Corruptos: somos todos ou só os outros?

Por ETCO
21/07/2011

Fonte: Portal Exame – São Paulo/SP – BLOGS – 09/12/2010

Autor: Bolívar Lamounier

Uma pesquisa da Transparência Internacional divulgada hoje pela Folha de S. Paulo mostra que menos de 6% dos brasileiros admitem ter praticado pequenos subornos para obter vantagens junto a agentes públicos de saúde, educação e fiscais. Esse diminuto índice coloca-nos ao lado de 23 outros países abençoados pelo santo padroeiro dos honestos.

O problema, segundo o mesmo levantamento, é que 64% dos brasileiros acham que a corrupção aumentou nos últimos três anos. Ou seja, quase não há corrupção, embora sejamos quase todos corruptos.

Discrepâncias como essa parecem-me inevitáveis nesse tipo de pesquisa – não tanto por seu caráter subjetivo, mas por se pedir ao entrevistado uma “confissão” algo embaraçosa e em seguida convidá-lo a vituperar genericamente os males da sociedade.

Como hoje é o Dia Internacional do Combate à Corrupção, vou meter a minha colher de pau no assunto corrupção, reproduzindo trechos de um texto que escrevi em 2007 para um seminário promovido pelo Instituto ETCO sobre a “cultura da transgressão”.

Os meios de comunicação têm ultimamente martelado a tecla de um “amoralismo” ao ver deles difundido em todas as camadas sociais. Esse diagnóstico soa-me correto.

Na verdade, milhões de cidadãos sequer identificam o que há de transgressivo em certas transgressões; outros tantos as vêem com complacência ou indiferença, e muitos admitem havê-las cometido ou cometê-las com freqüência.

Chego a me perguntar se a sociedade brasileira não terá saltado simplesmente de uma  pré-modernidade meio amoral (a do colonialismo português) para uma “modernidade” que também o é, só que em muito maior escala.

Um primeiro ponto a ressaltar é portanto a debilidade de nossa ordem normativa, ou seja, de nossas normas e valores como balizas para o comportamento em sociedade. De fato, entre nós, orientações e restrições derivadas da  tradição, da família, da religião ou da moral nunca foram muito eficazes na função de inibir ou coibir comportamentos transgressores.

Não descabe lembrar que, no Brasil, as igrejas cristãs nunca exerceram sobre seus rebanhos uma autoridade sequer remotamente  comparável à que elas ostentavam na Europa e nos Estados Unidos. Falta-me competência para discutir se a mencionada debilidade ocorreu devido à escassez de  recursos materiais à disposição do clero,  à míngua de vocações ou de fato à alegada inexistência de pecado abaixo do equador .

Outro ponto importante, gostemos ou não, é que a corrupção (o comportamento transgressivo) se generalizou – isto não só entre nós, por toda parte -, como o lado mau de uma moeda cujo lado bom é a modernidade econômica : o aumento da mobilidade social, a multiplicação de oportunidades, o crescente acesso das camadas de menor renda a uma infinidade de bens e serviços.

Nesta perspectiva, essa transgressão onipresente dos dias de hoje é a versão secular da queda do paraíso ou, se preferem, um correlato perverso da modernidade. Associa-se à “dessacralização” do mundo e à legitimação generalizada do desejo na  motivação do comportamento individual.

Nos anos 50 – época panglossiana do “desenvolvimentismo” – , numerosos intelectuais e políticos de toda a América Latina acreditaram que a industrialização e a urbanização se processariam sem solavancos e que os benefícios da modernidade logo se distribuiriam entre os estratos da sociedade.

Dois erros crassos de previsão. Mas o pior é que eles também previram ou pelo menos supuseram implicitamente que o resultado de tais processos seria uma sociedade bem integrada, pacífica, com índices substancialmente mais baixos de criminalidade.

Decorrido meio século, se existe entre os brasileiros alguma percepção compartilhada é com certeza a de havermos sido logrados pela história. A realidade é que todos nós, pobres e ricos, vivemos numa sociedade  – como se costuma dizer –  anômica,  esgarçada e  chocantemente violenta.

Mas não é justo jogar tanta responsabilidade nos ombros dos sociólogos e economistas de 50 anos atrás. Se eles projetaram uma trajetória relativamente indolor, foi porque não poderiam antever os efeitos de quatro ou cinco décadas de industrialização, crescimento demográfico acelerado, urbanização massiva e altamente concentrada em grandes áreas metropolitanas, quinze anos de crescimento econômico em “marcha forçada” seguidos por um quarto de século de quase-estagnação, e três décadas (do início dos anos 60 até 1994) de super-inflações praticamente ininterruptas .

