“Todos cometem erros nessa questão: o Fisco, os contribuintes e o Judiciário”

O procurador Leonardo de Andrade Rezende Alvim, da PGFN, acredita que a base fragmentada é a principal causa do elevado contencioso tributário brasileiro e que a solução definitiva passa por uma reforma tributária que unifique os tributos sobre consumo e reduza incentivos fiscais.

Mas defende também medidas específicas, como mais transparência na elaboração e na interpretação das normas pelo Executivo, incluindo a obrigatoriedade de apresentação de seus documentos preparatórios e fundamentos jurídicos. Também propõe mudanças no processo tributário, como o envio de decisões do Carf diretamente para a segunda instância do Judiciário.

Ex-Procurador-Geral Adjunto de Consultoria Tributária da Fazenda Nacional, pesquisador do Insper de São Paulo e professor de Direito tributário da Escola Superior Dom Helder Câmara, de Belo Horizonte, Alvim integra o grupo de trabalho encarregado da regulamentação da transação tributária de teses jurídicas.

A seguir, trechos da entrevista.

Unificação das bases e fim de benefícios fiscais

O problema começa quando existe uma base tributária muito fragmentada. Nos outros países, não há o imposto sobre consumo dividido entre PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS, mas só um IVA sobre consumo. Aqui, você tem a possibilidade que mais de 5 mil municípios, os Estados e a União ofereceçam benefícios fiscais.

Por mais cuidadosos que sejam aqueles que fazem as normas, você jamais vai evitar o surgimento de contencioso com uma base tão fragmentada. Isso gera disputa entre os entes públicos, um excesso de normas. Não vamos acabar com o contencioso sem uma reforma tributária que resolva esse problema.

A resolução do contencioso passa por uma simplificação de base e fim de benefícios fiscais. Sem ela, todas as outras são medidas paliativas que reduzem, mas não acabam com o problema do contencioso.

Mais respeito à intenção de quem criou a norma

Posso extrair várias normas de um mesmo texto, com diferentes interpretações. Lá fora, o argumento “intenção de quem fez a norma” tem mais peso do que no Brasil. Na Alemanha, mesmo que o texto permita extrair outra interpretações, os motivos e o argumento de quem fez a norma prevalecem com maior frequência. Aqui, o texto vira algo livre para interpretar como se fosse um poema. E isso gera contencioso. Porque se houvesse um respeito maior pela intenção de quem fez a norma, você geraria menos contencioso.

Decisões divergentes e sem fundamentação

Todos têm erros nessa questão: o Fisco, os contribuintes e o Judiciário. O Fisco não pode ter três órgãos interpretativos em matéria tributária. No âmbito federal, o sistema não pode ter Receita Federal, PGFN e às vezes o Advogado-Geral da União se manifestando sobre matéria tributária.

Outro ponto importante é que esses órgãos precisam ter mais coerência com os fundamentos jurídicos utilizados. Hoje, não têm. Se você hoje procurar saber os fundamentos jurídicos de qualquer um dos órgãos, não vai conseguir achar. Vai conseguir o resultado interpretativo que ele deu, mas os fundamentos utilizados para chegar àquele resultado não são expostos. Se o contribuinte conhecesse os fundamentos que a PGFN, a Receita e a AGU utilizam e eles fossem uniformes, teria muito mais previsibilidade. Hoje, muitas vezes, esses órgãos utilizam fundamentos conflitantes em casos diferentes.

Lucro com o contencioso

A ideia de que o contencioso gera um custo alto para as empresas não é inteiramente correta no meu entendimento. Alguns contribuintes lucram com o contencioso: conseguem na Justiça redução dos tributos muito maior que os gastos com contador, advogado, garantias. Acabam pagando menos tributos que os concorrentes que não seguem o mesmo caminho.

Varas especializadas no Judiciário

Outra causa é o Judiciário não ter especialização na matéria tributária. Esse é um gigantesco fator de insegurança jurídica. Quando existe uma determinada causa tributária, o contribuinte sabe que qualquer coisa pode ser decidida, porque é como se um leigo estivesse decidindo.

Nós não temos varas especializadas. As varas que julgam processos tributários na Justiça Federal podem pegar tanto temas como benefício previdenciário quanto uma tese tributária. O juiz que julga esses casos é como um clínico geral na medicina. Seria importante haver turmas especializadas nos tribunais para julgar processos tributários.

Do Carf direto para a segunda instância do Judiciário

Uma proposta que eu defendo, embora não tenha sido quem a criou, é que decisões proferidas no Carf não voltem para a primeira instância do Judiciário, mas vão direto para os tribunais. O Carf é um órgão extremamente especializado cuja qualidade das decisões é infinitamente superior às do Judiciário e não justifica ter uma decisão da Câmara Superior do Carf voltando, por exemplo, para uma Subseção judiciária de Uberlândia para depois subir até o STF. As decisões do Carf deveriam ir em grau recursal para o TRF e não para a primeira instância.

Mais transparência com os fundamentos das normas

Todos os atos normativos deveriam ter exposição de motivo – e essa exposição deveria detalhar mais por que cada artigo, cada dispositivo foi incluído. Deveria ser obrigatório que todos os documentos preparatórios daquela norma se tornassem públicos junto com o próprio texto: o parecer que permitiu sua criação, as notas técnicas, a exposição de motivos para você realmente entender por que cada dispositivo foi proposto.

