Direitos humanos e tributação

Por ETCO
29/07/2011

Fonte: O Estado de S.Paulo, 01/11/2010

Autor: Everardo Maciel*

Em artigo anterior, comentei a inclusão do imposto sobre grandes fortunas no bizarro III Plano Nacional de Direitos Humanos, convenientemente esquecido durante a campanha eleitoral. Procurei salientar a extravagância da inclusão e a insubsistência do imposto.

Recentemente, descobri algo que amplia a excentricidade daquela proposta. A “lei 002” pretendia tributar com uma alíquota de 10% qualquer patrimônio, cujo valor fosse igual ou superior ao equivalente a 1 milhão de dólares norte-americanos. A pena pela inobservância da obrigação implicava seqüestro dos titulares do patrimônio. A “lei” foi promulgada por Raúl Reyes, militante das Farc morto em 2008 no Equador. Se antes se supunha que o imposto sobre as grandes fortunas era uma esquisitice dos socialistas franceses, passamos a saber que é também o tributo preferido pela narcoguerrilha colombiana.

Em verdade, a conexão entre direitos humanos e a tributação se expressa em normas esparsas constitucionais e infraconstitucionais, tendo sido, além disso, objeto de incursões doutrinárias, como a notável obra de Ricardo Lobo Torres (“Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário), e trabalhos de pesquisa, como a que ora realiza o Instituto Brasiliense de Direito Público em colaboração com a FGV.
O tema pode ser explorado a partir de diferentes vertentes, como o recurso à tributação para conferir efetividade aos direitos humanos, as limitações ao poder de tributar, a observância do princípio da capacidade contributiva, a prevenção de discriminações e privilégios fiscais infundados ou, de forma mais singela e talvez mais objetiva, a efetivação dos direitos dos contribuintes.

Os direitos dos contribuintes só incidentalmente integram propostas de reforma tributária, porque a iniciativa das propostas é quase sempre do Poder Executivo, que cuida de centrá-las preponderantemente em questões de interesse do Estado. Tudo isso ganha fácil explicação em um contexto de acentuado déficit de cidadania.
Muitos países editaram códigos de direitos dos contribuintes. Entendo que, no Brasil, seria preferível incluí-lo como um capítulo do Código Tributário Nacional, para deixar claro que regras gerais de tributação devem se fazer acompanhar daqueles direitos. Sem pretender haurir a temática, seguem-se algumas questões relativas a direitos dos contribuintes, que merecem reflexão.

A instabilidade normativa é fator que desserve a transparência e aproveita à prática de sobressaltos tributários. Tomemos como exemplo a instituição ou majoração de tributos. Hoje, prevalece a noventena, às vezes combinada com anualidade.

Essa regra, afora de ser continuadamente violada pelas freqüentes revisões de pauta do ICMS, gera uma clara incongruência. Os orçamentos públicos, que devem ser balizados por relativa certeza no que concerne às estimativas de receitas, são encaminhados às casas legislativas ao final de agosto ou setembro, conforme o ente federativo. Os tributos, entretanto, podem ser alterados, a depender do caso, até o final do exercício. A solução para essa inconsistência consiste em condicionar a instituição ou aumento de tributos à sua aprovação até junho do exercício anterior, ressalvados os de caráter regulatório, nos termos da Constituição.

Ortega y Gasset dizia que a “clareza é a cortesia do legislador”. Poderia ter sido essa a razão que inspirou a instituição da exigência, prevista no art. 212 do Código Tributário Nacional, de consolidar, anualmente, até 31 de janeiro a legislação de cada tributo específico. Esse dever é solenemente desconhecido pelo Poder Público, que, todavia, reclama do contribuinte o impossível acompanhamento permanente da legislação. A norma necessita sair do campo programático para o impositivo, pelo estabelecimento de sanções ao titular do Poder Executivo do ente tributante que desobedecer a exigência.

Ainda na trilha da transparência, exsurge a proposta de centralizar soluções de consulta, com efeito erga omnes, por meio de um órgão paritário, integrado por representantes do fisco e dos contribuintes.

A imputação de responsabilidade fiscal tem sido frequentemente abusiva, porque feita sem prévia notificação, ao completo arrepio do devido processo legal, por mera suspeição e a qualquer tempo após o lançamento. Essa truculência se estende ao campo trabalhista. Não raro ocorre a penhora on line de ativos financeiros de advogados, pelo simples fato de terem integrado, em algum momento, procuração para cuidar de interesses de clientes, sem falar da pretensa responsabilidade solidária de pessoas que nada concorreram para prática de infrações fiscais. A matéria merece um disciplinamento severo para prevenir o império do terror que se pretende instalar.

Por último, sem menos importância, entendo que é chegado o momento de eliminar os privilégios processuais conferidos à Fazenda Pública, em termos de contagem de tempo em dobro para manifestação em processos e o insólito reexame necessário em sentenças que favoreçam o contribuinte.

* Everardo Maciel, consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002) / artigo publicado em O Estado de S. Paulo