É hora de combater os nossos terroristas

Por ETCO

Fonte: Folha de S. Paulo, 16/08/2004

Emerson Kapaz


Como afirma a revista “The Economist” ao comentar dois novos livros agora publicados na Inglaterra tendo como tema os piratas dos séculos 17 e 18: eles, os piratas, foram os primeiros terroristas. Agindo à margem da lei, saqueavam navios, roubavam cargas de ouro, prata, tabaco, açúcar e escravos, vivendo em Estados paralelos, combinando a força bruta com o cuidadoso marketing do estilo de vida que praticavam. Chegavam ao extremo de afirmar que praticavam a igualdade de direitos com a mesma naturalidade com que faziam a guerra.


A associação com o atual momento brasileiro é tentadora, quando não imediata. Entre nós, não existe o terrorismo formal, aquele que rejeita o espaço democrático para engajar-se numa luta clandestina e golpear o centro do poder do Estado por meio de atentados que possam simbolizar a sua capacidade de organização e de semear o medo. Os nossos terroristas trilham outros caminhos: a sonegação, o contrabando, a falsificação de produtos e marcas, mais conhecida como pirataria.


Mas os objetivos são os mesmos. Eles se espalham como se fossem um gás letal contaminando toda a economia. Fazem ruir empregos formais e enfraquecem a renda. Asfixiam a competitividade das empresas que cumprem com as responsabilidade fiscais e a competitividade do país. Iludem o consumidor com preços aparentemente menores, mas que camuflam a péssima qualidade do que é vendido. Ridicularizam as leis, alicerce basilar da democracia e das relações da sociedade com o Estado. Limitam a capacidade de investir do poder público na medida em que não pagam impostos. Corrompem, aliciam, desestruturam o ambiente dos mercados. E, como se nada disso bastasse, alimentam o crime organizado.


Também matam. Não com bombas, mas com assassinatos de encomenda denunciados pela mídia com relativa freqüência e de forma invisível, como informa o recente relatório da CPI que investigou a pirataria de produtos industrializados e a sonegação fiscal. No documento, está registrada a morte de 22 pessoas nos Estados de Goiás, Bahia e Minas Gerais pelo uso de produtos farmacêuticos de fabricação irregular, não autorizados e deliberadamente falsificados. Pelas mesmas razões, 11 bebês e um adulto morreram vítimas de infecções generalizadas em seis hospitais municipais do Rio de Janeiro e também pessoas ficaram cegas ou sofreram graves lesões no globo ocular. Pelo que apurou a CPI, os casos de maior gravidade ocorreram no Hospital de Olhos de Niterói e nos hospitais da Santa Casa de Misericórdia carioca e de Ribeirão Preto.


Não seria esse um terrorismo de novo tipo? Às vezes invisível, às vezes visível, sempre envolto no aterrorizante mas nem sempre perceptível véu da barbárie, a concorrência desleal tornou-se uma ameaça de terror que visa estabelecer uma cultura de desobediência civil, paralisar as empresas formais e manipular a consciência do cidadão para torná-lo cúmplice de uma situação que não traz nenhum benefício à nação. Combatê-la é defender os mais elevados interesses de progresso e desenvolvimento.


Os antigos piratas recrutavam seus exércitos justamente entre as camadas mais pobres e desesperançadas da população. Se os terroristas modernos acenam para os homens-bomba, por exemplo, com a possibilidade da vida eterna, os bucaneiros se cercavam de uma aura romântica que prometia um comunidade com vocação para a riqueza fácil e rápida. Naqueles tempos, as forças do progresso demoraram a reagir. Com maior ou menor intensidade, o terrorismo dos bucaneiros, que declararam guerra ao mundo, grassou nos mares por mais de dois séculos. Tanto que um dos ícones da pirataria, William Dampier, morreu aposentado, com mais de 60 anos de idade, na própria cama.


A pirataria só conheceu o ocaso depois que as forças da lei transformaram todo e qualquer navio como um alvo de atenção e investigação. É exatamente o que se precisa fazer no ambiente moderno. No Brasil, o momento é este. A economia está reagindo. Além da expansão do emprego formal e do crédito, dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior indicam que as empresas, pública e privadas, estão recuperando a confiança. Em números, são US$ 47 bilhões de novos investimentos programados, 30% acima daquilo que foi registrado no primeiro semestre do ano passado.


É um começo auspicioso. Planos que hibernavam nas gavetas estão ganhando contornos práticos em setores estratégicos. O país ensaia um ciclo virtuoso que poderá, sem dúvida, levá-lo a romper com o ciclo vicioso da pobreza, das agudas disparidades sociais e da estagnação. Se o terrorismo da concorrência desleal for combatido e neutralizado, há uma chance real de reencontrarmos o caminho das boas políticas desenvolvimentistas e proporcionar aos investidores macroestruturas estáveis que funcionem como verdadeiras extensões da hegemonia lei.



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Emerson Kapaz, 49, é presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial. Foi secretário da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo (governo Covas).