REVISTA ETCO – EDIÇÃO 24
DEZEMBRO, 2019
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“Tenho a impressão de que estou em outro planeta”

Everardo Maciel diz qual é a reforma tributária de que o Brasil precisa – e não é nada do que está sendo debatido em Brasília

Everardo Maciel em sua palestra no seminário do ETCO e do Valor Econômico

Por ETCO
21/10/2019

Poucos brasileiros entendem tanto de sistemas tributários quanto o pernambucano Everardo Maciel, presidente do Conselho Consultivo do ETCO. Ele acompanha o tema desde os anos 1960 e acumula profundo conhecimento acadêmico com relevante carreira no setor público, que inclui oito anos como secretário da Receita Federal nos governos FHC (1995-2002).

Em sua palestra no Seminário Tributação no Brasil, Everardo fez críticas contundentes às propostas de reforma em debate hoje no Brasil. Afirmou que elas não tratam nem das grandes questões contemporâneas do campo tributário discutidas no mundo todo nem dos reais problemas do sistema brasileiro, sobre os quais fez um apanhado geral.

Ele também desmontou alguns clichês sobre o modelo tributário brasileiro, que chamou de “mistificações” de quem não estuda o tema em profundidade, e apontou o que considera serem grandes equívocos do principal projeto de reforma tributária em discussão na Câmara dos Deputados, a PEC 45/2019. A seguir, trechos da palestra:

O que o mundo discute

“Às vezes, quando eu fico vendo as discussões que se travam no Brasil sobre a matéria tributária, tenho a impressão de que estou em outro planeta. Porque não é isso que está se discutindo no mundo. Nós temos pelo menos três grandes questões tributárias que estão sendo discutidas fora daqui: primeiro, a erosão das bases tributárias; segundo, a tributação da economia digital; terceiro, um problema para o qual nós não temos resposta até hoje, que é o de novas fontes de financiamento da Previdência Social.”

Erosão das bases tributárias

“As bases tributárias são erodidas por uma combinação de razões, mas notadamente o planejamento tributário abusivo, os paraísos fiscais e a transferência da tributação de lucros dos países com maior tributação para países com menor tributação ou sem tributação, que são, afinal de contas, os paraísos fiscais.”

Tributação da economia digital

“Quando falamos em tributação do consumo sempre estivemos olhando para questões como prestação de serviços e venda de mercadorias. Agora, temos outro fenômeno, mal conhecido, mal dimensionado, mas talvez o mais relevante de todos: como tributar informação? Quando você vai ao Google, que o historiador Yuval Harari chama de ´os mercadores de atenção´, o produto é você. Estamos, portanto, lidando com um fenômeno completamente diferente de tudo o que se conhece. As informações que ele captura ao aparentemente dar uma informação gratuita se transformam, talvez, na maior fonte de geração de riqueza contemporânea. Para isso a União Europeia aprovou no final do ano passado um turnover tax, um imposto sobre o faturamento das grandes empresas que veiculam informações e que estão na economia digital. Um imposto cumulativo, que vai começar a desmantelar algumas teorias sobre cumulatividade e não cumulatividade.”

Novas fontes para a Previdência

“O mundo mudou. Mudou a natureza do emprego. É uma mudança revolucionária. Há discussões sobre tributação de transações financeiras. A França e a Alemanha discutem objetivamente isso, que talvez seja uma das únicas possibilidades de criação de uma nova fonte de financiamento da Previdência. Uma pessoa tão qualificada como o Prêmio Nobel de Economia Robert Shiller cogita da tributação sobre robôs, no que é apoiado por Bill Gates.”

Clichês e mistificações no Brasil

“A tributação, como é algo desagradável, dá um espaço notável para mistificações, para conclusões apressadas sobre coisas que não foram estudadas com seriedade. A primeira é a complexidade do sistema tributário. A complexidade é inerente aos fenômenos. O que não se consegue distinguir é complexidade de operabilidade. Os sistemas tributários têm que ser operáveis. Têm que ser fáceis. E não necessariamente simples, porque simplicidade ou complexidade são inerentes ao fenômeno.”

Fantasia sobre regressividade

“Existe a fantasia de que, se eu tributo mais o consumo, estou num sistema regressivo. Isso não passa de fantasia. Depende da forma de tributação do consumo, depende da forma de tributação da renda.”

