Crescimento exige enfrentar cultura das transgressões

Por ETCO
20/07/2011

Fonte: Revista ETCO, No 18, Janeiro 2011

Cultura das Transgressões no Brasil align=left
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Foram 16 anos para colocar a economia brasileira nos trilhos da estabilidade monetária e melhorar a distribuição de renda. Agora, ao subir a rampa do Palácio do Planalto, a presidente Dilma tem um grande desafio pela frente: derrubar as taxas de juro de aplicações financeiras para iniciar um ciclo de forte crescimento sustentável. Afinal, essa é a pedra no caminho para o fortalecimento da atividade econômica e há uma grande expectativa de que finalmente o custo do dinheiro fique em patamares mais saudáveis, que propicie o aumento na demanda de recursos para investimentos de longo prazo na produção de bens e serviços.

O ETCO quer colaborar para o debate e considera extremamente relevante colocar na agenda deste novo governo o enfrentamento à cultura das transgressões para propiciar um bom ambiente de negócios, um pilar fundamental para a redução

de taxa de juros e para a atração de investimentos produtivos e não
especulativos. “O bom ambiente de negócios é fortemente ameaçado por desvios de condutas, como a sonegação, a informalidade, o contrabando, a pirataria e outros desvios que geram desequilíbrios de concorrência”, diz o Presidente do ETCO, professor André Franco Montoro Filho.

Pense num grande autor brasileiro. Dificilmente sua obra não trará em
algum momento um personagem que circula livre, leve e solto pela sociedade nas mais diferentes épocas, um boa gente, mas violador de leis. O que preocupa, no entanto, é que esse tipo pouco confiável que passeia pelas páginas de grandes obras nacionais também circula pelas ruas desse imenso país, e com tamanha naturalidade que muitas vezes custamos a crer que esteja de fato fazendo algo errado. Os desvios de conduta estão impregnados na cultura brasileira, como Carnaval e futebol, e muitas vezes entram na rotina da família sem que ao
menos elas se deem conta.

Veja, por exemplo, o boa-praça Antunes Segada Bustamante, que com sua boa conversa consegue um emprego de fiscal no governo. O personagem criado por Lima Barreto em Um fiscal de jogo, não sente vergonha e nem tampouco esconde seu comportamento pouco ortodoxo no trabalho. Ao contrário, até vangloria- -se. Conta-nos o narrador que poucos dias depois da nomeação de Bustamante, ele o encontrou e, após os cumprimentos, perguntou:

Como te tens dado com o lugar?
Magnificamente! Ceio lautamente todas as noites, vejo lindas mulheres e bebo champanhe a rodo. Tudo isso de graça. Não é bom? Bustamante não está sozinho nem na ficção nem na realidade brasileira. Mesmo aqueles que se indignam com algumas violações da lei, são condescendentes com outras que não saltam aos olhos quando
eles próprios cometem seus pecados.

A cultura das transgressões no Brasil foi, em 2008, alvo de uma minuciosa investigação pelo ETCO em parceria com o Instituto Fernando Henrique Cardoso. O instituto pediu a quatro renomados pensadores que, dentro de suas especialidades, respondessem: “Superar essa cultura é condição para o desenvolvimento?” Sim, responderam os estudiosos que estiveram reunidos no seminário “Cultura das Transgressões – Lições da História”, realizado em agosto
de 2008, na agenda de comemorações dos 200 anos da chegada da Família Real ao Brasil. Foi o ponto de partida para debates e estudos e o lançamento do livro Cultura das transgressões no Brasil – Lições da história, editado em parceria com o Instituto Fernando Henrique Cardoso, que investiga a origem das práticas que fogem ao senso das responsabilidades.

O ETCO construiu, assim, um acervo que é uma das raras fontes de
informações para o tema das transgressões, que ainda tem recebido pouca reflexão do país. O livro foi coordenado pelo ex-ministro Marcílio Marques Moreira, Presidente do Conselho Consultivo do ETCO, e pelo ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso e traz um bom apanhado das várias facetas que dão forma às transgressões, com a preocupação de tentar rastrear ao longo da história do país a origem e a evolução de práticas que fogem ao senso das responsabilidades.

Os cientistas políticos e sociais que estiveram envolvidos nesta
empreitada do ETCO para criar as condições necessárias para que apareçam terapias eficientes no combate à cultura das transgressões estão certos de que, embora os desvios de conduta tenham atravessado séculos, é possível virar esse jogo. Criar normas e leis não é problema para o brasileiro, não por acaso juristas e advogados dominaram a elite política durante todo o período de formação nacional no Império e continuam a exercer grande influência até hoje. O difícil mesmo é fazer com que elas sejam cumpridas.

O Brasil é um grande exportador de leis. Seu Código Penal de 1830, por
exemplo, foi copiado por vários países, inclusive europeus. No entanto, seu maior desafio ainda é o cuidado na aplicação das leis. Leis são criadas sem a menor cerimônia. A própria Constituição de 1988, com 250 artigos, 83 disposições transitórias foi modificada por dezenas de emendas. O Código Nacional de Trânsito de 1997 é outro bom exemplo. Com seus 341 artigos é exaustivo em definir regras e estabelecer punições, generoso em criar burocracias. No entanto, não leva em conta a aplicação da lei. Não previa a reforma e sinalização das estradas, o treinamento das polícias rodoviárias, os acordos com os estados, a agilização do julgamento dos recursos.

