“Nunca antes…”, tanto incentivo à sonegação

Por ETCO

Fonte: Blog do Fred – SP – 18/11/2009

O ensaio a seguir, sob o título “Nunca antes na história desse País, tanto incentivo à sonegação!”, é de autoria do Procurador da República Celso Antonio Três, de Santa Catarina. Inspirado no bordão do presidente Lula, usado sempre que introduz dados auspiciosos de seu governo, o procurador imaginou o que seria –à luz do nosso ordenamento jurídico (leis e jurisprudência das cortes superiores de Brasília)– o roteiro de um discurso presidencial em suposto encontro nacional dos empreendedores antifisco, em suma, dos sonegadores de tributos:

1º) Provisiona na contabilidade a rubrica “sonegação”. Caso você seja autuado no breve quinquênio (art. 156, V, do Código Tributário Nacional) – a subordinação da jurisdição criminal à instância administrativa implica fulminar a possibilidade da ação penal uma vez operada a decadência do lançamento tributário (STF, HC 84555/RJ, Min. Cezar Peluso, 07.08.07), basta usar a poupança para livrar-se, não apenas da sonegação, mas também por eventual corrupção (propina) que tenha oferecido à autoridade fiscal (arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 8.137/90 e art. 34 da Lei nº 9.249/95).

2º) Prisão em flagrante jamais! Quem furta uma galinha está sujeito à detenção em flagrante (art. 301 do CPP). O sonegador, nunca! O crime estará consumado tão somente após o término do interminável processo administrativo-fiscal (STF, HC 81611/DF, 10.12.03, Informativo do STF nº 333). Impunidade & tranquilidade! Sequer apreensão (preocupação) com eventual apreensão (busca mediante ordem judicial) do “corpus delicti” (caixa 2, notas fiscais paralelas, falsas, etc.). Enquanto não exaurida a instância administrativa, Polícia Judiciária, Ministério Público e o próprio Judiciário estarão reclusos, inertes (STJ, HC 32.743-SP,- Informativo do STJ nº 296).

3º) Sequer pagar é preciso! Sem contar inúmeras outras formas extintivas do crédito tributário (v.g., prescrição, decadência, compensação por força de tributos diversos pretensamente recolhidos indevidamente – Lei 10.637/02 com efeitos retroativos: STJ, REsp 720.966-ES, Informativo do STJ nº. 275), basta parcelar e estará extinta a punibilidade (STJ, RHC 11.598-SC, Informativo do STJ nº133). Decretada a extinção da punibilidade, manda a Fazenda Pública “ver navios”, deixando que o restante do parcelamento seja honrado pelo “bispo”.

4º) Sequer parcelar é necessário! Suficiente a mera confissão (art. 337-A, §1º, do Código Penal), direito do sonegador que, via princípio da isonomia (art. 5º, “caput”, da Constituição), assim como ocorrido com o art. 34 da Lei nº 9.249/95, embora não reportando-se à sonegação previdenciária (v.g., art. 95, ‘d’, da Lei nº 8.212/91, ora art. 168-A do CP), a ela foi aplicado, estende-se aos tributos administrados pela Receita Federal, notadamente agora quando extinto o fisco previdenciário, unificado à Receita Federal do Brasil (arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90).

5º) Sequer confessar é exigido! A instância administrativa à qual está subordinada a ação penal é fonte inesgotável de chicana (STF, HC 81611/DF; arts. 25, §4º, e 26 do Decreto nº 70.235/72). Mesmo a garantia de instância, depósito (arrolamento de bens, etc.) ao recurso administrativo é imposto, fulminada a exigência pela inconstitucionalidade (STF, RE 388359/PE, Informativo do STF nº 462 – ADIs 1922, 1976 e 1074 Inf. do STF nº 461).

Basta consultar o andamento processual: www.conselhos.fazenda.gov.br, pesquisando pelo nome do autuado (“contribuinte”). Grandes grupos econômicos e ícones do mundo político, sempre às voltas com imputações de improbidade, todos têm presença cativa nas instâncias hierárquicas do Executivo, poder sempre audível aos seus interesses.

O passívo é brutal, mais de 40 mil processos (Ofício nº 076/GAB/PRES/CARF-MF, 09.04.09, subscrito por Carlos Alberto Freitas Barreto, Presidente do CARF, respondendo indagação do Procurador da República Rodrigo Valdez de Oliveira)!

Exaurida a interminável instância administrativa, ainda assim nada garante a “persecutio criminis”: a) provido recurso do autuado, extingue-se; b) improvido, não obstante presente provas de sonegação, o órgão fiscal pode excluir a representação ao Ministério Público.

