Avanços da pirataria assustam empresas
Valor Econômico, 04/02/2005
Frederik Balfour, BusinessWeek, de Cantão (China)
A indústria mundial de falsificações está fora de controle, envolvendo de tudo – de chips de computadores a medicamentos que podem salvar vidas. A coisa está tão feia que até mesmo a China pode precisar reprimir essas atividades.
Um ano e meio atrás, a Pfizer recebeu um inquietante telefonema em sua linha direta de atendimento aos consumidores. Uma mulher que vinha tomando o medicamento Lipitor, supostamente da Pfizer, para baixar o nível de colesterol, queixou-se de que os comprimidos de um novo frasco tinham um gosto amargo. Ela enviou as pílulas suspeitas à companhia, que as testou em um laboratório em Groton, Connecticut. As pílulas brancas ovaladas pareciam ser perfeitamente genuínas – e até mesmo continham traços do ingrediente ativo do Lipitor. Mas a Pfizer logo determinou que eram produtos falsificados. Nos dois meses seguintes, distribuidores recolheram cerca de 16,5 milhões de tabletes que se encontravam em depósitos e prateleiras de farmácias em todo o país. Seria esse um caso isolado? Longe disso.
Em outubro passado, a polícia brasileira recebeu uma denúncia sobre um carregamento de cartuchos falsificados para impressoras a jato-de-tinta Hewlett-Packard e apreendeu mais que o equivalente a US$ 1 milhão em mercadorias. No ano passado, a polícia chinesa deu batidas quando confiscou todo tipo de mercadorias – de pára-brisas falsificados para Buicks a imitações do Viagra. Em Guam, o serviço secreto descobriu em julho uma rede que vendia falsificações, produzidas na Coréia do Norte, de produtos farmacêuticos, cigarros e notas de US$ 100.
Mas a indústria de falsificações cresceu – e isso está alarmando as multinacionais. “Vimos um enorme aumento nos últimos cinco anos, e existe um risco de se converter em uma espiral descontrolada”, diz Anthony Simon, diretor de marketing da Unilever Bestfoods. “Não é mais uma indústria de fundo de quintal.” A Organização Aduaneira Mundial estima que as falsificações correspondem a entre 5% a 7% do comércio mundial de mercadorias, equivalente a uma perda de vendas de até US$ 512 bilhões, no ano passado – embora os especialistas digam que isso é apenas uma estimativa. As apreensões de produtos falsificados pela alfândega americana deram um salto de 46% no ano passado, depois que os falsários ampliaram substancialmente suas exportações para mercados ocidentais. A Unilever diz que as imitações de seus xampus, sabonetes e chás estão crescendo a 30% anualmente. A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que 10% dos medicamentos em todo o mundo são falsificados – um risco letal que pode estar custando à indústria farmacêutica US$ 46 bilhões anualmente. As vendas de peças automobilísticas falsificadas podem chegar a US$ 12 bilhões em todo o mundo. “A falsificação transformou-se de inconveniente local em ameaça mundial”, diz Hanns Glatz, especialista da DaimlerChrysler em propriedade intelectual.
A escala da ameaça está estimulando novos esforços das multinacionais no sentido de impedir, ou pelo menos conter, a disseminação de produtos falsificados. As companhias estão mobilizando detetives em número cada vez maior em todo o mundo, pressionando governos – de Pequim a Brasília – visando reprimir, e tentar todo tipo de recursos – da rotulagem eletrônica ao redesenho de produtos à redução agressiva de preços – para enfrentar os falsários. Até mesmo algumas companhias chinesas, elas mesmas vítimas de falsificações, estão começando a agir defensivamente. “Depois que companhias chinesas começarem a levar outras companhias chinesas à Justiça, a situação ficará mais equilibrada”, diz Stephen Vickers, executivo-chefe da International Risk, uma firma de consultoria de Hong Kong especializada em proteção de marcas.
A China é fundamental para qualquer solução. Tendo em vista que o país é um gorila econômico, as falsificações no país também são feras – correspondendo a quase dois terços de todos os produtos falsificados e pirateados em todo o mundo. Estima-se que de pára-choques a blocos de motores “Daimler” tenham conquistado 30% do mercado na China, Taiwan e Coréia. E os falsários chineses produzem milhões de motocicletas por ano, sendo que as cópias desautorizadas da Honda CG125 são vendidas por cerca de US$ 300, ou seja, menos de metade do preço de uma Honda verdadeira.
“O governo chinês está começando a levar as coisas mais a sério em virtude dos protestos uniformes sem precedentes dos EUA, da Europa e do Japão”, diz Joseph Simone, um advogado especializado em questões de propriedade intelectual da Baker & McKenzie, em Hong Kong.