“Legalismo delirante”, assim foi definido pelo historiador José Murilo de
Carvalho o pesado Código. Um calhamaço de artigos que se mostraram incapaz de evitar a matança no trânsito, como demonstrou o antropólogo Roberto DaMatta. Segundo ele, o trânsito é um bom exemplo de como algumas instituições e pessoas podem empreender a travessia para o outro lado da moralidade, sem que coisa alguma lhes aconteça. Muito pelo contrário, essa passagem seria algo estabelecido, esperado e encorajado pela própria sociedade.

O cientista político Bolívar Lamounier procura elucidar a relação
existente entre transgressão e economia de mercado, mas põe em dúvida o papel da classe média como agente de revisão de valores e de apoios políticos que possam colocar um freio à escalada da transgressão. “Estou convencido de que o aumento da transgressão no Brasil é um correspondente inevitável do processo de modernização é o lado mal de uma moeda boa: o preço que se paga por uma sociedade dinâmica, moderna e democrática.”

O jurista Joaquim Falcão, que completou o quadro de estudiosos chamados pelo ETCO para radiografar a cultura das transgressões no Brasil e seu impacto no bom ambiente de negócios, chamou a atenção para os eufemismos. “Os economistas chamam de emprego informal o que, na verdade, é emprego ilegal”, diz Falcão. São dezenas de milhões de trabalhadores excluídos da legislação, do controle e dos benefícios previdenciário e trabalhista. “Que Estado democrático de Direito resiste a essa situação? Que legitimidade terão leis que ilegalizam potencialmente milhões de brasileiros cotidianamente”, questiona Falcão.

Quando o ETCO iniciou sua investigação à cultura das transgressões,
promovendo debates e estudos a partir de 2008, o Brasil estava a pleno vapor, com uma verdadeira euforia nos mercados financeiros e grandes apostas para o crescimento econômico. Mas aí veio a maior crise do século, deflagrada pelas hipotecas americanas que varreu todo o planeta. O Brasil não ficou imune aos efeitos da crise.

A brusca queda na atividade econômica foi o combustível que alimentou, por exemplo, o aumento do contrabando de notebooks no país. Ao lado do medo de desemprego e de perda de renda de empresas e indivíduos, o comportamento ético foi abalado seriamente. Nesses momentos cresce a tentação de adotar práticas ilegais, como sonegar impostos, contratar funcionários sem carteira assinada, não respeitar contratos ou consumir produtos de origem duvidosa.

O Brasil conseguiu combater a crise, mostrando que a ação anticíclica,
com desoneração fiscal tem poder de azeitar a engrenagem econômica.

Chegou ao fim da década com números macroeconômicos bastante animadores. No entanto, o conjunto de boas notícias não é suficiente para fortalecer o país. “A economia vai bem, mas o resto não”, resumiu o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, durante o lançamento do livro Cultura das transgressões – Visões do presente, uma nova edição da coletânea de reflexões dos intelectuais reunidos pelo Instituto ETCO e que há dois anos têm elaborado estudos e debates sobre o tema. O livro coloca em discussão o papel de uma Justiça lenta e que permite postergar decisões na cultura da impunidade e como semeadora da corrupção.

Este segundo livro faz parte da coleção que está sendo criada pelo ETCO como fonte bibliográfica para o estudo da cultura das transgressões no Brasil.

No primeiro livro, uma compilação de textos com as lições da história, neste segundo um mapa da situação atual e no terceiro volume o que nos espera o amanhã, seus riscos e desafios. Com esta trilogia da Cultura das Transgressões, o ETCO entrega à sociedade brasileira um compêndio dos principais estudiosos sobre a Cultura das Transgressões no mundo.

Para o embaixador Marcílio Marques Moreira, é preciso manter a vigilância constante na defesa do conteúdo ético nas ações governamentais e das empresas.

“É longo e penoso o processo de construção de uma reputação, mas pode ser curto o processo de sua desconstrução”, diz o embaixador. A ética presume escolha de valores. Não é imposta. Independe de leis. Mas é fundamental para o fortalecimento da democracia, cuja base é a confiança nas instituições.

André Montoro diz que a impunidade, fruto de uma Justiça lenta e que
permite postergar decisões, favorece a corrupção. O livro coloca esta discussão e abre caminho para uma reflexão crítica, que nos ajuda a encontrar meios para fortalecer a confiança nas pessoas e nas instituições. Assim, mesmo nessas quase duas décadas de grandes avanços econômicos, a presidente Dilma Rousseff recebe de seu antecessor um país com uma realidade profundamente dicotômica: o país opera em um sistema sofisticado e avançado em alguns aspectos, mas em outros ainda está subordinado a sistemas institucionais pesados e atrasados.

Entre um e outro, prolifera uma sociedade que se beneficia do progresso
da economia enquanto tenta sobreviver jurisdicionalmente aos saltos, pulando de galho em galho.