“É preciso estimular a solução extrajudicial de conflitos tributários”

Na avaliação da ministra Regina Helena Costa, do Superior Tribunal de Justiça, a complexidade de um sistema tributário que sobrepõe três níveis de governo, a multiplicidade de normas e o excesso de obrigações acessórias representam as três principais causas do elevado contencioso tributário verificado no País.

Livre-docente em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, ela aponta também a existência de uma cultura no Brasil de achar que conflitos envolvendo o Estado só se resolvem no Judiciário. Em sua opinião, o País precisa estimular a utilização de meios extrajudiciais para a solução das divergências tributárias. Ela cita avanços legais importantes nesse sentido, como a previsão de arbitragem, conciliação e mediação no novo Código de Processo Civil, e defende que eles sejam mais utilizados pelos operadores do Direito.

Segundo a ministra Regina Costa, isso desafogará o Judiciário, que poderá então tratar melhor dos litígios envolvendo muitos contribuintes ou que não podem ser resolvidos pela via extrajudicial. “Ganharão todos”, ela afirma. A seguir, a visão da ministra.

Afeta arrecadação e afasta investimento

O contencioso judicial tributário no Brasil é alimentado pelo elevado nível de litigiosidade entre Fisco e contribuintes. ​Isso é muito nocivo para o País, porque, de um lado, gera insegurança jurídica para os sujeitos da relação tributária, com prejuízos à arrecadação; de outro, cria um ambiente econômico desfavorável para atrair investimentos. Além disso, congestiona o Poder Judiciário, que, por mais que aperfeiçoe continuamente sua estrutura, não consegue, na maioria de suas unidades, atender a essa demanda com eficiência e celeridade.

Três razões principais

A acirrada litigiosidade judicial nesse contexto ocorre por diversas razões, sendo que as principais, a meu ver, são: 1) a complexidade do sistema tributário brasileiro, que contempla grande número de tributos, num Estado Federal de tríplice ordem jurídico-política (União, Estados/Distrito Federal e Municípios); 2) a multiplicidade de leis e atos administrativos normativos, que torna as normas tributárias de difícil assimilação e compreensão; e 3) o excesso de obrigações tributárias acessórias, isto é, de deveres formais a serem observados pelos contribuintes.

Estímulo à solução extrajudicial de conflitos

No Brasil é arraigada a cultura segundo a qual os litígios, especialmente envolvendo o Poder Público, somente podem ser resolvidos judicialmente. Trata-se, em meu sentir, de uma ideia que precisa ser superada. É preciso estimular o emprego de meios de solução extrajudicial de conflitos, inclusive para as lides tributárias. Por exemplo, aprimorando o regramento do processo administrativo tributário, que é o mais antigo e conhecido desses expedientes em nosso ordenamento jurídico. Alterações legislativas recentes vêm confirmando essa tendência.

Nessa linha, o Código de Processo Civil de 2015, de espírito inovador, declara ser “permitida a arbitragem, na forma da lei”, bem como que “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”, exortando os operadores do Direito a estimular a adoção da conciliação, da mediação e de outros métodos para o alcance desse objetivo (art. 3º, §§ 1º, 2º e 3º), representando o marco inicial de uma nova cultura na busca da pacificação social. Igualmente, a Lei nº 13.140, também de 2015, dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública, cujas normas são aplicáveis a conflitos tributários (arts. 32 a 38).

Segurança jurídica, eficiência e celeridade

Em síntese, penso seja imperioso estimular o emprego dos instrumentos de solução extrajudicial de conflitos tributários, reservando ao exame do Poder Judiciário apenas aqueles que não possam ser resolvidos por esses meios, como é o caso dos litígios envolvendo um elevado número de contribuintes na mesma situação, que demandam, portanto, uma solução uniforme. Assim, ganharão todos – Fisco, contribuintes e a sociedade em geral – em segurança jurídica, eficiência e celeridade, habilitando o Poder Judiciário, ao julgar menor quantidade de demandas, a entregar uma prestação jurisdicional de maior qualidade.