Como poderia tudo isso ter acontecido sem estirar ainda mais a pobreza e as desigualdades sociais pré-existentes ?  Como imaginar um soft-landing, uma reintegração suave, numa sociedade malsaída de tamanhas rupturas e contradições ?

Mas atenção, atenção. Eu decididamente não subscrevo a teoria que vʠa criminalidade como consequência direta da pobreza ou das desigualdades de renda ; ou de ambas combinadas com o que acima chamei de “dessacralização” do mundo. Há outras variáveis em jogo.

O que estou dizendo é que a modernização brasileira – pelas razões que resumi acima -, foi tremendamente destrutiva para o tecido social e normativo, mesmo admitindo a prévia debilidade deste num país de formação colonial e escravista.

A tudo o que foi dito até aqui é obviamente necessário acrescentar o papel do Estado.  Em tese, a transgressão deve ser controlada pela ação preventiva, dissuasória e  repressiva do Estado. Mas entre a tese e a realidade existe em geral uma grande distância. Nenhum Estado é 100% efetivo nessa missão.

No Brasil, além de tolerar ou não ser capaz de prevenir muitos malefícios, o Estado tem direta ou indiretamente produzido outros tantos. Em sua função de aplicar as leis (law enforcement), ele não tem sido capaz de controlar o volume de transgressões, aliás nem de evitar que tais comportamentos se alastrem.  E nem preciso me deter na porosidade do território nacional a redes transgressoras de extrema periculosidade, como o narcotráfico. Ou no fato de os próprios corpos policiais aos quais incumbe materialmente a tarefa de coibir ações transgressivas serem vulneráveis à corrupção em suas numerosas formas.

A carga tributária e a elevada proporção do PIB que ela representa também merecem exame pela ótica de prováveis efeitos  “transgressogênicos”. Ninguém ignora que a carga atual esteriliza empreendimentos e desestimula empreendedores em todas as classes, restringe a criação de empregos e legitima, por assim dizer, a sonegação.

Que dizer da corrupção política, do clientelismo e da “privatização do Estado” ?

Há quem singelamente veja a corrupção política atual como uma  “sobrevivência” ou um prolongamento “natural” daquele antigo  “clientelismo” do interior e das áreas rurais, movido por ambições que em geral se contentavam com nomear a professora rural ou o agente dos correios.

Sim, claro, aquele velho clientelismo em parte sobreviveu. Seu habitat preferencial é hoje a periferia  das grandes cidades. Na verdade, ao perder suas bases rurais, o clientelismo tornou-se esquálido como fonte de influência política.

O que ocorreu de importante na segunda metade do século 20, foi que o Estado se agigantou como comprador de bens e serviços ; dessa forma, numerosas posições e funções de governo ipso facto se transformaram em alavancas de poder e enriquecimento. A escala de operações estendeu-se notavelmente.

Tendo como piso as pedestres “mordomias” e a manutenção de máquinas de escritório, e passando pelo eterno empreito de obras públicas do porte de rodovias, portos e aeroportos, ela hoje inclui até a contratação de serviços requintados, como  a publicidade da administração direta e das estatais.

Com seu faro apurado, centenas de piratas logo se habilitaram para singrar esses novos mares. Conhecendo como ninguém  a máquina pública, logo aportaram no arquipélago dos favorecimentos, das compras governamentais, das licitações fraudáveis e dos “recursos não-contabilizados”.

Esquematicamente, o que pretendi dizer com a peroração acima foi que, ao romper a barreira do subdesenvolvimento, o Brasil rompeu também o pouco que possuía de ordem normativa, e apenas começa a construir instituições e valores comparáveis, nesse aspecto, aos das sociedades mais desenvolvidas.

O mais provável é a almejada reintegração da sociedade se dar  – se é que vai se dar -, após dilatado período de tempo. Para isso, níveis mais altos de desenvolvimento serão uma condição necessária, mas não suficiente.

Muito dependerá da progressiva redução das desigualdades sociais, da oferta de oportunidades, do reforço de padrões civilizados de convívio, de uma reorientação profunda na estrutura e na forma de agir do Estado, e de um combate sem trégua ao narcotráfico e à criminalidade que dele decorre.