ser objeto de outro artigo.

Conclusões

O exame das nuances do contencioso tributário pátrio evidencia a morosidade na solução de litígios e o acúmulo de processos e de crédito tributário, com enorme prejuízo para o Estado e a sociedade. Tal situação é comum aos contenciosos administrativo e judicial, dado o excessivo grau de litigiosidade da matéria tributária.

Apesar de os esforços empreendidos para a melhoria da gestão e o aumento da produtividade dos órgãos de julgamento terem produzido resultados extremamente significativos, o modelo atual do processo administrativo fiscal, por si só, não tem sido capaz de solucionar os litígios tributários com agilidade.

Assim, devem ser ampliadas as medidas para conferir maior celeridade à solução dos litígios e, principalmente, para prevenir a sua formação. Para além de uma reforma tributária que caminhe no sentido da simplificação tributária e da diminuição da litigiosidade, são necessárias medidas mais profundas no campo processual. Dentre outras, a adoção de métodos alternativos de solução de litígios, a arbitragem tributária como alternativa opcional ao julgamento feito pelo órgão administrativo, a implementação de ritos processuais diferenciados e a harmonização do processo administrativo com o judicial.
Nesse sentido, é alvissareira a recente aprovação da possibilidade de transação tributária e da instituição de rito processual simplificado para processos de pequeno valor, no âmbito da Lei nº 13.988/2020.

Fontes

1. http://idg.carf.fazenda.gov.br/dados-abertos/relatorios-gerenciais/2020/dados-abertos.pdf. Acesso em 27/03/2020.
2. http://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/situacao-do-atual-estoque-do-carf. Acesso em 27/03/2020.
3. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27007-pib-cresce-1-1-e-fecha-2019-em-r-7-3-trilhoes. Acesso em 27/03/2020.
4. O art. 24 da Lei nº 11.457/2007 estabeleceu prazo máximo de 360 dias para que as decisões administrativas sejam proferidas.
5. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em 27/03/2020.

É hora de enfrentar o contencioso tributário

As atenções do Brasil concentraram-se, nos últimos meses, nos temas fundamentais para o combate à maior crise de saúde enfrentada pelo mundo em mais de um século e seus profundos efeitos na economia. Quando superarmos a pior fase da pandemia, será hora de voltarmos a encarar os nossos antigos problemas. Melhorar o nosso sistema tributário, cuja disfuncionalidade constitui um raro consenso na sociedade brasileira, deve ter prioridade.

Dentro das discussões sobre reforma tributária, em nossa visão, há um tema que não vem recebendo a merecida atenção por parte dos atores políticos do País: o flagelo do contencioso tributário. Lamentavelmente, o Brasil amarga o vergonhoso posto de campeão mundial de litígios entre o Fisco e seus contribuintes.

Com o intuito de dar visibilidade ao tema e contribuir na busca de soluções, no ano passado contratamos a consultoria EY (Ernst & Young) para fazer um diagnóstico do problema. O estudo, lançado em novembro, mostrou que o contencioso cresce de maneira descontrolada e já supera o equivalente à metade do PIB brasileiro – uma proporção que não encontra paralelo em nenhum outro lugar do mundo.

Esta edição da Revista ETCO dá continuidade a esse trabalho. Além de apresentar os resultados do estudo da EY, ela traz a visão de dezenas de nomes importantes que têm envolvimento com esse problema e condições de influenciar na busca de soluções. Nomes que representam diferentes pontos de vista da questão – Fisco, contribuintes, advogados tributaristas, Judiciário e segmento acadêmico –, com análises sobre as causas do fenômeno e as medidas que defendem para prevenir os litígios tributários.

Três aspectos dessa discussão merecem atenção especial. O primeiro diz respeito ao passado, à busca de solução para o estoque de contencioso já formado. O País vem registrando alguns avanços nesse sentido – e cabe aqui um elogio ao Congresso Nacional, que em abril converteu a Medida Provisória do Contribuinte Legal, apresentada no ano passado pelo governo federal, na Lei nº 13.988/20, regulamentando algumas modalidades de transação tributária. É necessário agora estimular a utilização desse mecanismo e partir para outras ações a fim de reduzir o estoque gigantesco gerado no passado.

O segundo aspecto são iniciativas para resolver as causas do problema e assim prevenir a formação de contencioso novo, portanto, soluções para o futuro. Infelizmente, temos notado poucas ações focadas nessa direção. Instrumentos como mediação e arbitragem de conflitos, que são empregados com sucesso em países com alto nível de segurança jurídica tributária e baixo índice de contencioso, poderiam ter um papel muito importante na solução das divergências entre o Fisco e os contribuintes antes de se tornarem disputas formais.