“O que ocorre, infelizmente, é um enfrentamento”

Nelson Machado já foi ministro da Previdência Social, Secretário Executivo do Ministério da Fazenda e Secretário Executivo do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. A experiência na administração pública o leva à convicção de que uma das chaves para amenizar o grave problema do contencioso no Brasil é ampliar as possibilidades de negociação ainda na fase inicial das divergências.

Promover o diálogo em torno das questões tributárias é a bandeira do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), criado há cinco anos, do qual o ex-ministro é um dos diretores. “Nossa proposta de trabalho é debater intensamente com os mais diversos setores da sociedade para construir propostas coletivamente”, descreve Machado.

Formado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), com mestrado em administração orçamentária e financeira pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV/Eaesp) e doutorado em contabilidade e controladoria pela Faculdade de Educação e Administração da Universidade de São Paulo (USP), ele iniciou a carreira como agente fiscal de renda do estado de São Paulo. Acompanhe a seguir alguns trechos da entrevista.

 

Uma disputa em que todos saem perdedores

A dimensão gigantesca do contencioso no Brasil é consequência direta de uma legislação que provoca constantes divergências de interpretação entre o Fisco e os contribuintes, culpa do nosso sistema tributário torto, cheio de remendos.

O contencioso é um peso enorme tanto para a administração tributária, que precisa mobilizar grande parte de sua estrutura, quanto para as empresas, que são obrigadas a ter departamentos jurídicos robustos para fazer esse enfrentamento.

Eu gostaria muito de usar a palavra “diálogo”, mas, infelizmente, o que ocorre é mesmo um enfrentamento. Criar instâncias que viabilizem o diálogo é uma parte fundamental para lidar com o contencioso e com a questão tributária no Brasil como um todo.

Continua chovendo na cabeceira do rio

Ao longo do tempo, diversos gestores públicos, de vários níveis, olharam para a questão do contencioso com o propósito de amenizar esse problema. A estratégia mais comum nesse sentido foi tentar acelerar a máquina para tornar o sistema mais eficiente e reduzir o tempo de tramitação dos processos.

Quando estive no governo, o Ministério da Fazenda fez um esforço muito grande e bem-sucedido de informatização dos processos. Antes disso os processos ainda iam para o julgador em malotes físicos.

Esse esforço foi importante para agilizar o fluxo, mas esteve longe de resolver o contencioso, pois o problema está na origem. Ao longo das últimas décadas, sempre tivemos muito mais processos entrando do que havia a capacidade de resolvê-los. E não adianta canalizar um rio se continua chovendo muito na cabeceira. Em algum lugar a água vai estourar.

Só quando estivermos gerando menos processos, além de resolvê-los com mais agilidade, conseguiremos reduzir gradualmente o volume do contencioso.

Há muitos pontos de vista para conciliar

O Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) está completando cinco anos de atividade, com o propósito de promover o diálogo para aprimorar o sistema tributário brasileiro e o modelo de gestão fiscal no país.

Nossa proposta de trabalho é debater muito com os diversos setores da sociedade e construir propostas coletivamente. Essa é uma conversa que precisa ser ampla. Não serão três ou quatro cabeças que vão se sentar e achar as melhores fórmulas. Há inúmeros detalhes envolvidos, interesses diversos, pontos de vista diferentes, e tudo isso precisa ser conciliado.

Certamente é preciso mudar as leis, mas também a forma de pensar. O auto de infração é um instrumento que o Estado utiliza já para definir o crédito, sem diálogo, forçando a empresa a se mobilizar na defesa. Há um olhar de muita desconfiança sobre as ações dos contribuintes. Parte-se do princípio de que as empresas querem enganar o Fisco, e na maioria das vezes não é isso, são apenas diferenças de interpretação.

As empresas precisam de previsibilidade

Estudos demonstraram que empresas de grande porte do Brasil chegam a ter um valor de contencioso maior que o próprio Patrimônio Líquido. É uma situação muito difícil de explicar para investidores estrangeiros.