Competição e guerra fiscal

“Há incapacidade de distinguir competição fiscal lícita de competição fiscal ilícita, que é a guerra fiscal. Competição fiscal existe desde que existem tributos. Competição fiscal aqui não pode, na Europa pode. Se eu falar em inglês fica razoável, se falar em português fica ruim. Tax ruling pode, incentivo fiscal não pode.”

Nossos maiores problemas

LITIGIOSIDADE: “Litigiosidade tem a ver com o processo tributário, não com o tributo. Pode ser qualquer tributo, se o processo estiver disfuncional, haverá excessiva litigiosidade.”

INSEGURANÇA JURÍDICA: “Que está associada a conceitos com baixa densidade normativa ou controversos. Mas isso tem que se resolver pela via normativa, isso não depende também de tributo.”

BUROCRATISMO: “Burocratismo remete a obrigações acessórias, não depende da natureza do tributo. O sistema tributário brasileiro é muito burocrático não porque tem ICMS, PIS, Imposto de Renda, nada disso. É burocrático porque tem obrigações acessórias excessivas. E o domínio das obrigações acessórias é um domínio distinto do direito material.”

Fronteira entre ICMS e ISS

“O maior problema que existe é a fronteira entre o ICMS e o ISS. Como fazer isto é um desafio à inteligência. A solução simplória diz: ´juntam-se os dois´. Bom, mas aí como é que fica a questão federativa? Como fica toda a jurisprudência que existe em torno disso? É jogar a água suja da bacia junto com a criança?”

PEC 45: erros de concepção

“A PEC 45 é uma solução mágica para resolver problemas, centrada, entre outros, no princípio do destino. Princípio do destino é matriz de sonegação. Quer instituir um IVA, que é um tributo obsoleto, de 1949, absolutamente incapaz de lidar com a economia digital num mundo que está pensando em algo pós-tributação do consumo e da renda. Afirma-se que, com a adoção desse modelo, o PIB brasileiro vai crescer dez pontos percentuais. Isso é pajelança, é magia ruim, não tem nexo.”

PEC 45: quem ganha e perde

“Na essência, é uma transferência de tributação. Quem ganha com isso? Instituições financeiras, grandes empresas no âmbito industrial e comercial. Mas, se a carga tributária agregada é constante, alguém paga essa conta: os 850 mil contribuintes que estão no lucro presumido, que são essencialmente pequenos prestadores de serviços, comerciantes e industriais. Paga também essa conta o setor de construção civil.”

Aumento de preço de serviços

“Vai subir o preço da consulta médica, vai subir a mensalidade escolar, vai subir o plano de saúde, que é a única forma de equilibrar a nova conta. A PEC 45 aumenta a tributação nesses setores entre 300% e 700%.”

PEC 45: outros problemas

SELETIVIDADE: “Diz que pela tributação do IVA vai ser tudo igual, então o pãozinho tem a mesma alíquota do casaco de peles. E, para corrigir essa injustiça, é dada aos mais pobres uma ´bolsa imposto´. Definitivamente, isso não funciona.”

EVASÃO FISCAL: “O IVA tem problemas sérios de evasão fiscal, um deles é chamado ´carrossel´, a venda ilícita de serviços para transferir crédito. Outro: eu vou chegar ao médico, ele diz ´meu caro, agora a alíquota é de 25%´. O que acontecerá em seguida? ‘É com nota ou sem nota?’”

AUMENTO DE LITIGIOSIDADE: “São tratados mais de 150 artigos do texto constitucional e do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com quarenta conceitos novos. Isso dá litígio pela eternidade.”

CONFLITOS POR PARTILHA: “A PEC diz que alíquota singular em lei complementar vai definir a partilha e a vinculação dos tributos. Isso é uma guerra mortal entre entes federativos e entre setores.”

PRAZO DE CINQUENTA ANOS: “Durante cinquenta anos haveria compensações de perdas entre os entes federativos. Alguém em sã consciência acredita que daqui a cinquenta anos ainda existirão impostos – pelo menos do jeito que conhecemos hoje?”

AUMENTO DE COMPLEXIDADE: “Durante dez anos, coexistiriam os impostos que existem hoje com os novos impostos. Quer dizer: não se resolve nenhum dos problemas que existem hoje e são criados novos.”

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