Também aqui cabe reconhecer esforços importantes adotados nessa direção, como o programa Nos Conformes, criado pelo governo estadual de São Paulo em 2018, que valoriza os bons contribuintes permitindo a autorregularização de débitos tributários, evitando litígios. Mas ainda há muito a fazer para melhorar o relacionamento entre o Fisco e os contribuintes e reverter a cultura de desconfiança mútua que existe hoje no País.

O terceiro ponto é o combate àquele que é o oposto do bom contribuinte: o devedor contumaz de tributos. Trata-se de um tipo de fraudador que estrutura seu negócio para ganhar mercado não por meio da oferta de bons produtos ou serviços, mas sim por não recolher os impostos devidos e usar essa vantagem ilícita para praticar preços predatórios, beneficiando-se da complexidade do sistema tributário e da morosidade da Justiça para fugir da lei.

A luta do ETCO contra essa forma de concorrência desleal é antiga e foi inclusive citada em julgamento do Supremo Tribunal Federal realizado em dezembro passado pelo relator do processo, o ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto vencedor a favor da criminalização dessa prática. Esse julgamento fortalece a urgente necessidade de aprovação de lei que faça a clara distinção entre o devedor contumaz e o inadimplente eventual, permitindo um combate mais duro ao primeiro e respeitando os direitos do segundo. Um projeto nesse sentido, o PLS 284/2017, encontra-se no Senado Federal pronto para ser votado e tem o nosso integral apoio.

Espero que o estudo da EY e as propostas de grandes especialistas reunidas nesta edição lancem mais luz sobre a necessidade de termos instrumentos eficazes para solucionar esse problema que tanto mal vem fazendo ao Brasil.

Boa leitura.

“Nos acostumamos a conviver com normas imperfeitas”

Formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Zabetta Macarini Gorissen é diretora executiva do Grupo de Estudos Tributários Aplicados (Getap), instituição fundada há dez anos e que atualmente reúne setenta empresas associadas, de diversos setores da economia. O Getap se dedica a contribuir para o aperfeiçoamento da legislação tributária brasileira com base em quatro pilares: simplificação, racionalização, neutralidade e segurança jurídica na relação Fisco-contribuinte.

Zabetta considera que o contencioso é decorrência principalmente da combinação entre a complexidade do sistema tributário do País e a falta de ações para combater a litigiosidade dela decorrente. “Temos um verdadeiro emaranhado de normas tributárias de difícil compreensão, aplicação e cumprimento, tanto pelos contribuintes como pela própria administração tributária”, ela avalia.

Confira a seguir alguns trechos da entrevista.

Prevenção a litígios tem resultados tímidos

Apesar de terem sido adotadas nos últimos anos algumas medidas para a redução da litigiosidade entre Fisco e contribuintes, como mutirões de pagamento e programas de parcelamentos e anistias (“Refis”), nas esferas federal, estadual e municipal, essas iniciativas não alteraram o cenário caótico.

Novas iniciativas baseadas nos princípios do Cooperative Compliance, fixados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), estão sendo desenvolvidas e implementadas, visando a redução de litígios. São estratégias modernas de conformidade que provocam a aproximação do Fisco e dos contribuintes para a discussão de questões tributárias, a exemplo do programa Nos Conformes, do Estado de São Paulo, e do Negócio Jurídico Processual, no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Diante do nível do contencioso existente, no entanto, os resultados ainda são tímidos.

Custo da gestão tributária pressiona as empresas

Temos um verdadeiro emaranhado de normas tributárias de difícil compreensão, aplicação e cumprimento, tanto pelos contribuintes como pela própria administração tributária.

Em razão do “lançamento por homologação”, é o contribuinte que, nos tributos de maior complexidade, como Imposto de Renda, PIS, Cofins, ICMS, IPI e ISS, interpreta a legislação, aplica ao caso concreto, efetua o cálculo, o recolhimento do tributo devido e, ainda, preenche e entrega as inúmeras e complicadas obrigações acessórias.

No últimos anos, as administrações tributárias em geral assumiram uma postura mais “combativa” que a usual e passaram a autuar os contribuintes de forma mais incisiva, aplicando multas exorbitantes, criminalizando condutas, imputando responsabilidade tributária a administradores e acionistas, o que impactou de forma ainda mais negativa o contexto de litigiosidade no País.