É compreensível que, diante de uma legislação confusa, as empresas tentem reduzir o peso da carga tributária. Elas fazem isso apresentando novas teses. Essas questões são contestadas pela administração tributária e muitas vezes vão parar no Supremo.

Posso garantir que as empresas, em sua maioria, adorariam viver num cenário de segurança tributária, em que, mesmo pagando um pouco mais do que pagam hoje, teriam certeza do que devem pagar, sem riscos de contestações e sobressaltos. Isso lhes permitiria que se planejassem, definissem seus preços com mais precisão e pudessem abrir mão de boa parte da estrutura jurídica onerosa que são obrigadas a ter hoje.

Causas e soluções para o problema do contencioso

Por que o relacionamento entre o Fisco e os contribuintes é tão litigioso no Brasil? Como solucionar ou pelo menos diminuir a insegurança jurídica do nosso sistema tributário? Para responder tais perguntas, entrevistamos dezenas de nomes que representam diferentes instituições envolvidas nesse problema.
Diretores da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e tributaristas de alguns dos principais escritórios de advocacia do País trataram do tema sob o ponto de vista dos contribuintes.

Representantes do Ministério da Economia e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) trouxeram a visão do Estado, seja em seu papel de arrecadar impostos, seja na missão de fortalecer o ambiente de negócios do País.

A perspectiva do Judiciário foi apresentada por juízes especializados em Direito Tributário de três instâncias da Justiça Federal. A do Legislativo, pelo relator do projeto que converteu em lei a Medida Provisória do Contribuinte Legal, que regulamentou a solução de conflitos entre o Fisco e os contribuintes por meio da chamada transação tributária.

Para completar o retrato, entrevistamos também pesquisadores e professores universitários, além de representantes de instituições da sociedade civil que se ocupam do tema.

Esse conjunto de pontos de vista mostra que o problema tem outras causas além da complexidade do nosso sistema tributário. Indica também que a solução exige uma série de mudanças na maneira como nós criamos normas tributárias, fiscalizamos a sua aplicação e julgamos o contencioso.

O quadro a seguir mostra um resumo das principais causas apontadas e propostas de solução apresentadas pelos entrevistados. Na sequência, confira quem foram os entrevistados.

Quem são os entrevistados

1. Adriana Gomes de Paula Rocha, Procuradora-Geral Adjunta de Consultoria
e Estratégia da Representação Judicial.

2. Adriana Gomes Rêgo, presidente do Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (Carf).

3. Beno Suchodolski, sócio do escritório Suchodolski Advogados Associados.

4. Breno Vasconcelos, sócio do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados, pesquisador do Insper e professor da FGV.

5. Cássio Borges, superintendente jurídico da Confederação Nacional da Indústria.

6. Hamilton Dias de Souza, sócio do escritório Dias de Souza Advogados Associados.r jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

8. Heleno Torres, professor titular do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da USP.

9. Juliana Furtado Costa Araújo, procuradora da PGFN e professora da FGV
Direito SP.

10. Leonardo de Andrade Rezende Alvim, procurador da PGFN, pesquisador do Insper e professor universitário.

11. Lorreine Messias, economista com especialização em Direito Tributário e pesquisadora.

12. Marco Bertaiolli, deputado federal (PSD-SP) e relator do Projeto de Lei
de Conversão da MP do Contribuinte Legal.

13. Marcos Lisboa, economista e presidente do Insper.

14. Mauro Silva, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil.

15. Nelson Machado, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF).

16. Paulo Conrado, juiz federal e professor de Direito Tributário da FGV Direito SP.

17. Paulo Sérgio Domingues, desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

18. Phelippe Toledo Pires de Oliveira, Procurador-Geral Adjunto de Consultoria e Contencioso Administrativo-Tributário.

19. Raquel Novais, sócia da área tributária do escritório Machado Meyer Advogados.

20. Regina Helena Costa, ministra do Superior Tribunal de Justiça e livre-docente em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

21. Rita Dias Nolasco, procuradora da PGFN e diretora da Escola da Advocacia-Geral da União na 3ª Região.

22. Rita Eliza Reis da Costa Bacchieri, conselheira representante de contribuintes e vice-presidente do Carf.

23. Roberto Quiroga Mosquera, sócio do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr e Quiroga Advogados e professor de Direito Tributário da Universidade de São Paulo (USP) e da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP).

