O debate sobre as patentes na indústria farmacêutica

Por ETCO

Autor: Samuel Pessôa, Claudio Considera e Mário Ribeiro*

Fonte: Valor Econômico, 19/09/2007

Nas duas últimas décadas, instituições nacionais e internacionais voltadas para a proteção da propriedade intelectual (PI) têm sido objeto de acirradas discussões técnicas e políticas. Recentemente, durante a Rodada Uruguai (1986-94), os membros do que hoje é a Organização Mundial do Comércio (OMC) celebraram um acordo internacional sobre propriedade intelectual conhecido como “Trips” (Tradre-Related Aspects of Intellectual Property Rights), que fixou os padrões mínimos de proteção que deveriam ser seguidos pelos signatários.

No Brasil, o marco foi a Lei nº 9.279, de maio de 1996, que passou a regular os direitos e as obrigações relativos à propriedade industrial. Em 4 de maio deste ano, o governo brasileiro, pela primeira vez desde que aderiu ao Trips, decretou o licenciamento compulsório de um medicamento. A maioria das manifestações públicas sobre este ato foi de apoio, ressaltando o suposto barateamento do tratamento público, a “injustiça social” de se cobrar o direito de uso de idéias que salvam vidas, o “alto custo” dos medicamentos patenteados no Brasil etc. Detecta-se nessa discussão a falta de um exame da racionalidade econômica do instituto da patente. Este artigo tem o intuito de contribuir para preencher esta lacuna.


É amplamente reconhecido que a inovação tecnológica é o único motor do crescimento no longo prazo. Sem mudança técnica o crescimento se esgota. A forma de se incentivar a produção de conhecimento, e conseqüentemente garantir o crescimento, é a existência de leis que garantam os direitos de propriedade intelectual. Há indústrias nas quais a vantagem da liderança e o segredo produzem suficiente proteção da propriedade intelectual (PI). Na indústria de fármacos, entretanto, instituições que garantam a PI são absolutamente essenciais. Ela apresenta grandes custos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e baixo custo de imitação, constituindo-se em caso paradigmático no qual as instituições de PI são essenciais.

Diferentemente do que muitos acreditam e propagam, a indústria farmacêutica não apresenta lucratividade excessiva. A sua aparente elevada rentabilidade é conseqüência de se ignorar os elevados custos de P&D e do risco maior desta atividade, o que encarece o custo oportunidade de capital. Se esses fatores forem considerados, a rentabilidade da indústria revela-se igual à rentabilidade normal de longo prazo de qualquer atividade econômica. O retorno social da atividade de P&D e fármacos é diferente do retorno privado. Neste caso, devido à natureza de bem público do conhecimento, o retorno privado é menor do que o retorno social. Inúmeros estudos demonstram que a taxa social de retorno em P&D em fármacos está na casa de 27% ao ano. Esse resultado é surpreendente, pois a taxa real privada de retorno do investimento nos diversos setores encontra-se no intervalo de 7% a 12% ao ano, bem abaixo da taxa social de retorno do investimento em P&D. Assim, é muito forte a evidência empírica de que as economias devem elevar seus investimentos de P&D em fármacos, pois todas as medidas de bem-estar mostram que o impacto de novos produtos farmacêuticos sobre a sobrevida e a melhora da qualidade de vida, bem como sobre a redução de outros custos médicos, mais do que compensam os custos do remédio.


Existe um conflito natural entre as instituições de PI (que criam monopólios) e a lei de defesa da concorrência. Mas apenas aparentemente esse é um conflito entre o consumidor (doente) e o laboratório. Se assim fosse, a defesa da concorrência deveria ter antecedência à PI. No entanto, como afirmado antes, o impacto sobre o bem-estar dos investimentos em P&D em fármacos é bem maior do que o seu custo, assim como há claros sinais de subinvestimento no setor, de sorte que o conflito que há é entre o doente de hoje e o doente de amanhã. A teoria econômica sugere que a forma mais eficiente de solucionar o conflito entre ganhos estáticos e dinâmicos é empregar os mecanismos de PI associados a transferências diretas de recursos públicos aos doentes que não tenham condições financeiras de arcar com os custos dos remédios protegidos pela patente.

Do ponto de vista da economia globalizada, o acordo Trips, que regula as patentes, eleva a eficiência econômica


Por sua vez, do ponto de vista da economia globalizada, o acordo Trips, que regula internacionalmente as patentes, eleva a eficiência econômica, pois cria um mecanismo de coordenação entre diversos países de forma a compartilhar os custos de P&D. Sem isso, a resposta ótima de cada país isoladamente é reduzir suas garantias de PI produzindo, entre os países, seguidas rodadas de redução dos direitos patentários, com impactos ruins sobre o estímulo à inovação, especialmente na indústria farmacêutica. Em termos de eficiência estática, o acordo Trips não é neutro do ponto de vista da distribuição dos custos entre as economias. Os países que produzem menos tecnologia pagarão mais aos países que são os grandes produtores, principalmente os EUA. Cálculos em diversos estudos sugerem que esses custos podem ser da ordem de 0,25% do PIB para países de renda intermediária, como Brasil, Grécia e México, ou ainda para países ricos que não são muito inovadores, como Canadá e Noruega. Em termos de eficiência dinâmica, entretanto, pode se considerar que no setor farmacêutico ele favorece os países que produzem menos tecnologia, pois o valor acima, por representar somente o custo, não considera o efeito do Trips sobre a elevação da velocidade de produção de novas tecnologias (que é particularmente importante nos produtos farmacêuticos) nem possíveis efeitos benéficos de elevação do investimento externo direto.


Considerando o acordo Trips do ponto de vista distributivo, não é possível saber se ele é equânime. O detentor da patente, por ser um monopolista, discrimina preços, de sorte que os consumidores dos países mais pobres pagam menos pela unidade do medicamento, mas essa redução de preço pode não ser suficiente para permitir o consumo pela sociedade. Esse, por exemplo, é o caso das nações da África Subsaariana. Não há razões para supor que seja o caso do Brasil, país de renda per capita média, cujo custo (0,25% do PIB) pode perfeitamente ser arcado pela sociedade.

Finalmente, podemos perguntar se licenciamento compulsório é uma boa política pública. Nossa resposta é não. Como argumentamos, a principal função do Trips é estabelecer mecanismo que coordene as decisões dos diferentes atores. O licenciamento compulsório representa solução descentralizada: cada país isoladamente escolhe o nível ótimo de PI, desconsiderando a reação dos demais. Num mundo globalizado, inexistindo um ator que claramente seja muito maior do que os demais (como era o caso dos EUA até os anos 70), a solução descoordenada é ruim. O compartilhamento entre os diferentes países dos custos da inovação deve ser tratada pelas chancelarias dos diversos países.


Este texto foi extraído de trabalho dos autores intitulado “O papel do instituto da patente no desempenho da indústria farmacêutica”, disponível nos sites das instituições a que são filiados.

*Samuel de Abreu Pessôa é professor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas (EPGE/FGV) e pesquisador do instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV).


*Claudio Monteiro Considera é professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF).


*Mário Ramos Ribeiro é professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Pará (UFPa).