Por que o Brasil pode vencer a corrupção

Por ETCO

Autor: Wálter Nunes

Fonte: Época, 16/03/2008

Declínio, devassidão e indecência. as palavras mais usadas pelos dicionários
para definir corrupção envolvem um incômodo tipo de decadência moral. Pesquisas
recentes revelam que a corrupção é o principal motivo de vergonha dos
brasileiros, acima da violência e da pobreza. Essa grande vilã é ainda mais
nefasta por ajudar a perpetuar a miséria e a criminalidade. Com a corrupção,
interesses pessoais se sobrepõem aos coletivos. O bem comum dá lugar ao
enriquecimento ilícito de poucos.

Experiências internacionais mostram que combater a corrupção é o primeiro
passo para conter o crime organizado e também para criar instituições sólidas em
todos os países. É fato que o Brasil progrediu nesse campo. Desde a Constituição
de 1988, os procuradores do Ministério Público podem agir de forma independente
na fiscalização de políticos e funcionários públicos. O Congresso também tem
ampla liberdade para investigar o governo. Há órgãos atuantes na fiscalização
das contas públicas, como a Controladoria-Geral da União (CGU) ou os tribunais
de contas. Já flagramos parlamentares, governadores, prefeitos e até um
presidente – Fernando Collor, que sofreu impeachment.

Esse avanço institucional se dá de modo gradual. À medida que as denúncias
iluminam o submundo da política e da burocracia estatal, a descoberta de novas
brechas para a corrupção permite aperfeiçoar ainda mais as instituições. Nesta
primeira edição de ÉPOCA Debate, procuramos entender como o Brasil tem avançado
no combate à corrupção e o que falta para que o país consiga debelar esse
problema secular.

Investigar, identificar e prender suspeitos é o primeiro passo no
combate aos corruptos

A maior novidade dos últimos anos no combate aos corruptos tem sido a ação da
Polícia Federal. Com operações de nomes estrepitosos – como Gafanhoto, Gato de
Botas, Cavalo de Tróia, Sanguessuga ou Navalha–, a PF foi a instituição que mais
avançou no combate à corrupção. Entre 2003 e 2006, foram desbaratadas
organizações criminosas que movimentaram mais de R$ 50 bilhões e fizeram o país
perder, em desvio de dinheiro e sonegação fiscal, mais de R$ 18 bilhões, o
equivalente ao orçamento anual do Estado do Paraná. Em muitos casos, a PF foi
acusada de cometer exageros e de transformar suas operações em espetáculos
televisivos. Mas o salto institucional é indiscutível. “Rompemos com a inércia
do imaginário do cidadão. Hoje, todos estão conscientes de que podem ser
alcançados pelo Estado”, diz o diretor-geral da PF, Luiz Fernando Corrêa.
Esquemas de desvio de dinheiro público, antes considerados um aspecto inerente à
burocracia estatal, passaram a ser investigados, denunciados e desbaratados, sem
poupar empresários, juízes ou políticos.

O retrato da impunidade

Investigar, identificar e prender suspeitos é, porém, apenas o primeiro elo
da corrente de combate aos corruptos. Condená-los a penas severas na Justiça é o
passo seguinte – e é nesse ponto que o Brasil tem falhado. É isso o que mostra o
mais completo levantamento já realizado no país sobre as investigações da
Polícia Federal nos últimos anos. Durante três meses, ÉPOCA pesquisou, uma a
uma, todas as 292 operações realizadas pela Polícia Federal entre junho de 2003
e dezembro de 2006. Dessas, 216 se referiam a casos de corrupção, com o
envolvimento de agentes e órgãos públicos (são esses os casos apresentados no
quadro que percorre as próximas páginas). O levantamento não incluiu as
operações realizadas a partir de 2007 – o critério foi averiguar apenas as
operações com intervalo de tempo suficiente para que os processos na Justiça
chegassem, pelo menos, ao fim de julgamento na primeira instância. Para medir o
resultado das operações da PF, a reportagem entrevistou mais de uma centena de
delegados, procuradores e juízes envolvidos nessas ações. Decantou cada
inquérito entregue pela PF ao Ministério Público e as denúncias remetidas para
os tribunais de Justiça. O objetivo era descobrir quantos presos, afinal, foram
efetivamente condenados e punidos com cadeia. As conclusões foram as
seguintes:

* nas 216 operações, a Polícia Federal prendeu 3.712 pessoas para
averiguação

* entre elas, havia 1.098 funcionários públicos (107 da própria PF)

* apenas 432, ou 11%, tinham sido condenados pela Justiça em primeira
instância até o fim do ano passado

* dos condenados, só 265 realmente estavam cumprindo pena de prisão até o fim
do ano passado – 7% de todos que foram detidos.

