A banda boa do setor público

Por ETCO

Fonte: Exame – Edição Impressa – SP – 20/08/2009

Obras em Sergipe [Jorge Henrique/Exame] 


Obras em Sergipe: a ligação com a Bahia pelo litoral era esperada há décadas

Diante do lamaçal em que o Senado brasileiro vem afundando nas últimas semanas, é natural que surjam discursos desesperançados vaticinando que tudo o que se origina da política e de governos é ruim. As oito páginas desta reportagem mostram que, felizmente, também nesse caso, não se pode generalizar. Elas revelam um lado quase desconhecido e surpreendentemente positivo no âmbito dos estados. Parte dos gestores públicos já mede, compara, analisa, planeja e, sim, persegue metas. A reportagem não buscou inspiração em Pollyanna — personagem criada pela escritora americana Eleanor Porter no início do século 20 e caracterizada por procurar um lado positivo em toda e qualquer situação. É apenas o registro de transformações concretas ocorridas em três estados do país: Pernambuco, Rio de Janeiro e Sergipe. Seguidores dos exemplos de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, eles são apontados por especialistas em finanças e gestão pública como os destaques de uma segunda onda de modernização das administrações estaduais. O que estão fazendo consiste em aplicar conceitos básicos da administração, como manter as contas em dia, controlar despesas, estabelecer metas de trabalho, planejar investimentos mirando resultados, enfim, tudo o que é largamente aplicado dentro das boas empresas, mas praticamente desconhecido no setor público. A seu modo, esses estados têm demonstrado que é possível tornar a gestão pública mais eficiente. A eficiência, nesses casos, se traduz de várias maneiras:

• No contracheque reforçado da professora Marinalda Ramos, de 44 anos, que leciona português na escola estadual Ageu Magalhães, em Recife. Seu salário de julho veio com bônus de 2 344 reais, pago pelo governo de Pernambuco a todos os funcionários de escolas que atingiram a meta de desempenho fixada pela Secretaria de Educação. O prêmio variou de 250 a 2 350 reais, dependendo do salário do funcionário e do percentual da meta atingido em cada escola, avaliada pelas notas dos alunos e pela quantidade de aprovados.

• Nas inúmeras pequenas reduções de despesas em Sergipe, que somaram uma economia de 142 milhões de reais em 2008. A revisão de gastos colaborou para a realização de obras esperadas por anos, como a recuperação da Rota do Sertão, que custou 50 milhões de reais. A estrada liga a capital, Aracaju, ao interior do estado, onde fica uma das maiores bacias leiteiras do Nordeste e também uma área de beleza natural exuberante, o cânion Xingó, praticamente desconhecido dos turistas.

• Na reestruturação da área de pagamentos do estado do Rio de Janeiro, que era “uma esculhambação completa”, segundo um funcionário da tesouraria, que recusa se identificar por razões óbvias. Os credores não sabiam quando receberiam e os servidores não sabiam quanto podiam pagar. Quando as notas fiscais chegavam à tesouraria e não encontravam fundos, começava o jogo de empurra e os telefonemas do fornecedor aos altos funcionários do governo. Com as mudanças finalizadas em 2008, o prazo médio de pagamentos caiu de 120 para 20 dias. Hoje, os fornecedores verificam o dia do pagamento no portal do governo na internet. “Quando você paga em dia, atrai mais e melhores fornecedores e consegue comprar melhor”, diz Joaquim Levy, secretário da Fazenda do Rio de Janeiro.