Também deveria haver indexação por tema e entendimento consolidado da PGFN com a Receita dando os fundamentos jurídicos de cada resultado interpretativo. Tudo isso deveria ficar disponível em um banco de dados público.

“Legislação complexa e distanciamento entre o Fisco e o contribuinte”

Uma legislação complexa, uma cultura que não favorece o diálogo entre o Fisco e o contribuinte, um sistema que facilita a litigância e uma dificuldade dos tribunais superiores em dar vazão aos casos que tramitam sob a sistemática de repetitivos e de repercussão geral são fatores que explicam o elevado contencioso tributário do País. A opinião é da Procuradora-Geral Adjunta de Consultoria e Estratégia da Representação Judicial, Adriana Gomes de Paula Rocha.

Mas ela cita avanços que estão sendo discutidos ou já estão em vigor em todas essas frentes, como a estratégia da própria PGFN de desistir de casos com baixo potencial de êxito para não afogar ainda mais o Judiciário e medidas para aproximar o Fisco e os contribuintes.

Confira os principais trechos da entrevista.

Cultura de litigância e facilidade de acessar o Judiciário

O contencioso tributário tem várias causas. Nosso sistema tributário é muito complexo, temos uma quantidade imensa de normas, uma profusão legislativa que causa muita dúvida, muitas incertezas. Temos também uma cultura arraigada de litigância na nossa sociedade. Existe uma dificuldade no diálogo entre o Fisco e o contribuinte – e a tendência de levar qualquer divergência para a Justiça.

Sempre buscamos o Judiciário para a solução dos problemas e há ferramentas, legítimas, que favorecem o litígio, como é o exemplo do mandado de segurança, que tem baixo custo e permite a desistência a qualquer tempo. Outro fator importante é o excesso de decisões conflitantes em primeira instância. Isso tudo acaba alimentando o contencioso e fazendo com que o sistema não consiga dar vazão ao fluxo de processos.

Sensação de que processos importantes estão parados

Desde a edição da Emenda Constitucional que tratou dos recursos repetitivos e da sistemática de repercussão geral (EC nº 45, de 2004], não houve diminuição significativa como era esperada da taxa de congestionamento do Judiciário, conforme demonstram os relatórios Justiça em Números. O STJ e o STF não estão conseguindo dar vazão aos temas de repercussão geral. Embora reconhecendo os esforços para agilizar a pauta, para conseguir cumprir o que é planejado, isso não acontece na rapidez necessária, gerando a sensação de que os processos importantes, que estão suspensos aguardando as decisões do STJ e STF, estão parados. Isso causa grande insegurança jurídica. A sistemática dos recursos repetitivos e da repercussão geral ainda não atingiu o objetivo da norma quando foi criada.

Abuso no uso de recursos e educação fiscal

Não interessa à Fazenda Nacional nem ao contribuinte a demora na entrega da prestação jurisdicional, mas, às vezes, dependendo da estratégia do contribuinte, existe um abuso na utilização dos recursos oferecidos pelo sistema judicial. Porque a demora do Judiciário pode repercutir positivamente no planejamento do contribuinte, o que não ajuda a pacificação dos conflitos.

Temos também um problema de falta de educação fiscal. Hoje, o cidadão não consegue perceber tudo que é feito com o valor dos tributos recolhidos e que efetivamente existe um retorno para ele. Sempre parece que nós, a administração tributária, somos antagonistas, e a ideia não é essa. Todo mundo aqui está trabalhando para ter uma sociedade mais justa, todos pagando, todos recebendo a contraprestação do Estado.

Separar o bom contribuinte do devedor contumaz

Costumo brincar que a Receita Federal deveria mudar o seu símbolo, que é o Leão, por algo que não seja assustador. Precisamos nos aproximar, conversar, valorizar o bom contribuinte, o cidadão que paga os tributos e que por algum motivo entende que deve questionar a lei. Ao mesmo tempo, precisamos evitar a prática daquele devedor contumaz que está se aproveitando dessa situação para litigar, não pagar o tributo e prejudicar seu concorrente.

Estratégia de redução de litigiosidade

Temos buscado, em toda a administração tributária, uma estratégia de redução de litigiosidade, de não insistir naqueles recursos que não teriam viabilidade de sucesso. Na hora em que se foca nos processos estratégicos, o êxito é muito maior. Nós nos esforçamos para melhorar a legislação nesse sentido, para ajudar inclusive numa via de mão dupla com o Judiciário.

Para ter uma ideia, em 2019, na PGFN da 1ª Região, desistimos de mais de 722 apelações e apresentamos 1.152 petições de desistência em processos no STJ e 115 no STF. Isso é uma coisa que a Procuradoria vem fazendo há alguns anos para não aumentar o congestionamento no Judiciário.

Consenso sobre simplificação tributária

Existe um esforço da equipe econômica de simplificar a legislação nos estudos que estão acontecendo em relação à reforma tributária. É nítido para todos a necessidade de simplificar a legislação, simplificar os tributos federais, então está todo mundo convergindo para isso.

