O soneto melhor que a emenda

Por ETCO

REFORMA NÃO SANA DISTORÇÕES DO MODELO TRIBUTÁRIO


Por Emerson Kapaz


Como as antigas catedrais barrocas, as reformas no Brasil têm data para começar, mas não para terminar. Testemunha desta realidade é a reforma tributária que em 2004 completará uma década sem que se vislumbre ainda um modelo capaz de reduzir alíquotas, democratizar o pagamento de impostos e, assim, reduzir o número daqueles que atuam na ilegalidade fazendo da sonegação um diferencial competitivo.


Ao se prolongar por um tempo, muitas vezes contado em séculos, as catedrais naturalmente se desviavam do projeto original, incorporando traços arquitetônicos de diferentes épocas, embora na aparência mantivessem a harmonia. Essa tendência, guardadas as proporções, reflete como num espelho o que vem acontecendo com a reforma tributária no País. Cada vez que soa o sinal de alarme da arrecadação, anunciando perspectiva de déficit, a alternativa imediata é aumentar o valor e o número de impostos.


Numa visão retrospectiva, vamos encontrar o governo da União dando forma, entre outros tributos, à CPMF, com foco nas operações financeiras, e a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), esta agora alvo de uma nova elevação. Medida provisória editada em outubro põe fim à incidência cumulativa, mas em compensação a alíquota sobe de 3% para 7,6%. A alta – pasmem! – é de 153,3%. A conclusão imediata é que se tenta resolver as distorções do modelo tributário com emendas que não solucionam os problemas já existentes. Ao contrário, apenas ampliam os conflitos e tensões mantendo a economia prisioneira do espartilho da imobilidade.


Todos sabem que o Brasil precisa voltar a crescer firmemente por quatro a cinco anos. Ao se debruçarem sobre a proposta inicial de reforma tributária, muitos analistas entendem que houve avanços. De concreto teremos, porém, a elevação da carga impositiva para muitos setores que, certamente, terão de repassá-la para os preços. O cidadão, por sua vez, também pagará mais impostos porque a tabela do Imposto de Renda não foi corrigida. Se avanços existiram, estes virão a longo prazo, lá pelos anos de 2005 e 2006.


E, assim, vamos assistindo a um preocupante descolamento do mundo financeiro e da política em relação à realidade econômica. Enquanto o consumidor vê volatilizar sua renda, o crescimento é postergado e os juros reais ainda se encontram em patamares muito elevados, as C-Bonds estão em alta, o risco Brasil em baixa e também os elogios da comunidade econômica internacional. São dois mundos paralelos que precisam encontrar um ponto de interseção. Por razões simples: a política e o sistema financeiro não podem, em hipótese alguma, operar autonomamente. Portanto, torna-se imperativa a aproximação, e não o distanciamento, do cotidiano dos negócios e das pessoas.


Há unanimidade quanto à necessidade de retomar os investimentos públicos, incentivar os capitais privados, criar uma relação consistente entre a participação dos impostos em relação ao produto interno e a arrecadação. Tudo isso encontra-se diretamente associado ao equilíbrio entre os gastos do setor público e a capacidade de arrecadação. A sociedade civil, o empresariado à frente, tem procurado mostrar que a busca do equilíbrio deve-se dar pelo corte de custos combinado com ampla reforma administrativa e não pela mera elevação de tributos. Se os impostos se tornam elevados, a conseqüência natural é o estímulo à concorrência antiética.


O quadro atual é herdeiro do milagre econômico da primeira metade dos anos 70. Foi quando começou a escalada dos impostos para cobrir os gastos públicos. Desde então o que se tem visto é uma nova versão da derrama dos tempos coloniais. Uma época em que os produtos ingleses eram gravados em 60% do valor, mas chegavam aos mercados do Nordeste e do Rio de Janeiro sem pagar um tostão à coroa. É uma lição da história que não deveria ser esquecida, mas avaliada em seus múltiplos ângulos para melhor iluminar as alternativas e os males do presente. Contudo, há novidades positivas nos dias atuais. Uma delas nasce da iniciativa do governo de São Paulo que, num gesto pioneiro, reduziu as alíquotas do ICMS do álcool de 25% para 12%.


É um duro golpe no comércio ilegal do produto que sonega, em âmbito nacional, R$ 1,5 bilhão. Detalhe importante: as perdas de São Paulo somavam R$ 1 bilhão. Certamente, irão recuar. Por quê? O crime deixou de compensar. Em paralelo, o governo paulista reduziu as alíquotas de mais de duas centenas de produtos.


Diante de iniciativas como estas, é aconselhável acreditar que cedo ou tarde o princípio da realidade voltará a se afirmar, orientado para uma empreitada que não mais pode ser adiada: a demolição de emendas – melhor seria dizer remendos – que pela precariedade, só prejudicam o sistema tributário e fazem do sistema financeiro cada vez mais um estrangeiro se o tema for o financiamento da retomada do desenvolvimento.


Em outras palavras, as emendas têm saído sempre pior do que os sonetos. Fica a pergunta: se é assim, por que não escrever os sonetos – leia-se as reformas – e abolir, definitivamente, o hábito de ficar fazendo emendas que nada resolvem, que logo serão substituídas por outras, e mais outras, e mais outras num irrefreável processo de desestruturação das relações econômicas?


Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo – 13.01.2004