É grande a preocupação das empresas com os valores expressivos envolvidos nessas discussões ao longo de muitos anos de tramitação. São valores que se somam aos demais custos de administração e gerenciamento dos processos, como honorários advocatícios, custos para garantia com cartas de fiança e seguro-garantia e a realização de depósitos judiciais para a suspensão da exigibilidade dos créditos tributários em discussão.

Muitas vezes a emenda sai pior que o soneto

No Brasil, nos acostumamos a conviver com normas imperfeitas. Salvo raríssimas exceções, em vez de fazermos correções ou ajustes para evitar consequências indesejadas, adotamos o litígio como a única forma de solução para questões tributárias.

Além disso, é recorrente no País a utilização de “normas regulamentares” ou procedimentais como forma de ajustar, corrigir, interpretar outras normas – o que, na grande maioria das vezes, agrava ainda mais a situação, pois frequentemente essas novas normas regulam a matéria de modo diverso, restringindo direitos e distorcendo conceitos.

Existem meios viáveis e transparentes que servem ao aperfeiçoamento das regras antes de sua entrada em vigor – como, por exemplo, consultas públicas e a criação de grupos de estudos com participação de representantes do Fisco e dos contribuintes para debate prévio do conteúdo da norma.

O próprio instituto da consulta tributária, previsto na nossa legislação, poderia ser muito útil para essa finalidade, mas, infelizmente, na prática é pouco utilizado.

Creditamento financeiro reduziria contencioso

De maneira simplificada, podemos considerar que grande parte do contencioso hoje existente está relacionado a divergências relativas à interpretação do princípio da não cumulatividade, adotado pelo nosso ordenamento jurídico tributário para o ICMS, IPI, PIS e Cofins, por meio do creditamento físico dos bens adquiridos de forma geral.

São inúmeros questionamentos, autos de infração, ações judiciais relativas a diferentes interpretações sobre o que dá crédito do tributo e o que não dá, se o bem adquirido é insumo ou é material de uso e consumo, matéria-prima ou produto acabado, entre outras questões.

Além disso, e por consequência, temos também vários problemas relativos à restituição e à compensação de créditos tributários, gerados em virtude desse modelo de tributação, sob a justificativa de que esses créditos são controversos e demandam fiscalizações e homologações prévias, que também impactam de forma significativa o caixa e o resultado das empresas.

Seria de grande contribuição se fossem implementadas alterações na legislação atual desses tributos, para que se passe a adotar o método de creditamento financeiro – ou seja, todas e quaisquer aquisições tributadas, de bens e serviços, geram direto ao crédito correspondente ao valor do tributo destacado na nota fiscal de aquisição, de forma automática. Com isso, a restituição/compensação de créditos acumulados seria facilitada e grande parte do contencioso hoje existente poderia ser encerrada.

“Não há atalhos para resolver o contencioso”

Economista com trajetória ligada à área de Tributação, Lorreine Messias é formada em Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (USP), com especialização em Direito Tributário pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrado acadêmico em Administração Pública e Governo, com ênfase em Política e Economia do Setor Público, também pela FGV. Atuou no Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) e na LCA Consultores ao longo dos últimos anos. É pesquisadora do Núcleo de Tributação do Insper.

Ela lembra que o alto nível de litigiosidade que se vê no Brasil decorre da insegurança jurídica e da complexidade do sistema tributário, de tal forma que só combatendo essas causas será possível reduzir seus efeitos. Um dos resultados mais perversos do quadro, na opinião dela, é a contenção dos investimentos privados. “Recursos que poderiam ser usados pelas empresas em pesquisa e inovação, melhoria de processos e novos negócios são alocados no pagamento de escritórios de advocacia e contabilidade, seguros e provisões em balanços”, descreve.

A seguir, trechos da entrevista.

Números muito superiores à média internacional

O contencioso tributário, nos três níveis federativos, considerando-se tanto os tribunais administrativos quanto os judiciais, alcançou 73% do PIB brasileiro em 2018, conforme estudo que realizei ao lado de Larissa Longo e Breno Vasconcelos, a partir da coleta de dados em bases estatísticas públicas. Isso faz do Brasil o campeão mundial em litígios tributários.

Desse patamar, o contencioso tributário administrativo na esfera federal respondeu por 16,4% do PIB, ante 0,28% e 0,19% de mediana nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da América Latina, respectivamente, de acordo com dados da OCDE para o ano de 2015.