Entretanto, frear as atividades dos falsários na China e em outros países necessitará esforços heróicos. Isso porque as falsificações florescem em meio ao próprio processo de globalização. Afinal de contas, a globalização é a disseminação de capital e tecnologia em novos mercados, que por seu turno contribuem com mão-de-obra barata, dessa maneira criando a máquina exportadora ideal, fabricando inicialmente coisas baratas e, com o passar do tempo, incrementando a agregação de valor. Essa é a história no Sudeste Asiático. E é a mesma história na China. Agora, a mesma trajetória é trilhada pela indústria da falsificação. Esse tipo de pirataria beneficia-se ao máximo de mão-de-obra especializada, distribuição inteligente e diferenciação mercadológica de produtos sem se deixar enredar em detalhes incômodos e onerosos como pesquisa e desenvolvimento e construção de marcas.
O resultado é uma espécie de indústria mundial que está começando a rivalizar com as multinacionais em velocidade, alcance e sofisticação. Existem na China fábricas capazes de copiar um novo modelo de um sofisticado taco de golfe em menos de uma semana, diz Stu Herrington, que supervisiona as atividades de proteção de marca da Callaway Golf Co. “Os chineses são extremamente engenhosos, inventivos e cientificamente orientados, e estão se transformando na oficina mundial”, diz ele.
No ano passado, por exemplo, 15 crianças morreram depois de ingerir leite em pó falsificado
Os falsários são exímios em copiar hologramas, chips “inteligentes” e outros dispositivos de segurança incorporados a produtos legítimos com o objetivo de distingui-los das falsificações. “Tecnologias sofisticadas, cujo desenvolvimento nos custou anos, foram copiadas em questão de meses”, diz o diretor de marketing da Unilever.
Muitas falsificações, porém, estão ficando tão boas que mesmo executivos de empresas dizem ser necessário um cientista forense para distingui-las do produto verdadeiro. Armados com tecnologia digital, os falsários são capazes de produzir embalagens perfeitas – essenciais para ludibriar distribuidores atacadistas e persuadir consumidores varejistas. A General Motors (GM) deparou-se com falsificações de filtros de ar, pastilhas de freios e baterias. “Tivemos de desmontar os produtos ou submetê-los a análises químicas para podermos comprovar” que não eram legítimos, diz Alexander Theil, diretor de investigações da GM Asia Pacific. Essas peças possivelmente durariam metade do tempo de vida dos produtos legítimos, mas um consumidor somente se daria conta disso muito tempo após a compra.
Os falsários chegam a imitar as multinacionais diversificando seus fornecedores e bases de manufatura em diversos países. Em agosto passado, a polícia das Filipinas deu uma batida numa fábrica de cigarros em Pampanga, a duas horas de Manila. O que os policiais descobriram foi uma operação mundial em miniatura. A fábrica estava produzindo Davidoffs e Mild Sevens falsificados para serem exportados para Taiwan. A fábrica, cuja construção deve ter custado em torno de US$ 6 milhões, continha uma moderníssima máquina alemã para produção de cigarros capaz de produzir anualmente cerca de 3 bilhões de unidades, no equivalente a US$ 600 milhões. Eles tinham infra-estrutura de transportes, armazenamento, conhecimento e rede para transferir os produtos com facilidade.
Depois que um produto sai da China, ele pode ser inserido na cadeia legítima de suprimentos em praticamente qualquer país. Às vezes, componentes falsificados entram na montagem de produtos autênticos. No ano passado, por exemplo, a Kyocera, teve de recolher 1 milhão de baterias de telefones celulares que se revelaram falsificadas, o que custou à companhia pelo menos US$ 5 milhões.
Alguns comerciantes misturam imitações com produtos autênticos. “É fácil misturar algumas Levi’s falsificadas debaixo de uma pilha de calças legítimas”, diz um investigador que trabalha em Xangai. A cópia ilegal tornou-se tão lucrativa quanto o tráfico de narcóticos, e é bem menos arriscada. Na maioria dos países, os trangressores condenados livram-se com uma reprimenda e uma multa de alguns milhares de dólares. Os falsários, afinal de contas, não precisam cobrir custos com pesquisa e desenvolvimento, marketing e publicidade, e maior parte dos gastos são destinados a fazer com que seus produtos pareçam visualmente convincentes, independente de seu desempenho.
Enquanto os falsários estão acumulando lucros, as multinacionais estão gastando cada vez mais para detê-los. A LVMH Möet Hennessy Louis Vuitton, que manufatura artigos de luxo, gastou mais de US$ 16 milhões no ano passado em investigações, batidas e honorários legais.
Nos últimos seis anos, a fabricante de cigarros JT International incrementou seu orçamento antipirataria de US$ 200 mil para US$ 15 milhões, tendo gasto esse dinheiro para financiar uma rede de investigadores, advogados e informantes anônimos em fábricas suspeitas de produzir falsificações.