Tradução: de cada cem suspeitos detidos pela polícia, apenas sete acabaram na
cadeia. Esses números revelam a ineficiência da Justiça em punir com rapidez.
Eles sugerem que o Brasil, no combate à corrupção, vive a clássica situação do
copo cheio pela metade: ele está meio cheio, mas também meio vazio. Avançamos, é
verdade. Mas não o suficiente para derrotar o principal motor da corrupção: a
impunidade. Quando apenas sete de cada cem suspeitos de corrupção vão para a
cadeia, fica difícil para um corrupto imaginar que ele poderá ser punido por
seus crimes.

O Brasil perde a cada ano 5% do PIB por causa da corrupção, segundo
um estudo da FGV

“A certeza da punição é o que diminui o crime, e não uma pena mais ou menos
dura”, diz a cientista política Maria Tereza Sadek, professora da Universidade
de São Paulo (USP) e uma das maiores especialistas brasileiras em Justiça
(clique aqui e leia a entrevista). “Os comportamentos desviantes são estimulados
se as pessoas não têm a certeza de que serão punidas.”

O combate à corrupção no Brasil lembra o mito grego de Sísifo. Por ofender os
deuses, Sísifo fora condenado a empurrar uma pedra montanha acima. Quando
chegava ao topo, a pedra rolava montanha abaixo. Sísifo precisava, então,
refazer todo o trabalho. Se a Justiça falha na punição dos corruptos, se é a
impunidade que prevalece, o país fica sempre, como Sísifo, empurrando pedras
montanhas acima, num esforço inútil.

O primeiro efeito da impunidade é a lassidão moral que se abate sobre a
sociedade. Os brasileiros se acostumaram a associar corrupção ao desvio de
verbas públicas. Mas ela é mais que isso. Vai do “presentinho” que a empresa
oferece ao funcionário público até a compra de sentenças no Judiciário. É a
propina que as quadrilhas pagam aos fiscais para extrair e contrabandear madeira
ilegalmente; o suborno do policial de rua que faz vistas grossas à prostituição
infantil e ao tráfico de drogas; o “ágio” pago à auto-escola para tirar a
carteira de habilitação sem fazer exame. Longe dos grandes escândalos que ganham
os holofotes da mídia, a corrupção se dissemina no varejo anonimamente. Ao
incorporar o suborno como inevitável – graças à sensação de impunidade –, o país
incorre numa auto-sabotagem velada. O fiscal que deixa entrar mercadorias
pirateadas da China permite a concorrência desleal à indústria brasileira. O
funcionário público que desvia um lote de vacinas expõe as pessoas ao risco de
morrer. Onde há um servidor público corrupto, o Estado perde eficiência, a
população deixa de ser atendida como merece e o crime se fortalece.

Tudo isso tem um custo econômico. O Brasil perde, a cada ano, o equivalente a
5% do PIB, ou R$ 130 bilhões, por causa da corrupção, segundo cálculos do
economista Marcos Fernandes, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de São
Paulo. “O custo da corrupção não é só o valor do dinheiro drenado do poder
público e dos indivíduos”, diz Fernandes. “O problema grave da impunidade é que
ele é sintoma de insegurança jurídica.” A segurança jurídica – um conjunto de
regras claras e estáveis em que todos confiem – traz investimentos, crescimento,
empregos, inovação e difusão de tecnologia. A corrupção piora os indicadores
sociais porque retira dinheiro da segurança, da saúde e da educação, contribui
para a manutenção da carga tributária e reduz a competitividade da economia. De
acordo com os estudos de Fernandes, o PIB do Brasil poderia crescer até 2 pontos
porcentuais a mais todos os anos, se não fosse a corrupção. Por causa da
impunidade, a economia brasileira comporta-se como um trem que anda mais devagar
do que poderia porque uma de suas rodas está fora dos trilhos.

O que fazer para evitar que o Brasil continue a carregar as pedras da
corrupção montanhas acima, apenas para vê-las cair logo em seguida? A
experiência de outros países ensina que um dos caminhos mais eficientes para
inibir a corrupção é tornar as ações dos governos mais transparentes. A falta de
informações é uma aliada dos s corruptos. O segredo, nesse caso, chama-se
internet. No Brasil, nos últimos anos, foram desenvolvidos alguns sites que
permitem o acompanhamento detalhado de gastos do governo, a conferência de
despesas e receitas de campanhas eleitorais e até as declarações de bens de
parlamentares eleitos. Os mais conhecidos são o Portal da Transparência, do
governo federal, o site do Tribunal Superior Eleitoral e o Projeto Excelências,
mantido pela ONG Transparência Brasil. Todos eles contêm informações que, a
rigor, são públicas há muitos anos, mas eram inescrutáveis, pois estavam
escondidas em cartórios eleitorais ou escaninhos do governo.