Novos instrumentos para promover o diálogo

Tínhamos poucas ferramentas para promover o diálogo entre o Fisco e os contribuintes, mas isso está mudando. Os negócios jurídicos processuais já são uma realidade e ganharam força no ano passado. Temos sentido um retorno positivo inclusive por parte dos advogados privados, que estão até indo buscar a Fazenda para tentar [celebrar o] negócio jurídico. E agora temos muita expectativa em relação à regulamentação da transação tributária [lei nº 13.988/2020, aprovada em abril a partir da MP 899/2019 – ou MP do Contribuinte Legal]. Ela representa um grande avanço para o Brasil. No âmbito da regulamentação da transação tributária para os casos envolvendo teses jurídicas, ela é bastante inovadora. Vejo grande potencial de mudarmos de patamar em relação ao contencioso.

“Precisamos mudar a cultura de desconfiança mútua”

O Procurador-Geral Adjunto de Consultoria e Contencioso Administrativo-Tributário, Phelippe Toledo Pires de Oliveira, acredita que a legislação complexa e a cultura de desconfiança entre o Fisco e os contribuintes contribuem para o nível alto de litígios fiscais verificado no Brasil. “É muito maior do que em outros países”, afirma. Ele cita também o alto número de recursos existentes no sistema processual e potenciais vantagens financeiras de discutir dívidas tributárias nos tribunais como fatores importantes.

Para reduzir o problema, aposta em mecanismos que aproximam o Fisco dos contribuintes, como a adoção dos chamados negócios jurídicos processuais e da transação tributária, que permitem negociações diretas entre a autoridade tributária e o devedor. Defende ainda a criação de programas que prestigiem os bons contribuintes.

A seguir, um resumo da entrevista que fizemos com ele.

Muitos processos e excesso de recursos

A quantidade de processos e o elevado número de recursos existentes no sistema jurídico brasileiro causam lentidão nos julgamentos. Dou o exemplo do processo administrativo tributário em âmbito federal: em primeira instância, o contribuinte efetua a impugnação do lançamento à DRJ. Depois, o sistema permite um recurso ordinário, que vai para o Carf. Em seguida, você tem a possibilidade de embargos. Depois, recurso especial para o CSRF. Se o recurso não for admitido, existe a possibilidade de agravo. Isso apenas na esfera administrativa, sem contar a esfera judicial. Enfim, existem inúmeros recursos que acabam prolongando o contencioso.

Complexidade da lei e diversidade de interpretações

Uma das principais causas do contencioso é a complexidade da legislação – e a diversidade de interpretação decorrente dessa complexidade. Outra causa é a facilidade de acesso do contribuinte ao órgão administrativo e ao órgão judicial e potenciais vantagens decorrentes disso. No processo administrativo, ele tem a suspensão da exigibilidade do crédito tributário – a Fazenda não pode cobrar a dívida e o contribuinte tem direito à Certidão [Negativa de Débitos Tributários].

Além disso, ele tem a possibilidade de uma decisão por um órgão técnico, o Carf, que é muito bom. E se a decisão for favorável ao contribuinte, a administração tributária não pode recorrer ao Judiciário – é definitiva. Já, se ele perder, pode se socorrer do Judiciário. Existe uma sobreposição de instâncias: primeiro, uma administrativa, e se perder nela pode novamente suscitar a questão perante o Judiciário. E aí entra naquela história da demora, porque, se no âmbito administrativo às vezes leva seis a oito anos, no Judiciário pode levar ainda mais tempo.

Estímulos financeiros para o litígio

Litigar pode trazer vantagem financeira para o contribuinte de duas formas. A primeira diz respeito aos juros: nos processos judiciais, quando o contribuinte perde, os juros são corrigidos pela taxa Selic – juros simples. Se ele aplicar o dinheiro, ganha juros compostos. Hoje, os juros estão relativamente baixos, mas há pouco tempo a taxa estava em 14%. Evidentemente existem as multas e o custo da contração de advogados.

Além disso, há os programas de parcelamento, que na verdade são parcelamentos estimulados com anistia e remissão, com perdão da multa e por vezes até perdão parcial dos juros. Então, o contribuinte discute administrativamente enquanto aguarda a possibilidade do parcelamento em condições vantajosas. Apenas no âmbito federal, foram vários os programas de parcelamento nos últimos quinze anos.

Receio do fisco de corrigir normas

Quando surge divergência de interpretação, existe certo receio do Fisco em corrigir a norma para torná-la mais clara, pelo fato de que isso pode acabar gerando um argumento para o contribuinte em litígio, que pode dizer: “Está vendo como a minha interpretação estava correta? Tanto era verdade que o Fisco alterou a legislação em outro sentido”. As alterações promovidas pela MP 905/2019 em relação ao PLR (Programa de Participação nos Lucros e Resultados) são um bom exemplo. Tão logo publicada a medida, esse argumento foi suscitado pelos contribuintes em casos pendentes de julgamento perante o Carf.

Caminhos para aproximar o Fisco e o contribuinte

Existe uma desconfiança entre o contribuinte e a administração tributária no Brasil. Precisamos mudar essa cultura de desconfiança mútua, aproximar os dois lados. Essa é uma recomendação da OCDE e estamos começando a seguir esse caminho. Dou três exemplos: o primeiro são os negócios jurídicos processuais, que foram introduzidos pelo novo Código de Processo Civil e possibilitam à administração tributária fazer algumas concessões, principalmente em relação à garantia do crédito.