24. Vanessa Canado, assessora especial do ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre reforma tributária.

25. Zabetta Macarini Gorissen, diretora executiva do Grupo de Estudos Tributários Aplicados (Getap).

Mais de meio PIB em contencioso tributário

Os impostos que a Receita Federal tenta cobrar dos contribuintes, mas não consegue receber, não param de crescer. Eles subiram de R$ 2,275 trilhões em 2013 para R$ 3,440 trilhões em 2018. Para ter uma ideia do que esses valores representam – e do ritmo do aumento –, vale a pena compará-los com o PIB. Nesse período, eles saltaram do equivalente a 42,7% para 50,4% de todas as riquezas produzidas no País em um ano.

Essas cifras constituem o chamado contencioso tributário federal. O fato de estarem em processo de cobrança não significa necessariamente que são devidos pelos contribuintes. Há casos em que as dívidas são indiscutíveis, mas se acumulam porque o Estado não consegue receber. As razões vão da lentidão da Justiça à insolvência de quem deve. Mas boa parte desse total são cobranças que os contribuintes consideram injustas e, portanto, estão contestando nas instâncias administrativas ou judiciais encarregadas de dar a palavra final na disputa.

Qualquer que seja a razão, no entanto, o resultado é que um contencioso tributário desse tamanho – e crescendo dessa maneira – provoca muitos prejuízos ao País. Para o Estado, significa que está cada vez mais difícil e custoso arrecadar os impostos necessários para financiar os serviços públicos, prejudicando a eficácia na obtenção de resultados. O que poderia virar escola e hospital é gasto com advogados, contadores, juízes e outras despesas de cobrança. Para as empresas brasileiras, a mesma coisa: elas gastam energia e recursos em processos longos que não têm nenhuma relação com a sua atividade-fim e que impactam em seus balanços contábeis, criando insegurança jurídica. Quando veem esses números, investidores internacionais pensam duas vezes antes de aplicar seus recursos no Brasil.

Peso para o Estado

Para expor ainda mais esse tema ao debate público e contribuir na busca de soluções o ETCO contratou uma das consultorias mais importantes do mundo, a EY (Ernst & Young), para realizar um diagnóstico sobre o contencioso tributário do governo federal. O estudo analisou dados públicos e lançou luz sobre alguns fatores que podem estar relacionados com o aumento dos valores em disputa. A EY mobilizou também seus escritórios em outros seis países para mostrar como eles lidam com as divergências entre o Fisco e os contribuintes (veja abaixo).

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“Mudar os tipos ou os nomes dos tributos não terá grande efeito”

Para o professor titular do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Heleno Taveira Torres, o caminho para reduzir o contencioso no Brasil inclui a necessidade de maior proximidade entre o Fisco e os contribuintes, com canais efetivos de comunicação e atendimento. Também é fundamental a adoção de estratégias que possam evitar o litígio – como a revisão administrativa dos lançamentos feitos pelos fiscais – ou antecipar o final da disputa, a exemplo da conciliação ou da transação tributária. Nada disso alcançará grande resultado, contudo, sem a redução da burocracia. “O sistema tributário precisa funcionar em estado de normalidade, assegurando previsibilidade aos contribuintes”, resume Torres. A seguir, a visão dele sobre como reduzir o contencioso.

Círculo vicioso

O contencioso tributário é causa e consequência ao mesmo tempo: contribui para aumentar a insegurança jurídica e é agravado por ela. Trata-se de um círculo vicioso que precisa perder força, pois a segurança jurídica é a base do sistema tributário. E o sistema tributário precisa funcionar em estado de normalidade, assegurando previsibilidade aos contribuintes. Um sistema em que seja possível saber com precisão os impostos que devem ser pagos e as obrigações relacionadas aos tributos devidos. Essa tranquilidade é essencial para o ambiente negocial e a atração de investimentos.