Esse grau de litigiosidade muito superior aos padrões internacionais deixa claro que se trata de um problema a ser enfrentado. E não há atalhos nesse sentido. O sistema de tributação requer uma mudança estrutural e alinhada às melhores práticas internacionais.

O alto grau de litigiosidade inibe o crescimento do País

O grau de litigiosidade tributária está diretamente associado ao grau de insegurança jurídica e ao grau de complexidade de um sistema tributário, conforme sugerem estudos sobre o assunto.

O Brasil é um caso extremo. Ocupa a pior posição em termos de complexidade tributária entre cem jurisdições analisadas pelo estudo Tax Complexity Index, elaborado por duas universidades alemãs.

Temos um sistema descolado das boas práticas internacionais de tributação, estruturado a partir de normas complexas, dispersas em vários dispositivos normativos, sujeitas a alterações frequentes e problemas de redação.

Este quadro favorece o aumento dos litígios, marcados por divergências de interpretação e alta instabilidade jurisprudencial. Do ponto de vista econômico, o grau elevado de litigiosidade tributária reduz o crescimento potencial do País.

Dentre os canais de impacto, está o efeito da litigiosidade sobre o investimento privado: recursos que poderiam ser usados pelas empresas em pesquisa e inovação, melhoria de processos e novos negócios, por exemplo, são alocados no pagamento de escritórios de advocacia e contabilidade, seguros, provisões em balanços e outros gastos associados aos litígios.

É preciso adaptar as normas à economia digital

Com relação à tributação sobre o consumo, a adoção de Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA) é fundamental. Não se trata de uma mudança politicamente fácil, mas é necessária do ponto de vista econômico.

Somente com a adoção de um bom IVA, aos moldes de países tidos como exemplo – Nova Zelândia, Austrália, Chile, África do Sul –, poderemos criar um ambiente econômico e jurídico mais favorável ao investimento externo e elevar nossa competitividade perante o grupo de economias emergentes.

Iniciativas que buscam ajustes marginais no sistema atual de tributação sobre o consumo tendem a ser pouco efetivas no médio prazo. Isto porque o modelo atual – em especial, ICMS, ISS, PIS/Cofins – possui problemas estruturais e é pouco adequado para lidar com as novas tendências. Em tempos de economia digital e trabalho remoto, deixaram de fazer sentido, por exemplo, parâmetros aplicados pelas legislações atuais, entre eles, a definição do local de prestação do serviço para definir a qual ente o tributo deve ser pago e a diferenciação entre mercadoria e serviço.

“Não se pode culpar os auditores pelo contencioso”

Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Mauro Silva é auditor fiscal da Receita Federal e está à frente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), entidade associativa que representa a categoria em âmbito nacional.

Para ele, a falta de investimentos no aperfeiçoamento profissional dos auditores potencializa problemas como interpretações divergentes da complexa legislação tributária do País. Outra questão relevante, observa o presidente da Unafisco, é a falta de consciência dos contribuintes sobre a importância dos tributos e do trabalho da Receita Federal. “Como não há investimento adequado em educação fiscal desde a infância, o brasileiro adulto não desenvolveu a cidadania fiscal”, avalia.

Acompanhe alguns trechos da entrevista.

Os brasileiros veem os impostos como estorvo

O gigantesco contencioso brasileiro se deve em grande parte à complexidade das nossas normas tributárias. Pode-se creditar parte dessa complexidade à demanda por benefícios setoriais, ou seja, aos interesses de alguns setores.

Além disso, os contribuintes muitas vezes transformam o contencioso em parte do seu planejamento tributário, postergando o pagamento de tributos para direcionar os recursos a outros objetivos.

Como não há investimento adequado em educação fiscal desde a infância, o brasileiro adulto não desenvolveu a cidadania fiscal e vê o tributo não como um preço pela cidadania, mas como um estorvo. Falta, assim, compreensão sobre a importância do trabalho da Receita Federal e do auditor fiscal. Claro que o mau uso dos recursos públicos ajuda nessa resistência ao dever fundamental de pagar tributos.

É preciso investir em aperfeiçoamento profissional

Os auditores fiscais da Receita Federal do Brasil, como servidores públicos, estão sempre vinculados a fazer aquilo que a lei estabelece. Assim, não se pode culpar os auditores pela situação em que se encontra o contencioso tributário. Cumprimos a lei.

