Alíquotas ad rem e a sonegação fiscal

Por ETCO
15/12/2022

Autor: Everardo Maciel

Fonte: Gazeta Mercanti, 21/06/2007

21 de Junho de 2007 – A cobrança de tarifa de importação de têxteis, por peso, não é protecionismo. A China tem adotado uma política extremamente agressiva em matéria de comércio exterior, sendo essa uma das razões que explicam as espetaculares taxas de crescimento que vem registrando nos últimos anos. Para conferir competitividade a seus produtos, os chineses fazem uso de meios lícitos e ilícitos. Recorrem, sem a menor cerimônia, ao dumping, à pirataria, ao subfaturamento, ao pagamento de salários vis a seus trabalhadores e a outros meios que evidenciam práticas desleais de comércio.

Os preços de certos produtos chineses que chegam ao mercado nacional assumem ar de verdadeira galhofa, sem qualquer termo de comparação com os usualmente praticados no mercado internacional. A aduana na verificação de preços para fins de aplicação do imposto de importação e outros gravames incidentes na importação de mercadorias faz uso das regras de valoração aduaneira, instituídas pelo Acordo de Marrakech e acolhidas pela Organização Mundial de Comércio (OMC).
A verdade, entretanto, é que essas regras não têm sido eficientes para deter esses casos de subfaturamento. Pouco importa elevar as alíquotas do imposto de importação, pois a base de cálculo se ajusta para baixo, neutralizando o potencial efeito do aumento na tarifa aduaneira.

Subfaturamento combinado com circunstâncias de apreciação cambial pode ter efeitos profundamente danosos para produção doméstica. Não há produtividade que resista a essa combinação, mormente nos setores industriais mais tradicionais. O setor têxtil brasileiro, por exemplo, vem sendo alvo de uma competição nociva com os produtos chineses. A adoção de medidas de proteção, no caso, não pode ser confundida com ato de protecionismo, no sentido pejorativo dessa palavra. Ao contrário, é medida imperativa na defesa da produção e emprego nacionais.
Fez bem o governo brasileiro quando acolheu demanda da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (ABIT) para tributar a importação de produtos têxteis mediante utilização de alíquota ad rem, também chamada de alíquota específica. A cobrança do imposto de importação, conforme previsto no art. 20 do Código Tributário Nacional, pode ser efetivada por meio da aplicação de alíquotas ad valorem ou ad rem: na primeira hipótese, a base de cálculo será o preço; na outra, será uma unidade de medida fixada em lei (por exemplo: peso, volume, natureza do recipiente ou qualquer outra unidade física). A escolha do tipo de alíquota resultará sempre de conveniência ditada pela prevenção da evasão fiscal e, na forma do art. 146-A da Constituição, dos desvios tributários concorrenciais.

A aplicação de alíquotas ad valorem na importação de produtos têxteis é completa ingenuidade. Os chineses saberão manipular os preços de tal forma que não haverá regra de valoração aduaneira que resulte eficaz. O Brasil, assim como freqüentemente fazem os EUA e outros países desenvolvidos, passará a tributar a importação de têxteis como base em alíquota ad rem, isto é, um valor fixo, em reais, por quilo do produto. De tudo isso se extrai uma lição, quando o preço é de difícil aferição ou facilmente manipulável o remédio é recorrer à alíquota ad rem. Esse dilema também se aplica aos impostos sobre o consumo, particularmente os impostos especiais sobre o consumo, como é o caso do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

No Brasil, por força da Lei n 7.798/89, o IPI de bebidas passou a ser tributado por meio de alíquotas ad rem, em vista da ampla manipulação dos preços que serviam de base de cálculo para aplicação das alíquotas ad valorem. Era muito difícil, quase impossível, identificar as parcelas de preços atribuíveis, por exemplo, a transporte ou propaganda, que não integram a base de cálculo do IPI. Em conseqüência, houve um aumento extraordinário da arrecadação. Posteriormente, essa mesma alíquota foi aplicada ao setor de tabaco (IPI) e ao de combustíveis (Cide).
Inúmeros países recorrem a essa mesma solução para efeito da determinação da base de cálculo de impostos especiais. Nem sempre pelas mesmas razões que inspiraram a solução brasileira. Na Europa, por exemplo, a tributação de bebidas busca conscientizar o contribuinte sobre as exterioridades negativas de suas preferências. Assim, a tributação das bebidas cresce com seu teor alcoólico. Esse tipo de tributação, é claro, somente pode ocorrer com alíquotas ad rem.

De tempos em tempos, no Brasil, alguns contribuintes se insurgem contra a utilização das alíquotas ad rem. A argumentação empregada é curiosa. Alega-se que a alíquota ad rem não é proporcional. Portanto, produtos com preços distintos são tributados com o mesmo valor, em reais. Ora, essa afirmação é um mero truísmo. Se a tributação fosse proporcional ao preço, seria ad valorem, e não ad rem. Talvez se queira, sem clara concatenação, recorrer ao princípio da capacidade contributiva para defender a prevalência das alíquotas ad valorem, negando a experiência internacional.
Na tributação do consumo, o verdadeiro contribuinte é o consumidor. Houvesse que aplicar o princípio da capacidade contributiva significaria que o imposto seria diferenciado em função da renda do consumidor, o que é impraticável. Admita-se, entretanto, que uma mesma alíquota ad rem incida sobre produtos com preços distintos. Essa incidência poderia resultar em margens distintas por produtos. Ocorre, contudo, que essas margens constituem base de cálculo do Imposto de Renda e da contribuição social sobre o lucro líquido, com maior repercussão justamente nas maiores margens. Há, por conseguinte, mera transferência entre tributos.
O singular é que essas queixas coincidem com o avanço do processo de implantação dos medidores de vazão nas indústrias de bebidas – medida decisiva no combate à evasão no setor e somente consistente com a existência de alíquotas ad rem. Preço como base de cálculo do IPI de bebidas tornaria inócuo o sistema de medidores de vazão e faria a festa dos sonegadores.

kicker: Não há produtividade que resista à combinação de subfaturamento com circunstâncias de apreciação cambial


Gazeta Mercantil/Caderno A – Pág. 3


Everardo Maciel – Consultor tributário e ex-secretário da Receita Federal.


Próximo artigo do autor em 12 de julho