Revisão imparcial

Dentro do nosso modelo de fiscalização, faltam medidas preventivas na fase de lançamento tributário. Uma das mais importantes seria criar mecanismos internos de revisão administrativa, antes de um litígio seguir para a Justiça. No âmbito federal, as Delegacias Regionais de Julgamento deveriam ter a função de revisar os lançamentos tributários – ou seja, o trabalho dos fiscais –, e não ser instância de primeiro grau de julgamento, o que na prática só retarda em muitos casos o envio dos lançamentos ao Carf. Com essa atuação pró-forma, a favor do Fisco, as Delegacias tornam-se parte da estrutura do contencioso, e não uma instância em que o contencioso poderia ainda ser evitado pela identificação de erros ou exageros da fiscalização. Essa revisão dos lançamentos por uma autoridade colegiada, ainda no início do processo administrativo, seria a melhor forma de assegurar a legalidade, sem que isso pudesse ser visto como qualquer interferência sobre o trabalho dos fiscais. Não sou a favor da ideia de criar punições para fiscais que cometem erros, pois ninguém pode ser punido por divergências de interpretação das leis. No estado de legalidade importa o devido processo legal administrativo. Prefiro fiscais livres e preparados para combater a sonegação – prática que é muito danosa ao Brasil pelo quanto prejudica a livre concorrência – do que fiscais com receio de que possam vir a receber algum tipo de punição.

Conciliação tributária

Quando se fala nas soluções para o contencioso, gosto muito da ideia de conciliação como estratégia para prevenir litígios ou interromper a controvérsia a qualquer momento. Seria importante ter espaço para conciliar em todas as etapas do processo administrativo ou do judicial. Há países com experiências muito bem-sucedidas de métodos alternativos. Na Itália, a conciliação reduziu os processos em mais de 70% do seu estoque. Em Portugal, há o Centro de Arbitragem Administrativa, criado pelo Ministério da Justiça. A decisão dos processos que se encaminham dessa forma tem demorado apenas quatro meses, em decorrência também de regimes processuais mais simples e rápidos. É algo positivo tanto para o Estado quanto para os contribuintes, pois litígios longos não interessam a ninguém.

Menos burocracia

Mudar os tipos ou os nomes dos tributos não terá grande efeito se o problema estrutural da fiscalização, do lançamento e da cobrança do crédito tributário não for revisto. Nosso sistema tributário é extremamente burocrático e lento, com muitas redundâncias de processos, documentos e excessos de obrigações acessórias. A comunicação do Fisco com o contribuinte é péssima, em todas as instâncias. O que temos é um atendimento superficial, que não coopera para solucionar problemas de quem busca informações e certeza do entendimento do Fisco, sem mudanças posteriores ou repentinas. Precisamos de uma estratégia ampla e efetiva de desburocratização tributária, como parte das ações necessárias para melhorar o nosso ambiente de negócios e a segurança jurídica. Isso se torna ainda mais importante num cenário empresarial que, sob influência dos avanços tecnológicos, torna-se mais dinâmico e veloz a cada dia.

“O Brasil se esforça para que as coisas deem errado”

Economista com doutorado pela Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, Marcos Lisboa tem uma trajetória profissional eclética, com experiências na academia, no setor público e no setor privado. Foi professor na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, e na Fundação Getulio Vargas (FGV). É o atual presidente do Insper, instituição de referência em ensino superior e pesquisa. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda entre 2003 e 2005, no primeiro mandato do presidente Lula. Na sequência, tornou-se diretor executivo e vice-presidente do Itaú Unibanco, instituição onde permaneceu até 2013.

Para Lisboa, a prioridade dada no País ao aumento da arrecadação, sob influência das pressões causadas pela crise fiscal, leva a uma série de erros de avaliação e ao excesso de “criatividade” para gerar normas e estabelecer conceitos. Ele acredita que seria muito mais eficiente olhar para o que os outros países fazem e adotar as boas práticas internacionais. “Não precisaria inventar, mas aqui no Brasil a gente adora inventar”, diz o economista. Confira a seguir alguns trechos da entrevista.