Transparência tende a inibir os corruptos. Como os dados podem ser
rastreados, fica perigoso roubar

A idéia por trás do uso da internet como ferramenta de combate à corrupção é
permitir que cada cidadão seja um fiscal em potencial. É um entendimento cada
vez mais comum em democracias desenvolvidas. Os órgãos de controle não têm
condições de olhar tudo. Eles trabalham por amostragem ou a partir das denúncias
que recebem. Ao dar transparência total às informações públicas, os sites
permitem que qualquer um verifique algo que pareça estranho, a quantidade e a
qualidade das denúncias aumenta. A corrupção, conseqüentemente, diminui. Há,
ainda, um segundo fator positivo na divulgação de dados públicos na internet: a
transparência inibe a iniciativa dos corruptos. Como os dados podem ser
rastreados, fica cada vez mais arriscado roubar.

Um avanço maior, porém, só será possível com um choque de gestão e da
qualidade na atuação do Judiciário e das instituições envolvidas no combate à
corrupção. O trabalho desses órgãos, em muitos casos, não costuma ser
coordenado. A Controladoria-Geral da União, o Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf) e os tribunais de contas têm pouca ligação com a PF e com o
Ministério Público. A polícia e o Ministério Público travam disputas agressivas
pelo comando das investigações. E os dois têm divergências com a Justiça. Quando
esses litígios são superados, bons resultados aparecem.

R$ 18 bilhões(1)
Esse é o prejuízo que governo federal,
Estados e municípios tiveram com as quadrilhas presas pela PF entre 2003 e 2006.
Os principais crimes foram desvio de verbas e sonegação fiscal

R$ 50 bilhões
Foi o que as quadrilhas presas pela PF
movimentaram até ser pegas



A Polícia Federal apreendeu R$ 298,7 milhões em jóias,
pedras preciosas e dinheiro (em espécie, cheques, cheques de viagem e títulos ao
portador)


A importância da boa gestão é a principal lição do exemplo positivo da
Polícia Federal. O aumento da produtividade da PF no combate à corrupção é
resultado do investimento maciço em recursos humanos, tecnologia e gestão. De
2003, primeiro ano do governo Lula, até hoje, o orçamento da PF cresceu de R$
1,8 bilhão para R$ 3,5 bilhões por ano. O efetivo aumentou com a contratação de
quase 3 mil novos agentes, delegados e peritos. Para atrair profissionais mais
qualificados, a remuneração foi melhorada. O salário inicial dos delegados,
antes muito inferior ao dos promotores e ao dos juízes, passou de R$ 8.300, em
2003, para R$ 12.900. Essas melhorias foram acompanhadas de maior autonomia nas
investigações. Então comandada pelo delegado Paulo Lacerda, hoje à frente da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a PF aplicou mais de US$ 35 milhões
na compra de equipamentos para perícia, grande parte deles importada do
exterior. Dois prédios foram construídos para acomodar o Instituto Nacional de
Criminalística de Brasília. Foram montados ou ampliados os laboratórios para
exames químicos, genéticos, de balística e de análise de imagens e som. A
capacidade de produção de análises e de laudos periciais aumentou 300%, segundo
a PF. Com o quadro de funcionários maior e mais bem-preparado, a PF mudou também
o método de trabalho de seus agentes. Antes, o esforço era concentrado na
investigação e na prisão de suspeitos. Agora, o foco passou a ser desarticular
quadrilhas inteiras.

Para desatar o nó da impunidade, a melhoria da gestão tem de ser levada para
dentro do Poder Judiciário, segundo reconhecem as próprias associações de
magistrados e juízes. Num estudo produzido com o Banco Mundial, a Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB) coloca o aumento da eficiência como o principal
desafio para superar a crise na Justiça. “Falta aos juízes formação de
administrador. Os concursos de juízes exigem dos candidatos conhecimentos de
Direito, mas nada de Administração”, diz Rodrigo Collaço, ex-presidente da AMB.
Essa cultura bacharelesca, predominante até agora, é uma das causas da
impunidade, como mostra a próxima reportagem.