As leis são elaboradas pelo Congresso Nacional e em boa parte das vezes ignoram as orientações e propostas da administração tributária. Legisla-se para atender interesses de grupos de pressão e, em muitos casos, interesses pessoais dos parlamentares. As normas infralegais acabam por refletir a desordem e a complexidade que resultam da elaboração da lei tributária nesse cenário de falta de preocupação com o interesse público.

O cenário se torna ainda mais complexo por conta da grande carência de investimento na Receita Federal: houve corte no orçamento disponível para o órgão, não há investimento em treinamento para os auditores e não há incentivos para aqueles servidores que buscam aperfeiçoamento profissional.

Além de tudo isso, não houve abertura de novos concursos públicos nos últimos anos, acarretando insuficiência no quadro de auditores, o que leva a um acúmulo de processos a serem julgados ou analisados.

Há punições previstas para auditores que erram

Quando se fala sobre a suposta falta de punições para fiscais que cometem erros, isso não é verdade. O Código Penal prevê um tipo penal aplicável aos servidores públicos que exigem o pagamento de tributos indevidamente: é o crime de excesso de exação, disposto no artigo 316, §1º. Ou seja, se o auditor fiscal atua com dolo, prejudicando o contribuinte, será punido.

Além disso, as empresas que provarem ter sofrido dano pela atuação estatal – o que inclui a atuação da fiscalização tributária – podem acionar o Judiciário e cobrar do Estado uma indenização, cabendo ao ente estatal a ação regressiva contra o auditor. Nosso ordenamento já possui mecanismos adequados para tratar dessas questões.

Toda atuação dos auditores fiscais é feita por meio dos atos administrativos, que devem ser motivados, sob pena de nulidade. Se não há motivação adequada, deve-se recorrer ao Poder Judiciário para anular o ato.

Entretanto, as interpretações aplicadas no trabalho do auditor fiscal são baseadas no ordenamento jurídico e, como se sabe, o Direito comporta várias visões. Se não há investimento em treinamento e aperfeiçoamento constante, as interpretações podem ser divergentes. Essa constatação é mais uma razão pela qual alertamos que é de extrema importância que se invista mais em treinamentos periódicos para os auditores fiscais.

Pôr fim aos privilégios é necessário e urgente

É possível pensar em uma reforma infraconstitucional, por exemplo, reavaliando e reduzindo a quantidade de benefícios fiscais em vigor atualmente, e a quantidade de regimes especiais, situações que causam distorções no sistema e influenciam a decisão dos agentes econômicos.

Há extrema necessidade de se rever os benefícios fiscais que muitas vezes privilegiam alguns poucos setores e não trazem qualquer retorno para a sociedade.

Deve-se pensar na construção de um sistema tributário mais justo, revendo a incidência da carga tributária, que se concentra muito no consumo e pouco na renda e no patrimônio, onerando mais aqueles que têm menos capacidade contributiva.

Com relação especificamente ao contencioso tributário, sugere-se a redução das instâncias administrativas de três para duas instâncias, o que tornaria o processo no âmbito administrativo um pouco mais célere. Ademais, há uma tendência de melhora na relação entre Fisco e contribuinte, no sentido de possibilitar meios de autorregularização dos contribuintes, em detrimento de ações meramente punitivas.

“O contribuinte, a Fazenda e o Judiciário têm de fazer a sua parte”

A procuradora Juliana Furtado Costa Araújo, que coordena a defesa da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) no TRF-3, considera que tanto Fazenda quanto contribuinte têm responsabilidade na redução das discussões tributárias no País. Nesta conversa, Juliana, que também é professora da FGV Direito SP, elogia inovações introduzidas pelo Código de Processo Civil (CPC) de 2015, aponta como sua equipe luta para diminuir o número de casos discutidos e propõe um tratamento mais rigoroso a devedores contumazes.

Leia os principais trechos da entrevista.

Um ambiente ruim

O litígio impacta, claro, a implementação de políticas públicas, gera insegurança jurídica, porque você não sabe se aqueles valores vão entrar nos cofres públicos ou não, e se a União terá ou não de devolver dinheiro ao contribuinte.

E este ambiente de insegurança é muito ruim. Tanto para a União, para o setor público, quanto para o contribuinte, que está ali e também precisa ter regularidade na vida da sua empresa. O aumento do contencioso é grave, e tanto contribuinte quanto a Fazenda têm de fazer sua parte, como o Judiciário também.