Sistema tributário gera conflitos e faz pouco para resolvê-los

O tamanho que o contencioso alcançou no Brasil é o sintoma de uma doença muito séria. Reflete os problemas causados por um sistema tributário extremamente confuso e disfuncional, quadro que só veio se agravando nas últimas décadas.
É normal que um ambiente de caos seja mais propenso a conflitos. O contencioso é uma das evidências mais significativas de quanto precisamos reformular nossa estrutura tributária. Ações para lidar diretamente com o contencioso podem ajudar, mas serão sempre paliativas. Se o sistema é torto na origem, é na origem que ele precisa ser corrigido.
Além de gerar muitos conflitos, não temos bons mecanismos para gerenciá-los. As disputas entre Fisco e contribuinte se tornam longas, desgastantes, caras e incertas, sem oportunidades de negociação para que sejam abreviadas.

Boas práticas internacionais são modelo pronto

O Brasil se esforça muito para que as coisas deem errado. Temos excesso de tributos, um número inacreditável de normas e falta clareza nos textos.
Todo tipo de “criatividade” surge quando se tem como grande objetivo aumentar a arrecadação. Inventamos até conceitos que não têm contrapartida no mundo real. Essa mentalidade precisa mudar. A prioridade não deve ser arrecadar mais, e sim cumprir as leis. Leis que sejam claras e justas.
Há também os erros de avaliação, como a insistência em cobrar impostos no local de produção, e não no local de consumo, contrariando a prática adotada na maior parte dos países. Por isso a boa prática internacional não é cobrar sobre exportação, e sim sobre importação.
A maioria dos países adota a cobrança de imposto sobre o valor adicionado – ou seja, o quanto aquela etapa adicionou de valor ao produto. É um imposto simples de ser calculado e cobrado. Basta comparar as notas: pagou tanto e vendeu por tanto.
Além disso, temos diversos regimes tributários, dependendo do tamanho da empresa, do bem ou serviço produzido e da região. Uma complexidade impressionante que distorce os preços relativos, o que significa que induzimos as empresas a investir em atividades que não são as mais produtivas. O resultado é o menor crescimento da economia.
Então, na verdade, não há muito segredo. O que precisaríamos fazer é, basicamente, aquilo que os outros países fazem. Não precisaria inventar, mas aqui no Brasil a gente adora inventar.
Acho que o nosso papel nessa discussão é, em grande parte, apresentar dados internacionais, trazer a experiência dos outros países, na contramão do que é o usual por aqui.

Insegurança tributária assusta e afasta investidores

Vivemos uma crise fiscal. Chegamos a esse ponto pelo somatório de escolhas equivocadas que a sociedade brasileira fez nas últimas décadas.
O dinheiro do governo foi sendo distribuído a diversos destinos considerados prioritários, sem controle e num ritmo maior do que o aumento da arrecadação. Tivemos crises fiscais recorrentes, seguidas de medidas para aumentar a arrecadação. Até que a soma dos gastos passou de 100% do que se arrecada. E o pior é que quase todos esses gastos são obrigatórios. A maioria não pode ser reduzida nem com mudança da legislação.
O caos tributário brasileiro é agravado pela tentativa de fazer microrregulação, de cuidar de tudo nos mínimos detalhes para não deixar passar nenhuma oportunidade de arrecadação, com frequência revendo critérios que eram amplamente aceitos. Mas isso é dar um tiro no pé. É matar a galinha dos ovos de ouro.
A insegurança tributária é um dos principais motivos para que investidores estrangeiros estejam deixando o País. E é algo compreensível, pois investir no Brasil se torna algo temerário para empresas que se defrontam com a necessidade de lidar com tudo isso.

