Um mundo, entre boas e más transgressões

Por ETCO
23/08/2011

Valor Econômico – 23/08/2011

Trata-se aqui da transgressão “ruim”, aquela que, particularmente difundida em Brasília, dá demonstrações inequívocas de que, eticamente, este país vai muito mal. Houve, sem dúvida, mudanças importantes em anos recentes – transgressões virtuosas -, movidas por uma vontade nacional de acertar o passo com o que de melhor o exercício da cidadania, pelo voto e outras formas de participação política, pode fazer numa sociedade moderna. A própria derrubada da ditadura militar foi conduzida num processo de transgressão de uma ordem ideológica que se tornara insustentável.

A Constituição de 1988, por exemplo, por que foi chamada de “cidadã”? Por que fez valer uma outra forma de se ver o Brasil e de se organizar a convivência entre brasileiros (ainda que sujeita a ressalvas, pelo entusiasmo desabrido com que se pôs a distribuir recursos sem mencionar exatamente onde buscá-los todos).

O Plano Real foi transgressivo. Romperam-se os grilhões que prendiam o brasileiro às garras do monstrengo inflacionário (e também foi transgressivo o Plano Cruzado; só que não deu certo). O respeito às regras democráticas e mesmo a ascensão das classes de menor renda a patamares superiores de consumo – inclusive de bens públicos – são outras conquistas obtidas pela via de transgressões em relação ao que estava ideologicamente estabelecido.

Deram-se, então, transgressões benéficas, aquelas que incorporam recusa à preservação de uma situação corrente que por algum motivo deva ser superada, para que haja “progresso”. Mas, falou-se em “transgressão”, hoje, e a associação de ideias com o malfeito é imediata. Não se pensa nas “transgressões criativas” de que fala Renato Janine Ribeiro, um dos articulistas que assinam a autoria deste “Cultura das Transgressões no Brasil – Cenários do Amanhã”.

Percorrem-se caminhos, durante e depois das transgressões, criativas ou repulsivas. Pelo lado da luz, diz Roberto Abdenur, que organizou o livro com Fernando Henrique Cardoso, há o registro das estimulantes conquistas feitas e o desafio de se persistir no combate ao lado escuro, essa “cultura das transgressões” que “vem emperrando a máquina da sociedade desde o século XVI” e que precisa dar lugar a uma outra – aquela que permita ao país “avançar dentro do ambiente da legalidade”, de maneira a por-se ” à altura das sociedades mais desenvolvidas da História”.

O Instituto de Ética Concorrencial (Etco), presidido por Abdenur, e o Instituto Fernando Henrique Cardoso (IFHC) “estão determinados a liderar esse processo, para ajudar os brasileiros a atingir um grau de maturidade tal que transgressão seja um termo do passado – a “ruim”, por certo, a que irriga a lavoura dos malfeitos e que se nutre também dos desacertos e disfuncionalidades na distribuição da justiça.

“Não se veem sinais de progresso na capacidade do Estado de punir efetivamente o desrespeito à lei, de modo a dissuadir a transgressão às normas legais”, observa Sergio Fausto, superintendente executivo do IFHC. “A percepção é justamente a inversa”. Essa constatação é o ponto de partida deste terceiro volume da série “Cultura das Transgressões”, que o IFHC e o Etco editam em parceria. Antes, foram publicados “Cultura das Transgressões – Lições da História” (2007) e “Cultura das Transgressões – Visões do Presente” (2009).

No livro, questões relacionadas ao ramo da Justiça são temas para Gilmar Ferreira Mendes, ministro do Tribunal Superior Eleitoral, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, e Aristides Junqueira Alvarenga, procurador-geral da República por três mandatos. Mendes trata do desrespeito às garantias que a Constituição oferece às pessoas sujeitas a processos judiciais. Junqueira expõe e analisa a falência do sistema de execuções penais.

Em seu artigo sobre transgressões na economia pública, Paul Singer, secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego, circula pelos assuntos que mais têm encorpado o noticiário e as análises da vida política brasileira nos últimos tempos, com cenas explícitas de assalto ao patrimônio público. O economista explica a lógica das grandes compras do governo, que parece feita sob medida para proporcionar oportunidades de ação aos fraudadores de dentro e fora do governo. Essa mesma lógica, contudo, pela qual transitam circunstâncias que cercam as compras de vulto, torna a comprovação de fraude quase impossível.

“Obviamente, todas as classes são prejudicadas pela corrupção governamental, mas só os pobres e sobretudo os muito pobres sentem a insuficiência dos serviços públicos de saúde, escola, transporte e saneamento no próprio corpo”, reflexo direto das falcatruas, assinala Singer. Algumas formas de controle social já existem, são atuantes. O trabalho de fiscalização da Controladoria Geral da União é importante. Contudo, “como aos escândalos não se seguem punições e nem novas medidas de prevenção, a opinião pública encara com ceticismo os políticos e – o que é pior – a própria democracia. Daí a necessidade vital de combater a cultura das transgressões, principalmente no gasto público”.

O ex-ministro da Fazenda Marcílio Marques Moreira escreve sobre “Estado e mercado: o desafio de melhor articulá-los”. A escolha do tema “Estado versus mercado” deveu-se à sua convicção de que “a adequada articulação entre um e outro é o elo essencial do inadiável processo de modernização das instituições e dos costumes políticos e econômicos do país e de sua integração competitiva em um mundo que avança a galope”. Para isso, serão essenciais a reforma do Estado, “para capacitá-lo a exercer plenamente o papel que lhe cabe no almejado “aggiornamento”, e a criação de condições indispensáveis ao florescimento de uma economia de mercado eficaz, movida por concorrência leal, sujeita a regras do jogo, fiscalizada por agências reguladoras confiáveis e consciente de suas responsabilidades sociais”.

Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo, pergunta se é possível superar a cultura das transgressões. Seu artigo dilui o tema na questão maior da qualidade da convivência social. “Talvez, mais que a transgressão, o que ameace nossa vida em conjunto seja a indiferença. E o que é mais promissor para nosso viver juntos é uma agenda que recomponha a política a partir das questões que, para uns e outros, discutem o que dá sentido à vida.” Esta seria uma boa transgressão.