O Brasil ilegal

Por ETCO

Fonte: Folha de S. Paulo, 12 de fevereiro de 2004

Por Joaquim Falcão

Conta-se que, na década de 70, um professor fazia pesquisas sobre o direito
de propriedade nas favelas do Rio de Janeiro. A certa altura, entrevistando um
morador, perguntou-lhe: “Mas o senhor não acha ilegal construir sua casa no
terreno de outro?”. O favelado, com a tranqüilidade da desesperança, teria
respondido: “Doutor, ilegal aqui não é meu barraco. Ilegal sou eu”.


Ele provavelmente não tinha carteira assinada, não pagava impostos, não
recebera educação fundamental como manda a Constituição, a energia elétrica de
seu barraco era gato, e por aí caminhava sua existência. Como morador,
trabalhador, consumidor ou contribuinte, ele era ilegal. O barraco sintetizava a
ampla ilegalidade que o constituía como cidadão.


Faz sentido. A Folha publicou recentemente estudo da UFRJ comprovando que
48,5% dos trabalhadores brasileiros, hoje ocupados, não têm carteira assinada
nem recolhem para a Previdência. São informais, nos cálculos dos economistas.
Ilegais, nos pareceres dos juristas. Essa ilegalidade não é mais privilégio do
favelado ou do trabalhador. É estigma de todos, classe média e elite também.
Seja pela pobreza, seja por outros motivos, somos um país de ilegais.


Abra os jornais. Em São Paulo, a mesma Folha faz pouco noticiou que 80% dos
estabelecimentos privados de ensino superior não cumprem a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação. No Rio, a manchete de “O Globo” dizia existir mais de 2
milhões de automóveis trafegando sem cumprir as normas do Código Nacional de
Trânsito. Para não falar no óbvio -nas grandes cidades, estima-se que mais de
30% da população more em loteamentos irregulares e em áreas
invadidas.









A ilegalidade não é mais privilégio do favelado ou do trabalhador. É
estigma de todos. Somos um país de ilegais






O ministro Márcio Thomaz Bastos aponta situação dramática: ninguém ou
quase ninguém consegue fechar uma empresa, terminar uma sociedade, dar baixa nos
registros ou deixar de existir legalmente, tamanhas são as exigências
burocráticas. A ilegalidade da pessoa jurídica sobrevive e arrasta com ela
empresários, sócios, fisco e credores. Para esses, o futuro já começou e é
ilegal.
Uma cultura da ilegalidade dissimulada, difusa e pactuada permeia a
vida nacional. Nós não “nos somos”. Somos apenas a evidência da renda mal
distribuída e do descumprimento de leis ideais, mas irreais. Somos
desconstruídos como cidadãos e reconstruídos como reféns da lei. A lei, feita em
nome do bem comum, paradoxalmente instaurou o mal de todos.


O guarda de trânsito não nos percebe como cidadãos a ajudar, colaborar e
apoiar. Somos, a priori, adversários e infratores. Em minutos de inspeção, ele
encontrará várias exigências legais não-cumpridas no carro, no comportamento ou
na carteira de motorista. O empresário não é o cidadão que produz: é, antes, a
possibilidade da notificação certa, da multa inevitável pela prefeitura, governo
estadual ou federal. Tantas e insuscetíveis de cumprir são as exigências
legais.


A submissão do cidadão ilegal diante da autoridade legal é terreno fértil
para o autoritarismo. O regime político autoritário acabou. O viés
administrativo autoritário não. Com raras exceções, o burocrata não orienta ou
auxilia o cidadão, mas o condena ao demorar, ao lavar as mãos e ao fazer
exigências desnecessárias. Como, então, sobreviver?


São dois os caminhos. O primeiro, de curto prazo, é autofágico. Sob o Brasil
legal e formal, viceja cada dia mais forte o Brasil ilegal e informal. Nessa
convivência de contrários, despreza-se a lei e corrompe-se a autoridade. Esse
caminho não nos torna nação produtiva, solidária e democrática, mas, ao
contrário, divide-nos em dois Brasis, desconfiantes e desconfiados, mutuamente
destrutivos.


O segundo, de longo prazo, mais difícil, é o da construção de instituições
democráticas viáveis. Passa pela experimentação de novas relações entre Estado e
sociedade. Pressupõe que se entenda que a ilegalidade que importa hoje no Brasil
não é a individual. É a coletiva. Mede-se aos milhões. Não resulta da ação do
cidadão, mas da pobreza estrutural da maioria dos brasileiros e da relação
autofágica entre a ambição do Estado em ser independente e controlar a sociedade
civil e a desorganização e alienação escapista de todos, sobretudo do jovem.
Legal ou ilegal não é o cidadão.


A solução não é multar, processar ou registrar nas listas negras todos os
brasileiros, um a um, ou ainda lutar individualmente na Justiça tardia por um
direito que é de todos. A solução terá de ser de massa.


Houve uma época em que o Brasil adotou um programa de desburocratização;
agora, é hora de adotarmos um programa regular de libertação da cidadania. Com a
missão de desfazer registros injustos, legalizar a realidade plausível e revogar
leis ineficazes. Voltado para a sistemática e permanente “deslegalização” dos
autoritarismos cotidiano, político e econômico. Com as lideranças políticas e
sociais juntas, é hora de tentar fazer de cada brasileiro o que ele genuinamente
quer ser: um legal e livre proprietário de si próprio. Cidadão legal.





Joaquim Falcão, 60, mestre em direito pela Universidade
Harvard (EUA), é diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio
de Janeiro e professor de direito constitucional da UFRJ.