Nessa história, não há vilão e não haverá herói

Todas as partes têm uma parcela de responsabilidade sobre o quadro ao qual chegamos. Governo, Fisco, contribuintes, empresas, políticos, legisladores, Justiça.
Por isso, a saída não passa pela busca de culpados ou pela demonização das diferenças, mas pelo diálogo. Não existe vilão, e não vai existir herói que resolva tudo sozinho.
O que existe é a necessidade de encontrar saídas. Nesse caminho, será preciso abrir mão de interesses pequenos, específicos, mesquinhos mesmo, que muitas vezes são evocados para combater supostas perdas setoriais ou defender a manutenção de algum tipo de privilégio. Os olhares precisam ser mais amplos.

Exploradores da Pandemia

Fomos atingidos em cheio. A tragédia sanitária tem exigido dos gestores públicos, parlamentares e empresas concentração total no combate ao novo vírus e na busca de alternativas que além de salvar vidas – essencial – possam manter o mínimo de condições para que nosso país não vá a bancarrota.

No enfrentamento das consequências da pandemia diversas iniciativas estão sendo adotadas para diminuir os efeitos tanto para a saúde pública como para a economia.

No Congresso Nacional, uma das propostas foi apresentada na Câmara Federal por meio do Projeto de Lei 1397/2020 que tem o objetivo de instituir medidas de caráter emergencial destinadas a prevenir a crise e de promover alterações, em caráter transitório, de dispositivos da lei que trata a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

Em seu escopo, entre outras providências, de acordo com o artigo 11 do texto apresentado, as obrigações previstas nos planos de recuperação judicial ou extrajudicial já homologados, independentemente de deliberação da assembleia geral de credores, não serão exigíveis do devedor pelo prazo de 120 (cento e vinte). Já o artigo 12 do referido projeto permite a apresentação de novo plano de recuperação judicial ou extrajudicial, tenha ou não sido homologado o plano original em juízo.

Já mais adiante (artigo 15), o PL1397/20 permite a suspensão de atos administrativos de cassação, revogação, impedimento de inscrição, registro, código ou número de contribuinte fiscal, independentemente da sua espécie, modo ou qualidade fiscal, sob a sujeição de qualquer entidade da federação que estejam em discussão judicial, no âmbito da recuperação judicial.

O Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) entende que nesse momento de pandemia iniciativas legislativas que visem reequilibrar as condições econômicas de pessoas físicas e jurídicas são bem-vindas e necessárias.

Não obstante, para que não só as condições excepcionais sejam tratadas, mas para que também seja mantido o quadro geral e abrangente de segurança jurídica e ética concorrencial, é desejoso que se façam ajustes no texto do referido projeto de lei.

No que diz respeito aos artigos acima citados, destaque-se que não por acaso existem as assembleias gerais de credores e os planos de recuperação homologados em juízo. Tratam-se de instrumentos que estabelecem prioridades e trazem segurança jurídica aos processos de recuperação judicial e extrajudicial. Do contrário, se ignorados tais dispositivos, correr-se-ia o risco de todo o processo cair em um limbo jurídico desconhecido, induzindo-as o crescimento de um contencioso judicial já exorbitante.

Já a suspensão de sanções, não atende à necessidade de preservar a atividade econômica e sim permite que empresas que já vinham procurando burlar a legislação aplicável e que, por esse motivo, sofreram sanções administrativas, sejam beneficiadas, possibilitando e facilitando a sonegação tributária estruturada e recorrente daqueles já conhecidos devedores contumazes que organizam seu modelo de negócio para nunca pagar impostos utilizando-a como vantagem competitiva para aumentar seus lucros, ganhar participação no mercado e prejudicar os concorrentes.

Nesse sentido, é que sugerimos que os artigos 11 e 12 obedeçam ao princípio da segurança jurídica, e que o artigo 15 seja suprimido, não só por ser  totalmente estranho ao mérito expresso no PL 1397/20, mas também para evitar distorções beneficiando ainda mais empresas que atentaram contra os princípios da concorrência.

Sim, devemos apoiar empresas em dificuldades. Agora, estimular quem já teve reconhecidos atos indevidos de sonegação, como modelo de negócio, não! Ainda mais agora nesse momento da pandemia no qual temos visto o crescimento dos oportunistas de plantão sempre procurando levar alguma vantagem e se aproveitar do malfadado “jeitinho” para, de alguma forma, se beneficiarem de qualquer iniciativa ou brecha da lei, desvirtuando bons propósitos do legislador.