Dificuldade de conclusão

O que me chama bastante atenção neste acréscimo é a demora que há para solucionar esse litígio. Teses e temas muito relevantes, para os contribuintes e para a Fazenda, que demoraram anos para serem resolvidos. Um típico exemplo é a exclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins, que tem um contencioso da própria tese e um reflexo muito grande. Mas não só isso: discussões sobre responsabilidade tributária de administradores que estão há anos sem uma resposta rápida do Judiciário.

Tivemos medidas, com o CPC de 2015, na tentativa de solução, mas temos muito pouco tempo para alcançar uma resposta positiva da implementação dessas mudanças. Sou superentusiasta do sistema de precedentes e acho que ele veio exatamente para que o Judiciário seja mais ágil, mas ainda temos que imaginar que esse sistema entra em um contexto onde não existia esse precedente. Primeiro precisamos acomodar essa nova realidade, para começar a ver os resultados.

Responsabilidade da Fazenda e dos contribuintes

É necessário que tanto o contribuinte possua responsabilidade tributária quanto a Fazenda. Como procuradora-chefe da defesa da PGFN na 3ª Região, coordeno toda a defesa da União em São Paulo e no Mato Grosso do Sul. E conseguimos enxergar alguns números muito elevados desse contencioso.
Sem contar a execução fiscal, todas as outras questões envolvendo litígios tributários em São Paulo e no Mato Grosso do Sul somaram 200 mil intimações no ano passado. É muita coisa, e a União precisa fazer algo para mostrar que está disposta a reduzir esse contencioso. Nós aqui temos um índice de redução de litigiosidade bem grande e, sem contar o primeiro grau, deixamos de apresentar recurso em cerca de 13 mil processos. É um número bem significativo.

E tomamos também medidas pela extinção de processos de execução fiscal. Só em 2019, extinguimos cerca de 35 mil Certidões de Dívida Ativa (CDA) na capital paulista. Essa responsabilidade da União é por estar preocupada com a redução de litigiosidade, mas também uma preocupação de implementar medidas que tragam o contribuinte para próximo da Fazenda.

Reduzir o contencioso interessa a todos

A União ganha por reduzir o litígio, aumentar a negociação e negociar garantias. E o contribuinte ganha bastante: além de reduzir litígios, ele terá uma previsibilidade maior nos pagamentos daquilo que deve e reduzirá custos; terá um controle maior de suas economias e de seu patrimônio. Quando a Fazenda se abre para reduzir litigiosidade ou para conversar com o contribuinte, ela mostra que está disposta a reduzir esse contencioso, e nada melhor que números para mostrar que esta redução é real.

O contribuinte tem também uma responsabilidade enorme nessa redução de litigiosidade. Há muitos litígios com o objetivo procrastinatório. Mas não estou dizendo que todos os contribuintes litigam com esse objetivo. Na verdade, para mim, a responsabilidade do contribuinte está em saber escolher aquilo em que vale a pena litigar. Todos têm que ter responsabilidade no objetivo final de reduzir este contencioso gigantesco, que não interessa a ninguém.

Normas para permitir o diálogo

O diálogo que tenha como objetivo a conformidade fiscal é a grande mudança que já está em fase de implementação e precisa ser cada vez mais amadurecido. Mas não se pode manter um diálogo com o contribuinte se não houver instrumentos normativos que deem suporte para que esse diálogo finalize.

Quando falo em “abrir o diálogo”, é porque estou embasada em previsão normativa lá no Código de Processo Civil; quando falo em poder conversar com o contribuinte e negociar, por exemplo, via transação, como a MP 899/2019 [convertida na lei nº 13.988/2020], eu preciso desse fundamento normativo.

Não adianta apenas estabelecer, por iniciativas da própria Fazenda, tais medidas para reduzir a litigiosidade. Temos instrumentos nossos que nos permitem não apresentar recursos, mas eles estão fundamentados em lei. [A lei nº 13.988/2020] é uma das medidas mais inovadoras. Estávamos aguardando há anos essa regulamentação.

Devedor contumaz

É muito importante que se consiga, dentro do contencioso, classificar o contribuinte. Aquele que chamamos de “bom contribuinte” precisa ter benefícios e sentir que a administração tributária reconhece essa característica dele. Por outro lado, aquele contribuinte que nitidamente se envolve em fraudes fiscais estruturadas e em situações onde está claro que não se pretende negociar o tributo, que ele não quer pagar, mas sim procrastinar, precisa ter a atenção devida da Fazenda Pública.