A economia do país está contaminada pela pirataria

Por ETCO


Por Abram Szajman, Valor Econômico – 27/05/2005


O pirata, tal como tem sido imortalizado no cinema e na literatura, é um personagem magnético, cheio de glamour e que, geralmente, destaca-se pela coragem. Mas não é o que acontece quando esse personagem transita da ficção para a realidade. Hoje, a economia subterrânea, que movimenta bilhões de reais em impostos não recolhidos, tornou-se uma ameaça mortal para as empresas formais, que mantêm suas obrigações fiscais em dia e investem somas gigantescas na produção, gerando milhões de empregos.


Quando compra um produto pirata, ou falsificado, uma cópia, enfim, o cidadão muitas vezes alimenta a ilusão de estar pagando menos por algo muito parecido ou igual ao original. Não é assim. Além da péssima qualidade, o produto falso tritura empregos formais, golpeia a competitividade brasileira e, o que é também grave, reduz violentamente a capacidade de investimento do Estado, por força da sonegação.


Apenas a pirataria de programas de computador já causou ao Brasil prejuízos da ordem de US$ 659 milhões, atingindo um índice de 64% em 2004, de acordo com pesquisa divulgada pela BSA (Business Software Alliance), associação mundial de empresas de software. O fenômeno, aliás, é planetário: 35% dos programas de computador utilizados no mundo, no ano passado, eram piratas. O mercado legal mundial movimentou, em 2004, US$ 59 bilhões, contra US$ 31 bilhões da pirataria.


A falsificação pode até pôr em perigo a vida do consumidor, como ocorre com os medicamentos, peças de automóveis, alimentos, cosméticos e um grande número de produtos que engrossam diariamente a lista das adulterações. Também causa danos irreparáveis a bens de elevado valor, como é o caso do combustível adulterado, ou ainda confunde perniciosamente o cidadão, como ocorre com as rádios-pirata.


Não é exagero dizer que toda a cadeia produtiva, praticamente sem exceções, vem sendo contaminada pela pirataria. Pior, como o “negócio” ganhou dimensão e abrangência internacional, atraindo a atenção de quadrilhas do crime organizado, tornou-se comum as cópias chegarem ao mercado simultaneamente aos produtos originais.


Nem sempre foi assim. Num passado não muito remoto, a pirataria limitava-se quase que basicamente a dois filões. Um deles abrangia o prosaico e folclórico uísque escocês “made in Paraguai”, os eletroeletrônicos e uma porção de bugigangas, que criavam problemas setoriais, mas estavam longe de se converter numa questão dramática. O segundo filão era o da falsificação de bens de luxo, também preocupante, mas sem as dimensões endêmicas dos dias atuais.


País legal não pode conviver com o ilegal, pois essa dicotomia é prejudicial ao desenvolvimento


Agora se falsifica tudo e em escala industrial. É um mundo de linhas de produção paralelas, que só se encontra com o mundo da produção legal quando se trata de transformar o diferencial de sonegação de impostos numa singular e atraente vantagem competitiva. Como no Brasil os impostos rivalizam com o que existe de mais elevado no mundo, é claro que aquele que sonega maciçamente, como acontece no meio das empresas informais, passa a dispor de um trunfo competitivo.


O que surpreende é que pouco ou quase nada se faz para enfrentar a pirataria, embora sejam louváveis iniciativas como a que criou o Conselho Nacional de Combate à Pirataria. Não se deve esquecer, porém, que este conselho sequer foi criado porque nós, brasileiros, assim o achamos conveniente fazer. Mas sim porque o país recebeu um ultimato dos Estados Unidos, que nos ameaçaram com a exclusão do Sistema Geral de Preferências Comerciais, caso o país não intensificasse o combate à pirataria. No primeiro trimestre deste ano, foram apreendidos no mercado brasileiro 285 mil CDs, volume 32% maior do que no mesmo período do ano passado, mas ainda assim absolutamente insuficiente.


O problema não é só do governo. Há também uma dimensão cultural e de comportamento, porque grande parte da sociedade se deixa iludir pela visão de aparências de que a falsificação de marcas é fonte de empregos num país de desempregados e, de certa forma, atenua os antagonismos e conflitos sociais. É um erro ver as coisas por este prisma. Apesar de existirem mais de dez milhões de empresas informais no Brasil, que empregam quase 14 milhões de pessoas (25% do total da mão-de-obra urbana), pesquisas demonstram que os empregos vindos da informalidade proporcionam salários muito baixos, além de não oferecerem qualquer garantia ao trabalhador. Ao contrário, limitam ao extremo seus horizontes de ascensão e não trazem qualquer benefício para sua evolução profissional.


Essa postura, que tem profundas raízes no próprio poder público, em muito inibe ações de fiscalização mais intensas. Também inibe a realização de campanhas que possam esclarecer a opinião pública quanto aos efeitos nocivos da pirataria. Em paralelo, alimenta o sentimento de que os impasses começam e terminam no camelô que é o último e mais frágil elo do sistema e, na prática, acaba sendo duas vezes vítima. Primeiro, daqueles que financiam a pirataria que o explora e lucram com ela, mantendo-o num regime de semi-escravidão. Segundo, das autoridades que o reprimem, de tempos em tempos, sempre que cresce a pressão do setor formal.


O que fazer? É evidente que a pirataria e suas conseqüências deletérias não são a causa principal de o país estar há mais de duas décadas distante do ritmo de crescimento de concorrentes como a China e a Índia, para ficar só em dois exemplos. Mas é inegável que a pirataria é uma pedra a ser removida do caminho da retomada do desenvolvimento. Em parte, porque ela se alimenta das distorções de um sistema tributário que se encontra no limite da irracionalidade e há muito se revela ineficiente. Em parte, porque a situação atual divide o Brasil em dois países: o legal e o ilegal. Um não pode mais conviver com o outro. Portanto, o país ilegal tem que acabar para que o país legal se torne uma potente economia, capaz de gerar empregos, renda e bem-estar para todos.


Abram Szajman é empresário, presidente da Federação e do Centro do Comércio do Estado de São Paulo, dos Conselhos do SESC-SP e do SENAC-SP e do Conselho de Administração do Grupo VR.