Considerando o descontrole, e até o descaso, em relação ao dinheiro público no país, não é de estranhar que uma das primeiras providências das empreitadas de melhoria de gestão seja uma boa faxina nas despesas. Essa etapa do trabalho costuma revelar absurdos. Em Pernambuco, descobriu-se que os hospitais públicos pagavam imposto sobre circulação de mercadorias e serviços na compra de todos os medicamentos, mesmo os isentos do tributo. Fora isso, por pura falta de planejamento, praticamente todas as compras de remédios eram feitas em caráter de urgência, em pequenas quantidades, o que encarecia as transações. As mudanças no processo de compras geraram redução média de 20% no preço dos remédios e uma economia de 25 milhões de reais em 2008. Ao todo, a operação pente-fino em Pernambuco gerou 107 milhões de reais em economias. Obviamente, medidas desse tipo sozinhas não resolvem o problema central dos estados, que é a escassez de dinheiro para investir em áreas como infraestrutura de transportes, um dos gargalos no desenvolvimento do país. “O grande drama é que a maior parte dos recursos vai para o pagamento de pessoal, o que cria uma camisa de força para os governos”, afirma Raul Velloso, especialista em finanças públicas. “Esse problema não se resolve de uma hora para a outra, mas a melhoria de gestão tem de considerá-lo também.” Os primeiros estados a iniciar o trabalho mostram que estão no caminho. São Paulo cortou a proporção de gastos de pessoal em relação à receita de 61% para 56,5% de 2002 a 2008. Minas Gerais baixou de 65% para 57% e o Espírito Santo de 56% para 46%.

Escola de Pernambuco [Tiago Lubambo]
 


Escola de Pernambuco: a transformação vai da reforma de telhados a bônus de professores



A reorganização nos estados também inclui a revisão de processos que se repetiam de maneira ineficiente desde sempre. No Rio de Janeiro, a constatação de que o patrulhamento da Polícia Militar era prejudicado pela péssima manutenção da frota policial resultou no início da terceirização do serviço, em 2007. A manutenção dos carros sempre foi feita nas oficinas dos batalhões, exatamente como retratou o filme Tropa de Elite. Na ficção, a situação era desanimadora: os carros caíam aos pedaços, peças desapareciam e nunca se sabia quando, e se, sairiam da oficina. “A realidade era idêntica à ficção”, diz Roberto Sá, subsecretário de Segurança Pública do Rio. “Apenas 3 500 dos nossos 10 000 veículos funcionavam.” Na parcela da frota que foi terceirizada, que já soma 1 592 carros, a proporção de viaturas paradas foi reduzida de 65% para 5%.

Até aqui, situa-se a parte fácil das empreitadas de renovação no setor público. “As transformações de fundo dependem da estruturação de uma lógica de trabalho muito diferente da adotada pelos órgãos públicos não só no Brasil mas em quase todo o mundo”, afirma o inglês Michael Barber, coordenador de uma equipe criada pelo ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair com o objetivo de melhorar o desempenho do governo nas áreas de saúde, educação, criminalidade e transportes. Atualmente, Barber é sócio da consultoria de estratégia McKinsey. Segundo ele, é preciso definir prioridades e estabelecer metas muito claras do que se pretende alcançar em cada área. Não adianta estabelecer objetivos gerais. É preciso dizer que a prioridade é educação, por exemplo, mas também quais resultados devem ser alcançados e em quanto tempo. “A terceira tarefa obrigatória é a criação de uma forma de acompanhar o progresso das ações estabelecidas para chegar às metas, de preferência todo mês”, diz Barber.

Considerando as recomendações do consultor britânico, Pernambuco é um dos estados mais avançados da segunda onda de modernização da gestão pública. Em 2007, o governo estabeleceu um mapa com dez objetivos estratégicos, que se desdobram em mais de 400 ações. O clima na sala dos professores da escola Ageu Magalhães, em Recife, visitada por EXAME, mostra que o novo sistema de educação está saindo dos gabinetes do governo e chegando à ponta, ou seja, às escolas. A diretora Maria Antônia Lima e a professora Marinalda Ramos explicam o sistema de metas criado pelo atual governo. Em julho de 2007, Maria Antônia participou de um treinamento no qual ficou sabendo que todas as escolas seriam avaliadas anualmente. A primeira nota da Ageu Magalhães — 2,6 numa escala de 0 a 10 — fez com que a diretora participasse de outro treinamento, cujo foco era a elaboração de um plano para melhorar o desempenho da escola. “Nosso trabalho é diagnosticar, planejar, executar e corrigir”, afirma Danilo Cabral, secretário de Educação pernambucano.