O segundo é a transação em matéria tributária, prevista no Código Tributário Nacional desde 1966 [e transformada na lei nº 13.988/2020, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada em abril a partir da MP 899/2019, ou MP do Contribuinte Legal].

Avisar o contribuinte antes de aplicar multas

O terceiro, que acho que pode ser um próximo passo, seria o que se denomina de “programas de conformidade cooperativa”, que é uma coisa na linha de prestigiar o bom contribuinte. Ou seja: não simplesmente ir lá e colocar uma penalidade, que chega por vezes a 150%, para aquele contribuinte que não sabia que deveria ter declarado determinado rendimento, por exemplo. Mas, sim, permitir que o contribuinte tenha uma relação de maior diálogo com a administração, apresente a sua situação fiscal para a administração tributária, e a administração tributária dê um posicionamento de antemão. Assim, prestigia-se a segurança jurídica.

Outra possibilidade seria não aplicar de imediato as multas: o contribuinte seria avisado de eventual desconformidade da declaração para que ele a corrigisse, sem precisar impor a multa.

“Faz sentido hoje lançamentos abrangendo períodos de cinco anos?”

Rita Eliza Reis da Costa Bacchieri é uma das conselheiras que representam os contribuintes nos julgamentos do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), por indicação da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Desde fevereiro de 2020, acumula o cargo de vice-presidente do Carf. Em sua visão, o alto nível de contencioso verificado no Brasil reflete problemas como a complexidade do sistema tributário, a baixa qualidade das normas, a lentidão no julgamento de temas controversos e os altos valores dos lançamentos. Segundo ela, autuações referentes a períodos de cinco anos, que somam tributos, juros e multas, muitas vezes atingem cifras que inviabilizam a manutenção da atividade econômica das empresas.

Para reduzir a complexidade, ela acredita no caminho da reforma tributária. E defende medidas pontuais para evitar dívidas impagáveis, como permitir a regularização do débito antes do lançamento e reduzir os períodos para a realização de fiscalização, tendo em vista as modernas ferramentas de que o Fisco dispõe hoje para identificar rapidamente eventuais irregularidades por parte dos contribuintes.

Mais detalhes na entrevista a seguir.

Dívidas que surgem já impagáveis

É inegável que a complexidade do sistema tributário é o grande causador dos litígios. Também temos normas de baixa qualidade, com redação ruim, e muitas vezes a interpretação quanto aos seus conceitos e efeitos só surgem depois de muitos anos.

Considerando o prazo decadencial de cinco anos, quando se verifica uma conduta incorreta por parte do contribuinte, em geral, ela enseja automaticamente um passivo elevado e, considerando o porte médio das empresas brasileiras, impagável. Esse cenário gera insegurança jurídica, afastando investimento e, muitas vezes, estimulando a migração das empresas menos estruturadas para a informalidade.

O aumento do contencioso também está relacionado ao aperfeiçoamento dos instrumentos de fiscalização, que facilitou a constatação de desvios ou práticas passíveis de discussão, elevando o volume de autuações.

Baixa efetividade na cobrança dos valores em contencioso

Dentro do tripé de fiscalização, contencioso e arrecadação, o que sempre me surpreende são os números sobre o recebimento dos valores e o confronto entre o crédito tributário principal e os demais valores atrelados à cobrança. Cito como exemplo a situação do estado de Minas Gerais. Segundo levantamento feito pelo Tesouro Nacional, entre 2009 e 2017, foram arrecadados cerca de R$ 5,1 bilhões em receitas de dívida ativa. Entretanto, em março de 2019, segundo a administração tributária de Minas, ainda havia R$ 65,4 bilhões registrados em dívida ativa no Estado, sendo que R$ 14,3 bilhões eram referentes ao tributo em si e o restante às multas e juros.

Para mim, esses dados, assim como os efeitos observados dos reiterados programas de parcelamentos de débitos criados por União, estados e municípios, mostram que o modelo atual de contencioso tributário talvez não esteja sendo efetivo do ponto de vista da arrecadação. A situação acende um alerta sobre a necessidade de repensarmos a forma de cobrança do crédito tributário.

Reforma tributária e medidas pontuais

Para reduzir o problema do contencioso, é necessário simplificar a legislação, o que passa pela realização de uma reforma tributária nesse sentido. Em termos mais práticos, alguns pontos me parecem importantes. Os programas de parcelamento trazem efeitos inegáveis, levando muitos contribuintes a desistir das discussões administrativas e judiciais em troca da possibilidade de pagar os débitos com expressivos descontos de juros e multa.

Observando esse comportamento, tenho a impressão de que se, antes do lançamento, fosse dada ao contribuinte a oportunidade de explicar ou mesmo apresentar denúncia espontânea, talvez nem todos os lançamentos fossem necessários. Isso foi percebido em relação ao Imposto de Renda da Pessoa Física e a criação da malha fiscal.

Outro ponto diz respeito ao período de fiscalização. Diante da evolução tecnológica e da sofisticação dos seus processos, será que ainda faz sentido o Fisco realizar lançamentos abrangendo períodos de cinco anos?
Sei que há de fato a discussão das teses, e essas são essenciais, mas minha opinião passa pela constatação de que muitos contribuintes optam pelo contencioso simplesmente por não possuírem recursos financeiros para adimplir um lançamento cujo valor – elevado em razão da extensão do período de apuração, dos juros e multa – impacta a manutenção da atividade produtiva.