A Pfizer em breve adotará etiquetas identificadoras baseadas em sinais de radiofrequência em todas as embalagens de Viagra vendidas nos EUA, o que permitirá à companhia rastrear os medicamentos do laboratório ao armário de remédios. Outras companhias simplesmente tentam dificultar tanto quanto possível a vida dos fabricantes e distribuidores de falsificações promovendo batidas em fábricas e depósitos ou modificando ligeiramente o visual de seus produtos para tornar mais difícil, para os falsários, manterem-se atualizados em relação às versões autênticas dos produtos.
Em face da concorrência de cópias ilegais, a Yamaha reestruturou a maneira como projeta e fabrica motocicletas para baixar custos. Agora, a companhia está cobrando US$ 725 por sua moto mais barata, na China, antes vendida por cerca de US$ 1,8 mil. Para manterem-se competitivos, os falsificadores então reduziram seus preços de em torno de US$ 1 mil para aproximadamente a metade.
Os falsários não precisam cobrir custos com pesquisa, desenvolvimento e marketing
A maior dificuldade é obter a cooperação da China. Durante anos, as autoridades chinesas fechavam os olhos ao problema, em larga medida porque a maior parte do prejuízo recaía sobre os proprietários de marcas estrangeiras, e a maioria das falsificações era considerada como uma contravenção sem vítimas. A única vez em que a China agiu duramente contra os falsários foi quando houve um risco evidente para os chineses. No ano passado, por exemplo, 15 crianças morreram depois de ingerir leite em pó falsificado. O líder da gangue foi sentenciado a oito anos na prisão. Mas quando a vítima é uma companhia, e não uma pessoa, os tribunais são muito menos severos.
Entretanto, mais interesses empresariais chineses viram seus lucros afetados devido a falsificações – o que poderá resultar em uma reação mais dura de Pequim. A Li-Ning, “número um” autenticamente chinesa em tênis e roupas para a prática de esportes, recebeu o elogio máximo dos falsários: eles começaram a copiar seus tênis. Por essa razão, a Li-Ning tem hoje três funcionários em tempo integral rastreando os falsários. A estatal monopolista fabricante de cigarros está participando de batidas conjuntas com grandes empresas internacionais do setor, desde que os falsários começaram a produzir cópias de Double Happiness, Chunghwa e de outras marcas chinesas.
O governo está finalmente se dando conta de que a pirataria – que responde por 92% de todo o software usado no continente – não está apenas prejudicando companhias como a Microsoft. “A pirataria é um grande problema para o desenvolvimento de uma indústria local de desenvolvimento de software”, diz Victor Zhang, representante na China da Business Software Alliance, uma entidade representante de desenvolvedores de programas de computador. Alguns observadores receiam que as companhias ocidentais possam reduzir gastos com pesquisas na China, se o governo central não intensificar a repressão.
Agora, a China está endurecendo suas sanções legais. Em dezembro, Pequim baixou o limiar que justifica a abertura de processos criminais contra falsários. Antes das mudanças, era preciso que uma pessoa fosse apanhada com o equivalente a US$ 12 mil em mercadorias para que pudesse ser processada. Era fácil driblar a lei repartindo os estoques em diversos lugares. Hoje, o limiar baixou para US$ 6 mil para os falsários apanhados com produtos de uma só marca e US$ 3,6 mil para aqueles com duas ou mais marcas.
Muitos falsários mantém contatos com autoridades locais, que encaram as operações de falsificação como uma importante fonte de empregos e pilares da economia local. “Duas ou três de nossas batidas policiais deram em nada devido aos esquemas de proteção local”, disse Joseph Tsang, presidente do conselho da Marksman Consultants, de Hong Kong, que fizeram batidas contratados pela Titleist e Nike Golf.
Pequim diz estar fazendo o que pode. O governo alçou as questões relacionadas com a propriedade intelectual aos níveis mais elevados: O “czar” de comércio e vice-primeiro-ministro, Wu Yi, por exemplo, tem realizado reuniões regulares com a Comissão de Proteção de Qualidade de Marcas desde 2003.
Ainda mais alarmantes são as relações dos falsários com o submundo. “O crime organizado beneficia-se bastante com a pirataria”, diz Ronald K. Noble, secretário-geral da Interpol. E também o terrorismo. Noble diz que lucros de CDs pirateados vendidos na América Central financiam o Hezbollah no Oriente Médio. Um executivo de uma companhia de cigarros estima que a Coréia do Norte obtenha uma receita de US$ 100 milhões por ano em taxas cobradas de piratas que mantêm unidades de produção no país. Esse tipo de atividade prova que comprar produtos falsificados não é uma “atitude inocente, nem uma brincadeira”, conclui Bernard Arnault, presidente do conselho da LVMH. (Tradução de Sergio Blum)
(Colaboraram Carol Matlack, de Paris, Amy Barrett, da Filadélfia, Kerry Capell de Londres, Dexter Roberts de Pequim, Jonathan Wheatley, de São Paulo, William C. Symonds, de Boston, Paul Magnusson de Washington e Diane Brady , de Nova York)