No próprio Judiciário, também a suspensão do processo criminal (art. 93 do Código de Processo Penal) enquanto pendente no juízo cível discussão sobre a existência do crédito tributário (TRF/4ª, Rec. Sent. Estrito nº 2004.72.01.002174-7/SC, Informativo Criminal do TRF/4ª novembro/2004).

Al Capone, cinematográfico gangster norte-americano, assumiu o controle do crime organizado de Chicago, final dos anos 20, enriquecendo com a venda de bebidas ilegais (“lei seca”). Terminou preso por sonegação fiscal em 1930, condenado a 11 anos de prisão e multa de US$ 80 mil pelo Juiz Federal James H. Wilkerson. Fosse o STF a Suprema Corte dos EUA à época de Al Capone, o gangster jamais teria sido preso. Estaria aposentado muito antes de ser sequer acionado “in juditio”, ainda “sub judice” do Conselho de Contribuintes.

Enquanto o processo administrativo-fiscal amadurece, tal qual o vinho que envelhece em barris (prateleiras) de carvalho, não faltarão as corriqueiras anistias, consenso suprapartidário da impunidade, honrado governo após governo.

Governo FHC, o Refis (art. 15 da Lei nº 9.964/00), suspensa pretensão punitiva enquanto sob o parcelamento “ad eternum”, vez que os valores mensais são decididos pelo próprio sonegador, vinculados ao faturamento da pessoa jurídica, mercê de sua discricionária declaração, de forma que a projeção à quitação ultrapassa séculos. Folha de São Paulo, 01.02.04: “União parcela dívida em até 890 mil anos”.

Governo Lula é sempre melhor!


Teve o Paes (art. 9º da Lei nº 10.684/03). O pai (Paes) do pobres também é dos sonegadores! Reeditando suspensão da “persecutio criminis” pelo parcelamento (Refis), foi-se além, muito além, excluída a limitação anteriormente salvaguardada, qual seja, aplicação restrita às sonegações ainda não objeto de denúncia pelo Parquet recebida pelo Judiciário (art.
 9º da Lei nº 10.684/03), de forma que sepultou todas as persecuções pretéritas, incluindo as de trânsito em julgado (STF, HC 81929/RJ, Informativo do STF nº 334).

O Partido dos Trabalhadores lamenta apenas os trabalhadores da nobre Advocacia Criminal em massa desempregados com a medida.


Paes sem perder as benesses do Refis, como o milenar parcelamento. Entre outros artifícios, reduzir o faturamento da empresa, repassando a atividade a outras, em nome de familiares, “laranjas”, etc._ até ser enquadrada em micro ou de pequeno porte, situação em que não há limite (art. 1º, §3º, I, da Lei nº 10.684/03).

Exemplo do ex-Senador da República (DF) Luiz Estevão, com sonegação superior a R$ 200 milhões (Previdência Social e Receita Federal), terá 432 mil anos de prazo (“Ex-Senador Luiz Estevão vira pequeno empresário”, Folha de São Paulo, 23.01.05).


Depois, o Paex: parcelamento excepcional. O excepcional governo Lula fez ordinária essa prática.

Brandindo a defesa dos clubes de futebol, instituição nacional (“pátria de chuteiras”, diria Nelson Rodrigues), adveio a timemania, parcelando “ad eternum” (Lei nº 11.345/06) o passivo, de quebra, disseminando a benção às entidades filantrópicas, especialmente às “pilantrópicas” (art. 4º, §12º, da Lei nº 11.345/06).

Entrementes,  Medida Provisória nº 303/06, sequer votada, eficácia exaurida, extinguindo, contudo, a punibilidade de quem solicitou fracionamento do pagamento quando em vigor a norma.


Novamente, Lei nº 11.941/09, arts. 68 e 69, suspendendo a pretensão punitiva ad infinitum(retroativa e doravante) pertinente a todos os delitos tributários, incluindo apropriação indébita previdenciária.

E o resultado arrecadatório dessas infindáveis anistias?

Folha de São Paulo, 07.05.09: “Empresa refinancia, mas não paga tributos”. Ao Refis aderiram 129 mil empresas, excluídas 110 mil por inadimplência. Ao Paes, 374 mil ingressaram, excluídas 186 mil. Ao Paex anuiram 220 mil empresas.

6º) Na hipótese da antiguidade da autuação desfalecer a memória do sonegador, somada à desventura da condenação na instância administrativa e a inexistência de anistia, sem “streptus”! Caso o Ministério Público apresente denúncia, o Judiciário afetará ainda mais um prazo ao pagamento antes de seu recebimento (STJ, REsp nº 79.506/DF).

Como se, antes do advento da Lei nº 11.106/05, deduzida imputação por estupro, tendo em conta o então benefício extintivo da punibilidade (art. 107, VII, do CP), o Judiciário também poderia notificar o acusado a casar-se com a vítima. Coroando o teatro do absurdo, na hipótese de negativa da ofendida, caberia fazê-la conduzir ao altar sob vara!