O papel de tribunais administrativos como o Carf

O Carf é hoje um órgão extremamente técnico, embora as críticas ainda sejam comuns, em especial sobre a capacidade dos conselheiros representantes dos contribuintes. Mas é senso comum entre aqueles que ali atuam que a qualidade e o comprometimento dos julgadores são inquestionáveis.

Ter um tribunal administrativo forte e altamente capacitado é importante. Primeiro, porque, caso o litígio seja encaminhado para o Judiciário, ele chegará mais maduro, facilitando a tomada de uma decisão mais coesa para a sociedade. Segundo, porque as decisões reiteradas do tribunal podem se tornar fonte de direito, evitando a multiplicação de autuações.

“Precisamos de um tratamento especial ao bom contribuinte”

A presidente do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), Adriana Gomes Rêgo, comanda o principal tribunal administrativo do País há dois anos. O órgão, que conta com mais de uma centena de conselheiros, reúne um acervo de 116,7 mil processos, somando R$ 624 bilhões em créditos tributários. No ano passado, publicou 26.090 acórdãos, analisando quase R$ 371 bilhões em valores disputados entre Receita Federal e contribuintes pessoas físicas e jurídicas.

Adriana entende que o Carf tem cumprido o papel de diminuir o seu estoque de processos, mas que a solução passa por outros caminhos fora do tribunal. Em sua opinião, a autorregularização e o compliance contribuiriam para reduzir a litigiosidade tributária no País.

Complexidade da legislação e fragilidade coercitiva

Hoje, o tempo de julgamento, tanto no contencioso administrativo quanto no contencioso judicial, é algo que prejudica até o cumprimento espontâneo da arrecadação, e é uma prestação de serviço à sociedade que está sendo adiada.

Uma das causas do excesso de litigiosidade é a complexidade da legislação, que gera interpretações divergentes. Outro ponto é a fragilidade na coerção da legislação tributária. Há países onde, quando a pessoa deve um imposto sobre o seu carro, se toma o carro. E aqui, hoje, não há mecanismos de exigência tão facilitados, o que acaba no não cumprimento da arrecadação tributária.

Mais julgamentos do que causas novas

A própria estrutura do contencioso não é compatível com o volume atual de processos. O Carf, desde 2019, julga pela primeira vez mais processos do que recebe. Julgamos 1,33 processo para cada processo que entrou no tribunal. Na Câmara Superior, essa taxa foi de 1,72. Temos dado vazão ao fluxo. O problema é o acervo elevado.

Entre 2011 e 2014, a Receita Federal praticamente duplicou o número de julgadores de primeira instância, sem que no Carf houvesse essa duplicação. A entrada era maior que a saída a tal ponto que se julgava entre 59% e 62% do que entrava. A falta de colegiado em 2015 [após a operação Zelotes] também ajudou a aumentar o acervo.

Causas de baixo valor que exigem análise probatória

Outra característica do acervo que dificulta sua vazão é o fato de que são processos onde prevalece a análise probatória. Mais de 50% do nosso acervo são processos de baixo valor, que não podem ser resolvidos por súmulas. Já criamos turmas extraordinárias em 2016 e 2017 para analisar tais casos, mas são processos que não se resolvem via repetitivo.

Simplificar a lei e dar tratamento especial ao bom contribuinte
Um passo fundamental seria a simplificação da legislação. Se os pontos mais controvertidos fossem trabalhados no sentido de sua resolução preventiva, teríamos menos litígio.

O caminho que eu considero o mais importante, porém, seria a ampliação de mecanismos de compliance e de cumprimento espontâneo. Um tratamento especial para o bom contribuinte, de autorregularização, para tentar fazê-lo cumprir suas obrigações tributárias antes da efetuação do lançamento. Diferenciar aquele que sonega de forma deliberada daquele que não quer sonegar, mas comete erros, e dar ao bom contribuinte um tratamento diferenciado. A diferenciação tem um aspecto educador. Ela é benéfica quando trata o bom contribuinte em um ambiente de autorregularização mais fácil.

Aumentar a estrutura, mas tratando as causas do litígio

A melhor alternativa seria o processo administrativo nem começar. Seria investir no compliance, fazer um mapeamento de quem são os bons contribuintes e oferecer um tratamento diferenciado a eles.
Trabalhar a estrutura resolve? Resolve, mas não faz sentido para o Estado aumentar o número de turmas do Carf se não trabalhar lá na origem. É preciso trabalhar a origem, a causa-raiz, que é o surgimento do litígio.

Se eu tivesse de trabalhar com uma única solução, eu trabalharia para a autorregularização, para a aproximação e a convergência entre a administração tributária e o administrado, que é o contribuinte.

Além do aumento na velocidade dos julgamentos

O caminho que estamos buscando é o de uma prestação de serviços mais célere à sociedade. Adotamos vários mecanismos de eficiência, já classificamos cerca de 70% dos nossos processos com inteligência artificial e estamos julgando mais processos do que recebemos. Mas podemos contribuir ainda mais para a redução do contencioso, por exemplo, na fixação da jurisprudência vinculante e na promoção de um alinhamento entre a Receita Federal, o Carf e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a partir do momento do lançamento do tributo.

