Devedor contumaz: falta de lei específica mantém prática sem punição
PLS 284/2017 prevê critérios para detectar e punir figura do devedor contumaz, mas projeto está parado
No caso dos combustíveis, o preço final da gasolina chega a ser R$ 0,90 menor por litro em postos que comercializam produtos derivados de cadeias irregulares. No etanol, a variação chega a ser de R$ 0,51, de acordo com estudo feito pela consultoria Boston Consulting Group (BCG).
A lei brasileira não tem uma definição sobre o que é um devedor contumaz. Por isso, o combate aos sonegadores criminosos sempre esbarra na capacidade de impor sanções àqueles que adotam a prática de forma sistemática para ter vantagens concorrenciais. Os setores nos quais há mais devedores contumazes — que deixam de pagar impostos propositalmente — são os de combustíveis, cigarros e bebidas, altamente regulados pelo Estado.
Dois projetos de lei em tramitação no Congresso contêm essas definições sobre a figura do devedor contumaz: o PLS 284/2017 e o projeto de lei 1646/2019.
Para especialistas ouvidos pelo JOTA, definir de forma clara o que caracteriza um devedor contumaz é fundamental. “O devedor contumaz se aproveita para se esconder atrás de um monte de questionamentos jurídicos”, afirma Guilherme Barranco, sócio do escritório Barranco Sociedade de Advogados e ex-conselheiro do Carf. “Quanto menos precisos são os critérios, mais ele pode se opor no juízo para dizer que ele não é um devedor contumaz.”
O PLS 284/2017 define devedor contumaz como aquele que atua no campo do ilícito, “trata-se de criminoso, e não de empresário, que se organiza para não pagar tributos e, com isso, obter vantagem concorrencial”.
O presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), Edson Vismona, considera o PLS 284/2017 o melhor projeto para combater o devedor contumaz. “Ele traz a diferença do que é um devedor contumaz e um devedor eventual e dá segurança jurídica para o uso do termo ‘devedor contumaz’”, explica. “Segurança jurídica é fundamental e a lei vem justamente nesse sentido. O projeto de lei está pronto, mas parado, esse é o problema”.
O parecer mais recente, de 2018, feito pelo ex-senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), estabelece medidas para combater o devedor contumaz nas esferas federal, estadual e municipal. Como exemplos de possíveis sanções aos infratores, o parecer cita: suspensão ou cancelamento da inscrição fiscal; perda do registro para funcionamento; interdição do estabelecimento; aplicação de regimes especiais de fiscalização e de arrecadação. Atualmente a relatoria do projeto é do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
“A lei é um bom passo, porque hoje o ambiente é sem definições, nebuloso. E tudo o que é nebuloso nesse ambiente de alta tributação esses devedores contumazes usam para seu benefício”, destaca Luciano Godoy, sócio do LUC Advogados, árbitro e advogado especializado em contencioso.
PL 1646/2019
Na Câmara dos Deputados tramita um outro projeto de lei, o PL 1646/2019, que tem uma amplitude menor em relação ao texto do Senado. “O 1646 está sendo chamado de projeto do devedor contumaz. Mas são quatro artigos que falam do devedor contumaz e o resto do projeto fala da modernização da cobrança da dívida ativa da União”, diz o advogado tributarista Guilherme Barranco.
O projeto de lei define devedor contumaz como “aquele cuja atuação extrapola os limites da inadimplência e se situa no campo da ilicitude, com graves prejuízos a toda sociedade”. O texto estabelece ainda que a inadimplência “substancial e reiterada” de tributos ficará configurada quando constatada a existência de débitos de valor igual ou superior a R$ 15 milhões por um ano, em nome do próprio devedor ou de pessoa integrante do grupo econômico ou familiar. “Na esfera tributária, principalmente com empresas maiores, é muito fácil ter débitos acima de R$ 15 milhões”, pontua Barranco.
Supremo
No ano passado, o plenário do Supremo Tribunal Federal, por sete votos a três, definiu a tese de que o contribuinte que deixa de recolher o ICMS pratica crime desde que haja dolo. Na ocasião, a Corte julgou o RHC 163.334 impetrado pelos proprietários de lojas de roupas em Santa Catarina denunciados por não recolher ICMS entre 2008 e 2010.
A tese fixada foi a de que “o contribuinte que de forma contumaz e com dolo de apropriação deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente de mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º inciso II da lei 8137/1990”. Essa lei define os crimes contra a ordem tributária. O inciso citado diz que constitui crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher os cofres públicos”.