No final do ano passado, a escola tirou nota 3,88 e ultrapassou a meta estabelecida até 2011, o que rendeu a seus funcionários o bônus pago em julho. Poucos meses antes, as duas professoras e os demais 27 000 concursados do estado receberam em casa um notebook novinho pago pelo governo. “Não dá para negar que a gente se sente mais importante com esse tipo de reconhecimento”, diz Marinalda. Outra mudança ocorreu no início deste ano, quando a Ageu Magalhães se transformou em escola referência. Com isso, os alunos permanecerão 9 horas dentro da sala de aula em dois dias da semana, o dobro da carga horária convencional. O aumento da carga é uma das ações para elevar a qualidade do aprendizado dos alunos. Em 2003, 13 escolas funcionavam nesse sistema. Atualmente são 103.

No Espírito Santo, estado que já está há mais tempo modernizando a gestão, os primeiros três anos foram dedicados a um ajuste fiscal. Era preciso reverter um quadro crítico: quando tomou posse, em 2003, o governador Paulo Hartung encontrou um rombo de 1,2 bilhão de reais em dívidas vencidas, incluindo três folhas de pagamentos atrasadas. Superada essa etapa, o governo elaborou uma agenda de longo prazo, com metas para o ano de 2025. A agenda é composta de 26 projetos prioritários, que norteiam os investimentos do estado, ficando com 80% dos recursos. Cada projeto tem um gerente que trabalha em parceria com o escritório de gestão do governo, criado em 2007 para o acompanhamento geral das iniciativas. É esse escritório que prepara um relatório chamado “Entregas para a sociedade”, utilizado na revisão do plano estratégico. Para este ano estão programadas 82 entregas, entre elas a recuperação de 85 nascentes de água, uma das ações do projeto Águas Limpas, destinado a melhorar o saneamento básico. De 2003 a 2008, a proporção de esgoto tratado em Vitória subiu de 35% para 58%. No estado, passou de 20% para 36%. O resultado foi obtido com a construção de 18 estações de tratamento. Outras 15 devem ser ampliadas ou construídas, das quais oito estão em obras. O objetivo é que, em 2011, Vitória seja a primeira capital brasileira com 100% de esgoto tratado e que o Espírito Santo alcance 60% de tratamento — a média no Brasil é de apenas 30%. O status de cada projeto é acompanhado pelos envolvidos no trabalho por uma intranet. Às vezes, o governador verifica informações até pelo celular. “Boa gestão pública se traduz em investimentos que se transformam em serviços e, por sua vez, mudam a realidade das pessoas”, afirma o governador Hartung, atualmente no segundo mandato. “E isso só é possível fazer com metodologia e informações certas.” Em 2008, o governo capixaba investiu 788 milhões de reais e fechou dezembro com 350 milhões em caixa. Neste ano, mesmo com a queda de arrecadação provocada pela crise, o Espírito Santo deve investir 1 bilhão de reais.