7º) Recebida a denúncia pelo Judiciário, fugir do Oficial de Justiça, evadir-se da citação, mais do que Direito Natural, tem pleno amparo processual (art. 366 do CPP).


Enquanto não citado pessoalmente, suspenso estará o processo e a prescrição. Não, todavia, “ad eternum”. Tão somente até prescrita a ação “in abstracto” (STJ, Rec. Esp. 7.052/RJ). Até a prescrição consumar a impunidade, basta o sonegador não cometer o desatino de, de dedo em riste, adentrar o cartório judicial anunciando ali estar para ser citado. Nenhum risco de prisão preventiva, eis que ela pressupõe os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, inaplicáveis, de per si, ao sonegador não localizado.

8º) Tamanha a pródiga impunidade que ela faz obsoletos institutos que premiam a reconsideração da delinqüência. Casos típicos da tentativa, desistência voluntária, arrependimento eficaz e arrependimento posterior (arts. 14, II, 15 e 16, do Código Penal).


Se mesmo à sonegação consumada basta simplória confissão à impunidade (v.g., art. 337-A, §1º, do Código Penal), prejudicada qualquer relevância à tentativa, desistência ou arrependimento.

9º) Na pior das hipóteses, condenado em 1ª e 2ª instâncias, nada a temer. Pendência de recurso na instância extraordinária (STJ, STF), impede a execução provisória da pena (Informativo do STF nº 535).


Basta cavilar argumentos a propósito das centenas de normas tributárias e/ou penais para ensejar recurso especial e/ou extraordinário, cuja admissibilidade, de per si, obsta a execução da pena (STF, HC 84677/RS – Informativo do STF nº 371).

Afinal, na instância extraordinária, as extraordinárias picuinhas são irresistivelmente apetitosas. Exemplo patético o da Suprema Corte debruçar-se sobre obsceno ou não na exposição das nádegas do teatrólogo Gerald Thomas (STF, HC 83996/RJ, Informativo do STF nº 357). Processo ainda sob instrução em 1ª instância, o STF entrega-se à ridícula questiúncula. Certamente, também não negará ao sonegador qualquer discussão, por mais ínfima que seja.


O sonegador pode ser o mais transparente possível, qual seja, certificar, firmar mediante escritura pública que, não apenas sonegou, como continua e assim permanecerá sonegando por todo o sempre.

Porventura decretada sua prisão antes de transitado em julgado, a qual sempre terá caráter preventivo, poderá fugir, solenemente comunicando sua evasão ao Judiciário e advertindo que todas as instâncias deverão conhecer de seus intermináveis recursos, sabido que sem recepção constitucional o art. 595 do Código de Processo Penal, o qual obrigava o condenado a recolher-se à prisão para apelar (STF HC 85369/SP, 26.03.09, Informativo do STF nº 540).


Entrementes, enquanto a defesa social cumpre a via crúcis dos intermináveis escaninhos recursais, a prescrição corre resoluta, inexorável!

10º) Não bastassem as pródigas benesses aos sonegadores quando em curso a pretensão punitiva, aos que ainda assim tiverem a desventura de serem condenados, o Executivo, quando da pretensão executória, via indulto, obsequia-os, outorgando extinção da pena mediante cumprimento de apenas a metade das já afáveis sanções alternativas (v.g., art. 1º, VI, do Decreto nº 4.495/02).


Caso a Procuradoria da Fazenda Pública consiga ajuizar execução do débito tributário – ainda pior, penhorar bem móvel ou imóvel! – venda, sem pestanejar, e ria, ria escrachadamente da Corte (Poder Judiciário), pois ela, a Corte, será o próprio “bobo da corte”, nada podendo fazer senão quedar-se passiva ante o acinte, uma vez que inconstitucional prisão civil do depositário infiel (STF: RE 46634313/SP, Inf. do STF nº 531).

Finalmente, se, não obstante estas incomensuráveis impunidades, o sonegador ainda for apenado, realmente, merece! Se não pelo delito contra o fisco, certamente pela estratosférica incompetência de seu advogado (a), seu oceânico azar, “case” digno de ser mancheteado, ou a conversão do infrator à “Igreja dos Sonegadores Arrependidos”.

O sonegador, por definição quem substrai do poder público, pode receber do erário (“sic”). As vedações a quem definitivamente em débito com fisco, a exemplo da probição de licitar e contratar com a fazenda pública, encerrar e abrir novas empresas (Lei nº 7.711/88 e Lei 8.666/93), é inconstitucional (STF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, ADIs 172/DF e 394/DF, Inf. do STF nº 551).


Ao final do discurso de Lula, o público (sonegadores) aplaude em pé e entusiasticamente a fala presidencial!