O diretor titular do Departamento Jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Hélcio Honda, alerta que é preciso cuidado na definição de devedor contumaz. “A figura do devedor contumaz é perniciosa, mas ela tem que ter uma definição cautelosa. Você precisa ter um outro elemento além do inadimplemento”, diz. “E qual é o outro elemento? É a figura dolosa de não fazer o pagamento do tributo, o desejo de prejudicar o mercado. A questão subjetiva do dolo é muito importante”.
Como age um devedor contumaz
O devedor contumaz se utiliza da lentidão para ter dívidas executadas e da possibilidade de questionar cobranças tributárias para ganhar tempo e obter altas taxas de retorno. “A empresa se estabelece e já se estrutura para não pagar imposto, porque vai ter uma vantagem competitiva ilegal, uma margem de lucro muito alta e vai inibir a concorrência leal”, diz Edson Vismona, diretor-presidente do ETCO. “É o que ocorre nos setores mais tarifados, de combustíveis, de cigarros, de bebidas.”
O advogado Luciano Godoy explica também que esses produtos são mais difíceis de serem fiscalizados: “Eles [os devedores contumazes] vão em produtos que são de consumo rápido. Cigarro e combustível, por exemplo, você usou e não há mais rastro do crime. Ninguém vai ser devedor contumaz, por exemplo, fazendo geladeira e televisão”.
Com parcelamentos de tributos e questionamentos de cobranças, uma empresa consegue operar sem problemas por até cinco anos. “Uma discussão de parcelamento pode levar três, quatro anos. Na via judicial, vai depender. Há discussões de teses que podem levar até quatro ou cinco anos”, diz Gustavo Amaral, sócio responsável pela área tributária na Paulo Cesar Pinheiro Carneiro Advogados Associados. “E isso não necessariamente é linear, porque pode surgir um programa de parcelamento e quebrar essa sequência.”
Conteúdo especial: A luta contra o devedor contumaz de tributos
No setor de combustíveis, a figura do devedor contumaz se concentra na venda de etanol, que tem tributação dividida no refino e na distribuição, o que facilita a fraude.
“O começo de tudo isso são empresas de fachada, com o discurso de bom cristão, falando para a ANP que estão começando com capital mínimo”, explica Carlo Faccio, diretor do Instituto Combustível Legal. “Em paralelo, começam a fazer vendas com operações interestaduais e a acumular dívidas. Só que até a Fazenda [do estado] identificar o não pagamento, há uma demora de dois a três anos.”
Depois desse período, quando há caracterização de devedor contumaz, as secretarias de Fazenda não conseguem exercer o direito de cobrança das empresas, que costumam não ter patrimônio e são registradas com capital mínimo.
Isso ocorre bastante com distribuidoras, que dependem de pouco capital para operar. “O débito não é cobrado, então tudo aquilo que a empresa deixou de recolher ao longo do tempo vira um lucro em detrimento do Fisco e dos competidores”, diz o advogado Gustavo Amaral.
Para continuar na atividade, outras empresas são abertas para fazer o mesmo, só que com um novo nome e registro. “Chega uma hora em que a Receita Federal toma uma atitude, suspende a atividade. Mas ele [devedor contumaz] já, paralelamente, criou um outro CNPJ, e simplesmente pula de uma empresa que vai abandonar, passa para outra e segue seu negócio”, explica Edson Vismona, do ETCO.
Os efeitos negativos do devedor contumaz são contraídos pelo Estado, que arrecada menos, e pelo mercado do setor em questão.
“O efeito sobre a concorrência é uma disrupção do que seria a concorrência natural daquele mercado”, destaca Eduardo Frade, sócio do VMCA e ex-superintendente do Cade. “Gera um desincentivo à entrada de novos concorrentes, além de uma série de saídas, com uma concentração maior do mercado”, diz. “Também há um efeito de seleção adversa, um efeito em que acaba se premiando os agentes que agem contra as regras e punindo aqueles que agem de acordo com as regras.”
No caso dos combustíveis, o preço final da gasolina chega a ser R$ 0,90 menor por litro em postos que comercializam produtos derivados de cadeias irregulares. No etanol, a variação chega a ser de R$ 0,51, de acordo com estudo feito pela consultoria Boston Consulting Group (BCG).
Matéria publicada em 31/08/2020 no Portal Jota, na sessão Jota Discute, que tem o apoio do ETCO.