“Não adianta atacar só os sintomas, precisa tratar as causas”

A professora de Direto tributário Vanessa Canado é um dos principais nomes responsáveis pela elaboração do projeto de reforma tributária do governo federal, atuando como assessora especial do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ela entende que a gravidade do contencioso tributário brasileiro não tem paralelo no mundo. Atribui o problema à complexidade do nosso sistema de impostos. E defende que o País busque soluções profundas e de longo prazo, não se contentando com medidas paliativas. Mas suspeita que as condições para a reforma tributária necessária não estejam suficientemente maduras.

A seguir, trechos da entrevista.

Gravidade observada em pesquisas e conversas com investidores

A proporção de contencioso sobre o PIB, tanto no estudo do ETCO quanto em pesquisa do Insper, da FGV e do CCiF, é astronomicamente superior à mediana dos demais países. Essa tem sido também uma reclamação constante de investidores e empresas que atuam no Brasil. No passado, o debate sobre reforma tributária era centrado no tamanho da carga. Nos últimos anos, passou a ser a melhora na relação Fisco-contribuinte. Quando você olha o balanço das empresas abertas, chama muita atenção o contencioso tributário, que é elevado até comparativamente ao contencioso trabalhista. Eu participo de muitos seminários internacionais, estive este ano no G-20 e noto que esse não é um problema relevante lá fora, mas uma questão bastante doméstica.

O problema é a complexidade do nosso sistema

Embora tenhamos um sistema duplo de julgamento do contencioso – administrativo e judicial – que não é muito comum no mundo; embora o processo seja demorado; embora muitas vezes haja também julgamentos tendenciosos; isso tudo não me parece ser um diagnóstico da causa do problema.

Não tenho nenhuma dúvida de que a causa do contencioso é o desenho equivocado do sistema tributário, desde o sistema constitucional tributário, que, por exemplo, separou a tributação do consumo, dando ensejo a essa causa bilionária do STF, de exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS-Cofins, até chegar às regrinhas de substituição tributária e margem de valor adicionado no ICMS, que muda de produto a produto, de estado a estado.

Com essas inúmeras regras, é óbvio que vai existir sempre mais de uma interpretação possível, que é onde surgem os conflitos entre o Fisco e os contribuintes. Isso é uma bola de neve que pode até diminuir de tempos em tempos, com os programas de refinanciamento de dívidas, com as forças-tarefa do Carf para diminuir o estoque de contencioso, só que isso é um pouco como enxugar gelo – não estanca o problema.

Erros de diagnóstico e soluções paliativas

Vejo muitas pessoas dizerem que uma das causas do contencioso tributário é o fato de que pagar imposto no Brasil dá muito trabalho. Mas por que pagar imposto dá muito trabalho? Porque temos um monte de impostos, um monte de regimes diferentes, um monte de bases de cálculo, um monte de alíquotas. Me preocupa fazer um diagnóstico apressado e superficial e adotar medidas que não vão resolver o problema. Embora seja possível dar soluções mais paliativas e que melhorem o ambiente de negócios agora, é importante que essas soluções paliativas venham acompanhadas das soluções de longo prazo.

Reduzir os tratamentos diferenciados

O que geralmente acaba com o contencioso é eliminar diferenças, ou seja, um sistema tributário mais homogêneo, em que haja uma carga tributária mais moderada para todo mundo e menos tratamentos diferenciados.  Um exemplo é a PLR (Participação nos Lucros ou Resultados), que não paga tributação de folha e é hoje um dos maiores contenciosos na tributação da folha. O que as pessoas discutem? Se é ou não é PLR. Então, a partir do momento em que se cria essa diferenciação no sistema tributário, cria-se contencioso. Geralmente, trazer regras mais detalhadas não acaba com o contencioso, mas cria mais pontos para serem interpretados.

A questão ainda precisa amadurecer

Embora a discussão sobre a reforma tributária seja antiga, ela só está sendo debatida mais profundamente com a sociedade recentemente, de cinco, dez anos para cá. Ainda é preciso amadurecer muito essa discussão. Existe essa coisa natural do ser humano, dos medos das mudanças profundas, as pessoas tendem a insistir em medidas mais pontuais. Acho que isso é normal, é uma coisa de todos os países, por isso que a discussão demora. Demora para aprofundar, demora para amadurecer. Tenta-se uma medida pequena e se vê que não funciona, aí uma hora as pessoas vão perceber que precisa entrar em alteração mais profunda além das questões pontuais.

Enquanto não temos a reforma ideal

Se não se consegue fazer uma reforma tão ampla, que sejam afastados pelo menos os principais problemas do sistema atual. Vou dar um exemplo. No caso do PIS-Cofins, as principais causas estão relacionadas basicamente a dois assuntos: a questão da exclusão do ICMS e do ISS da base de cálculo; e a questão dos créditos: o que dá direito de crédito, o que não dá direito de crédito. Se não se consegue fazer uma reforma da tributação do consumo que de algum modo unifique os impostos, pelo menos é possível endereçar esses dois problemas.