 

*Edson Vismona – Advogado, presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial – ETCO, foi Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (2000/2002)

O poço fundo

O poder público aumenta os gastos e busca meios para ampliar a arrecadação. O contribuinte não consegue arcar com o tamanho do Estado, mas as despesas obrigatórias e vinculadas crescem. A margem orçamentária se estreita e a criatividade tributária foi sendo estimulada, com a instituição de novos tributos e obrigações acessórias, gerando um emaranhado de leis, decretos, instruções normativas que desafiam a compreensão do nosso sistema tributário. O resultado dessa equação é a carga tributária que consome 35% do PIB e os investimentos, e a qualidade dos serviços prestados não são proporcionais aos gastos públicos. A conta não fecha.

Juristas, advogados e especialistas do mercado apontam para um ponto que não vem sendo discutido e tem grande importância: o tamanho do contencioso tributário do Brasil. Com o objetivo de apurar o montante desse problema, o (Etco) contratou a consultoria EY para a realização de um estudo.

O resultado mostrou que, analisando os dados do Tesouro da União, o passivo tributário é a metade do PIB do País (R$ 3,4 trilhões). Esse montante cresce todos os anos e, mais, houve um incremento das representações fiscais para fins penais de 5% em um ano (2017 para 2018) e o valor dos créditos lançados aumentou 68% (2016 para 2017). O tempo médio do processo, se for linear até a última instância judicial, é de 19 anos e 2 meses. Esses dados demonstram que estamos num poço e que, em vez de procurarmos uma escada para sair dessa situação, estamos, na verdade, com uma pá aprofundando e aumentando esse passivo. O Fisco necessita de recursos e o contribuinte, a grande maioria, quer permanecer em dia com suas obrigações, ou seja, um precisa receber, o outro quer pagar, mas o mecanismo existente não possibilita uma saída rápida e eficaz. Essa situação, por mais absurda que possa parecer, não atende ao Fisco nem ao contribuinte regular, mas é ótima para o chamado devedor contumaz, aquele que se estrutura para nunca pagar impostos, e que utiliza todas as possibilidades processuais para tanto, e, assim, aumentar em muito suas margens de lucro, corroendo a competitividade e lesando o Fisco em bilhões. A saída para diminuir os longos e custosos processos contenciosos deve contemplar, primeiro, a viabilidade de um acordo antes ou no início da autuação. O Fisco norte-americano, por exemplo, reconhecido pelo seu rigor, adota procedimentos rápidos de mediação e arbitragem. O objetivo é acertar o valor devido e receber. Em segundo lugar, deve ser viabilizada, com toda a legalidade, transparência e controle, a possibilidade de acordos que acelerem o efetivo pagamento, regularizando a situação de grande parte dos contribuintes, regulamentando, finalmente, os artigos 171 e 156, inciso III, do Código Tributário Nacional. A Lei 13.988/2020 indica esse sentido. A estimativa é de que R$ 900 bilhões poderiam ser arrecadados. Com o parcelamento, por exemplo, em dez anos, o Fisco federal teria R$ 90 bilhões ao ano, mais do que foi previsto pela reforma previdenciária. Por fim, para combater a ação dos devedores contumazes, que não devem ser confundidos com devedores eventuais ou até mesmo reiterados – estes deixam de pagar impostos por dificuldades econômicas, enquanto o primeiro nunca paga impostos, aliás, a sonegação compõe o seu desproporcional lucro –, é que defendemos a aprovação do PLS 284/17, que está em final de tramitação no Senado Federal, tipificando quem deve ser considerado como devedor contumaz, com o exato enquadramento pelo Judiciário. Em suma, é urgente que discutamos a relação Fisco-contribuinte, valorizando aqueles que agem de boa-fé e punindo os que dolosamente fazem de tudo para não cumprir com suas obrigações. Não podemos mais permanecer neste poço que traga os recursos financeiros do Fisco e dos contribuintes.