No quesito monitoramento, Pernambuco é mais uma vez exemplo. Toda terça-feira, o governador Eduardo Campos participa de duas reuniões que lhe tomam o dia inteiro, nas quais faz um balanço detalhado de dois dos dez objetivos estratégicos de seu governo. Ao final de cinco semanas, Campos encerra o acompanhamento das grandes metas estratégicas e, na semana seguinte, começa tudo de novo. O ritmo e a organização do trabalho impressionam. Em uma sala, batizada de “sala de controle”, reúnem-se todos os secretários envolvidos no objetivo a ser examinado. No caso do Pacto pela Vida, da área de segurança pública — o qual teve uma reunião de balanço acompanhada pela reportagem de EXAME –, são mais de duas dezenas de pessoas, entre profissionais das polícias Civil e Militar, do sistema carcerário, da administração penitenciária, do Corpo de Bombeiros e da Defensoria Pública. Além deles, técnicos garantem que não haja falhas na apresentação ao chefe, o governador. Durante 4 horas os encarregados pelas metas exibem lâminas e mais lâminas em um telão. São informações como o número semanal de homicídios dolosos ocorridos em 77 regiões do estado. No caso de obras, fotos são projetadas para mostrar em que pé estão (com data, por exigência do governador). Mapas com marcações em verde, amarelo e vermelho identificam as regiões mais problemáticas e as mais tranquilas, incluindo o nome dos responsáveis por cada uma. “O Brasil já provou que sabe arrecadar”, diz Eduardo Campos, referindo-se às eficientes estruturas de arrecadação que contam com corpos técnicos entre os mais preparados da burocracia brasileira. “Agora é preciso provar que sabe entregar serviços de qualidade”



Divulgação 



Tratamento de esgoto no Espírito Santo: Vitória quer ser a melhor capital em saneamento 


 
É claro que nem todos os estados estão no mesmo nível de planejamento e controle. Em Sergipe, o sistema é bem menos sofisticado. O andamento do trabalho ainda depende bem mais do esforço pessoal de um ou outro gestor, como o secretário adjunto da Casa Civil, Marcos Sales. Ele percorreu com a reportagem de EXAME um trecho da rodovia Rota do Sertão, que corta o estado rumo ao interior, explicando a quantidade e a espessura do concreto utilizado na obra. Fala da economia de horas que o motorista terá quando a ponte Joel Silveira estiver pronta e, finalmente, permitirá a ligação de Sergipe e Bahia pelo litoral. Sales também não se nega a sair do caminho para mostrar três Clínicas de Saúde da Família — uma espécie de posto de saúde mais sofisticado –, todas com o mesmo padrão de construção. Atualmente há 57 clínicas em construção e 45 em licitação. A meta do governo é ter pelo menos uma em cada um dos 75 municípios sergipanos. “Quando a rede estiver completa, reduziremos muito o deslocamento de pessoas para a capital, o que dará mais comodidade à população e cortará custos do estado”, diz Sales, sergipano de nascimento, mas com a maior parte da carreira feita no Rio de Janeiro, onde era executivo da Oi-Telemar.

A melhor parte da história é que há evidências de que os exemplos relatados não são iniciativas isoladas e fugazes. Refletem um movimento que vem se espalhando pelo país e, melhor do que isso, independentemente de partido político. Em Pernambuco, quem governa é o PSB; em Minas Gerais e São Paulo, o PSDB; no Espírito Santo e em Sergipe, o PT. Cidades como Porto Alegre, Curitiba e Sorocaba, na dianteira do movimento de modernização pública na esfera municipal, são administradas por PMDB e PSDB. Boa parte desses avanços foi impulsionada pelo Movimento Brasil Competitivo (MBC) — entidade que vem assessorando e financiando a modernização administrativa de vários estados e municípios. No congresso anual do MBC, realizado em julho, em Brasília, duas declarações mostraram que a onda de melhoria da gestão pública vem ganhando volume. A primeira foi do governador de Sergipe, Marcelo Deda: “Confesso que, quando assumi o governo, tinha preconceito contra as ferramentas de gestão, mas, hoje, reconheço que elas são um grande instrumento para administrar o estado. Não importa se o político é de direita ou de esquerda. A busca da eficiência é uma causa democrática e em Sergipe tem produzido resultados concretos”. A segunda declaração foi do fundador do MBC, o empresário Jorge Gerdau Johannpeter: “Se há dez anos alguém me dissesse que eu iria escutar isso de um político de esquerda, eu teria dito que a pessoa estava louca. Isso é um verdadeiro milagre. Eles compraram a ideia de melhoria da gestão e estão se beneficiando dela. E, sobretudo, a população de seus estados está ganhando”.