O que eu proponho é: claro que existe uma reforma ampla que vai trazer um impacto muito maior, mas dá para fazer algumas alterações pontuais partindo de uma hierarquia. Então, pode-se fazer um diagnóstico olhando do maior contencioso para o menor, olhar o que deu ensejo àquele problema e atacar aos poucos. Não precisa ser uma reforma do sistema como um todo, de uma vez só.

“O que hoje demora cerca de oito a dez anos para apreciação pelo STF pode ser reduzido a um”

O tributarista Hamilton Dias de Souza, sócio fundador do escritório Dias de Souza Advogados Associados e membro do Conselho Consultivo do ETCO, aponta problemas na postura do Fisco e no funcionamento do Judiciário como fatores importantes para a situação de insegurança jurídica vivida pelos contribuintes brasileiros.

Para ambos os casos, apresenta propostas. Para conter os abusos do Fisco, defende que o Estado e os auditores fiscais sejam responsabilizados pelos prejuízos causados aos contribuintes quando os autuam de maneira arbitrária, particularmente na fixação de multas qualificadas. “Há dispositivo constitucional expresso no sentido de que, se o Estado causar prejuízo a alguém, deve reparar o dano, e se o agente público tiver agido com dolo ou mesmo culpa, deverá responder até pessoalmente”, afirma.

Em relação ao Judiciário, propõe uma mudança profunda no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade de normas tributárias, a qual, em seus cálculos, reduziria o tempo de demora para o caso chegar ao Supremo Tribunal Federal de cerca de oito anos para algo em torno de um.

A seguir, a entrevista que fizemos com ele.

Em vez de prestar ajuda, busca-se o erro

A questão da litigiosidade se deve em grande parte ao fato de a Receita Federal ter uma posição parcial. O agente fiscal, em vez de orientar a empresa e verificar se há boa-fé, normalmente procura o erro, daí autuando a empresa. Mesmo em instruções normativas e respostas a consultas há normalmente uma atitude pró-Fisco.

O que seria desejável? Primeiro, que os atos fossem imparciais, que respeitassem a legalidade e tivessem o objetivo de instruir o contribuinte. Segundo, que o agente fiscal, sobretudo ao autuar uma empresa, não fosse além de uma interpretação razoável da lei, sob pena de ser responsabilizado pelos prejuízos que viesse a causar àquela empresa. Isso é possível, há dispositivo constitucional expresso no sentido de que, se o Estado causar prejuízo a alguém, deve reparar o dano, e se o agente público tiver agido com dolo ou mesmo culpa, deverá responder até pessoalmente. É o que dispõe o artigo 37, parágrafo 6º da Constituição Federal.

Alterações na jurisprudência dos Tribunais

Faço críticas ao Judiciário por muitas vezes tomar decisões alterando jurisprudência sobre matéria tributária, criando conceitos novos distintos de doutrina estabelecida, o que contribui negativamente para a segurança jurídica. Mesmo advogados tributaristas como eu muitas vezes têm grande dificuldade de imaginar como vai ser o julgamento do Supremo. Às vezes, os juristas e a doutrina do País inteiro vão numa determinada direção e o Tribunal toma uma decisão que ninguém esperava. Não é razoável que onze pessoas possam decidir inúmeras vezes de forma discrepante do pensamento da maioria da doutrina brasileira. Mas é o que muitas vezes vem ocorrendo. Além disso, a doutrina do Supremo, isto é, a fundamentação que o tribunal utiliza nos julgamentos, varia de um caso para o outro. As empresas ficam desassossegadas, há um clima geral de insegurança.

Por que a decisão final demora tanto

Nosso sistema de controle de constitucionalidade é ruim. Na maioria das vezes, o Supremo decide uma questão após oito, dez anos ou mais do fato gerador da controvérsia. Os casos começam na primeira instância, em que cada juiz dá uma decisão num determinado sentido, vão depois para os tribunais, que também são erráticos, passam pelo STJ, que pode decidir contrariamente aos tribunais de segunda instância, e quando a matéria chega ao Supremo não raro a decisão do STJ é reformada. E o contribuinte passa dez anos sem ter segurança do que será decidido em relação à sua questão.

Controle de constitucionalidade mais rápido

Eu e meu colega Daniel Corrêa Szelbracikowski elaboramos uma proposta de mudança no controle de constitucionalidade no Brasil para enfrentar esse problema.

De forma bem resumida, funcionaria assim: quando o juiz de primeiro grau se depara com uma questão tributária envolvendo conceitos constitucionais abertos ou princípios constitucionais, deve submetê-la a um “incidente de constitucionalidade”. Sem julgar o caso, remete o tema para o tribunal ao qual está jurisdicionado, que teria uma câmara especial para avaliar a relevância da questão suscitada pelo juiz.

Se considerar relevante, o tribunal envia diretamente ao Supremo, que, reconhecendo a pertinência da matéria e entendendo que se trata de questão nacional, passa a tratá-la no sistema de repercussão geral, válido para todas as questões iguais no País inteiro. Durante este período o julgamento do caso ficaria suspenso. Se se entender que a questão constitucional não é relevante, o julgamento continuaria na primeira instância.

Dessa forma, nós não teríamos uma multiplicidade de julgamentos na primeira instância, nos tribunais e no STJ. A questão iria direto para o STF. E aquilo que muitas vezes chega nele depois de oito, dez anos poderia chegar lá em cerca de um ano.

“Produzimos normas rigorosas e depois cedemos aos grupos de pressão”

A insegurança jurídica do sistema tributário brasileiro decorre em grande parte da forma como as normas são criadas no País. Em excesso, de forma errática e descoordenada, sem estudos prévios sobre a experiência internacional e sobre os comportamentos esperados dos agentes econômicos e nem avaliação de resultados após a sua introdução. E por meio de uma cultura política que cria normas gerais extremamente rigorosas para depois ir flexibilizando os critérios conforme a força dos diferentes grupos de pressão da sociedade.

Esse é o diagnóstico do tributarista Breno Vasconcelos, sócio do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados, para explicar o que ele define como “o maior contencioso tributário do mundo”. Professor e pesquisador do Insper e da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas, Breno é coautor de um estudo que comparou os valores em litígio na esfera administrativa no Brasil com o de dois grupos de países em anos recentes. Aqui, representavam 16,4% do PIB, contra 0,29% em nações da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e de 0,19% na América Latina.

Nesta entrevista, ele cita duas medidas para enfrentar o problema: uma relativamente simples de implementar, baseada na classificação e no tratamento diferenciado aos bons e maus contribuintes, e outra mais complexa: a aprovação de uma reforma tributária nos moldes da PEC nº 45/2019. Confira.

Escola de Direito mal preparada

Uma das principais causas do contencioso é termos no Brasil uma produção excessiva, errática e descoordenada de normas tributárias. É comum encontrar normas que são conflitantes umas com as outras. Nós temos no Brasil uma escola de Direito, uma tradição jurídica, muito mal preparada para elaborar e avaliar os impactos das normas. Está melhorando, mas ainda é mal preparada. Criam-se normas sem uma análise prévia sobre os seus possíveis impactos, sobre quais serão os comportamentos dos agentes econômicos, e não se medem os resultados depois.

No Direito, temos um laboratório extraordinário para analisar hipóteses que é o direito comparado. Será que outro país já passou por isso? Deu certo? Mas o Brasil não faz isso. Nosso ensino jurídico é muito autorrefencial – e as pessoas que saem da faculdade e vão fazer normas têm dificuldade para empregar os métodos empíricos necessários para a produção legislativa.

Uso político da tributação

A produção excessiva de normas tem a ver também com nossa tradição de criar regras tributárias muito rigorosas e ir abrindo exceções para os grupos de pressão – o que torna o sistema cada vez mais complexo e sujeito a conflitos de interpretação.

Também temos a mania de querer usar o tributo como instrumento de política pública – de estimular setores ou regiões por meio de desonerações. Essa não é a função dos tributos, a não ser de maneira extraordinária. Tributos servem para arrecadar recursos. Quando a política se baseia em abdicação de receita, fica difícil medir o resultado. A melhor maneira de fazer política pública é por meio de despesa orçamentária: arrecada-se de todos e gasta-se nos projetos considerados importantes e assim se consegue avaliar melhor o impacto. Desde os anos 1970, a doutrina norte-americana tem inúmeros estudos empíricos demonstrando que esse é o melhor caminho.

Um órgão concentra três papéis

O alto contencioso reflete também um problema de governança tributária, de gestão do processo de produção, aplicação e julgamento das normas tributárias. Diferente de outros países, aqui concentramos esses três papéis praticamente dentro de um mesmo órgão, que no âmbito da União é a Receita Federal. Então, a mesma instituição que analisa os dados macroeconômicos estuda os impactos tributários nos diferentes setores tendo em vista a elaboração da reforma tributária, e depois que ela for aprovada vai ficar responsável por dizer como as normas devem ser aplicadas. E mais: vai também julgar o caso se o contribuinte discordar da sua interpretação, diretamente na primeira instância administrativa e indiretamente na segunda, no Carf. Esse é um problema grave que se replica em todos os entes subnacionais.

Separar o joio do trigo

Uma mudança que não é tão difícil de implementar, e representaria um avanço espetacular, seria o Fisco investir no chamado compliance cooperativo. Criar um programa para entender quem são os contribuintes no Brasil, classificá-los de acordo com o risco que eles oferecem à fiscalização e criar modelos de relacionamento a partir dessas informações. Para os maus contribuintes, mantém o sistema como está. Para os bons, melhora o atendimento, facilita as consultas, as soluções de conflitos. Já existem iniciativas nessa linha, como o programa Nos Conformes, instituído pelo estado de São Paulo. No nível federal, a PGFN já tem um sistema de classificação dos contribuintes, mas que foi criado com a finalidade de aumentar a eficiência da cobrança. Acho que poderia ser estendido para melhorar o relacionamento com o bom contribuinte.

Solução exige reforma tributária

Uma mudança mais profunda, a meu ver, passa pela aprovação de uma reforma tributária nos moldes da proposta pela PEC nº 45, com algumas flexibilizações da PEC nº 110. Não resolve todos os nossos problemas tributários, mas reduz essa enorme complexidade produzida por um sistema que tem vários tributos incidindo sobre o consumo: PIS, Cofins, IPI, ISS e ICMS, além de ter a União, os 27 estados, o Distrito Federal e mais de 5.500 municípios com poder de legislar sobre essa tributação. A unificação de tributos sobre consumo e a tributação no destino, ao invés da origem, como é hoje, tornaria o nosso sistema muito mais simples e seguro.