O devedor contumaz tem um modo de atuação muito peculiar. Por não pagar impostos, vende seus produtos mais barato que a concorrência e, assim, ganha mercado rapidamente. Ele declara as vendas ao fisco, reconhecendo a dívida tributária. Mas simplesmente não recolhe os valores. Sua maneira de continuar operando e lucrando de maneira ilícita se completa com a utilização de toda espécie de recurso administrativo e jurídico para ir adiando ao máximo a conclusão dos processos movidos contra ele. As batalhas travadas nos tribunais podem durar mais de dez anos, tempo suficiente para ele ganhar muito dinheiro, esconder o lucro, se desfazer do patrimônio e deixar a empresa com uma dívida impagável. Para piorar, muitas vezes quem aparece como dono oficial é um laranja, ou seja, alguém que simplesmente emprestou o nome para o negócio. O verdadeiro dono sai ileso.
Autoridades do fisco, do Poder Judiciário e representantes do setor empresarial comprometidos com a ética nos negócios vêm se unindo no desafio de identificar e combater o devedor contumaz. O ETCO-Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial tem sido um catalisador desse movimento e realizou em novembro de 2015 um seminário sobre o tema em parceria com o jornal Valor Econômico. “O devedor contumaz faz do não pagamento de impostos o seu próprio negócio e o seu diferencial competitivo, ou seja, ele é mal-intencionado desde a composição de sua atividade”, afirma Evandro Guimarães, presidente do ETCO.
A seguir, especialistas falam sobre as vantagens e o modo de atuação do devedor contumaz.
DEVO, NÃO NEGO. MAS TAMBÉM NÃO PAGO
Helvio Rebeschini, diretor de planejamento estratégico do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (Sindicom), acredita que a atitude do devedor contumaz pode ser resumida em uma frase: Devo, não nego e não pago. “E não paga porque não quer pagar, e não paga porque, ao final, não tem com o que pagar”, afirma.
Dever é diferente de sonegar imposto. O sonegador não declara as vendas que faz e, ao agir assim, está cometendo um crime. O devedor contumaz não. Na opinião do juiz Fernando Marcelo Mendes, presidente da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Ajufesp), esse é um dos incentivos à prática. “O devedor contumaz faz disso uma maneira de atuação, por quê? Porque, do ponto de vista da legislação atual, o não pagamento de tributos, o mero inadimplemento do tributo não configura crime”, diz.
Para o desembargador Fábio Prieto de Souza, presidente do Tribunal Regional da 3ª Região, o devedor contumaz existe por uma razão bastante simples: porque é rentável. Souza acredita que seja um direito do contribuinte se defender da tributação imposta pelo Estado; porém, o grande problema está em transformar a defesa em atos ilícitos. “Planejamento tributário é um direito, ponto. Delinquência é outra coisa”, diz.
A LONGA BRIGA NA JUSTIÇA
A demora nos processos judiciais acaba eficiando a conduta do devedor contumaz. Para o presidente da Ajufesp, quanto mais tempo os empresários que não recolhem impostos conseguem retardar as ações movidas contra eles, maior é a chance de essas dívidas se tornarem impagáveis. De acordo com Mendes, uma execução fiscal tem um trâmite que pode variar entre dez e quinze anos, tempo que possibilita aos donos dessas empresas blindarem seu patrimônio.
DOIS EXEMPLOS CONCRETOS
O secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, relata casos recentes de devedores que tentaram transferir a responsabilidade ou esconder o patrimônio. “Um devedor com uma dívida de R$ 190 milhões fez alteração societária para incluir duas funcionárias no quadro de sócios, duas laranjas, sem capacidade financeira ou intelectual para gerir os negócios da empresa. Os reais proprietários passaram a integrar a empresa sediada nas Ilhas Virgens, por onde recebiam os lucros da empresa no Brasil, mediante meios fraudulentos”, conta.
Outra prática comum, segundo Rachid, é aderir a programas de refinanciamento tributário apenas para voltar a ter seus bens disponíveis para a venda – e logo vendê-los. “Outra empresa, com dívida na ordem de R$ 250 milhões, obteve parcelamentos e condições especiais, sendo excluída por inadimplência, enquanto vendia 69 imóveis em apenas um ano”, conta Rachid.
O DEVEDOR SABE QUE É DESLEAL
Todo empresário está sujeito a momentos de dificuldade em que não consegue pagar suas dívidas, inclusive as tributárias. Devedores eventuais devem ser protegidos de ações exageradas do fisco ou de outros credores. Um dos principais desafios do combate ao devedor contumaz é justamente distingui-lo do devedor comum (veja matéria na pág. 15). Segundo o advogado Luciano Godoy, especialista no assunto, uma diferença importante é o fato de que o empresário inescrupuloso age de caso pensado. Godoy cita o exemplo de uma distribuidora de combustíveis que admitiu, em sua defesa num processo de cobrança de impostos, que deixou de recolher impostos para conquistar clientes por meio de “um preço bastante competitivo, ainda que não baixo o suficiente para caracterizar concorrência desleal”. Ou seja: “Já estava se defendendo da acusação de concorrência desleal, então isso é uma alegação que mostra o nível a que chegamos de embate: externar, num processo, que a inadimplência foi feita para ganhar mercado”.
A IMPORTÂNCIA DE CONSCIENTIZAR O CONSUMIDOR
Devedores contumazes são mais comuns em setores que reúnem três condições propícias ao seu surgimento: alta carga tributária, baixa margem de lucro e grande demanda. Os segmentos de combustíveis, tabaco, bebidas e medicamentos estão entre os mais afetados. O advogado Luciano Godoy explica por que isso acontece. “Quando eu tenho muito imposto e um lucro numa margem baixa, há um grande incentivo ao não pagamento desse imposto, porque essa prática gera a possibilidade de uma redução de preço, aumentando brutalmente a margem de lucro”, afirma.
Infelizmente, os consumidores muitas vezes acabam favorecendo os devedores contumazes, mesmo sem intenção de fazê-lo. Godoy cita o exemplo do setor de combustíveis. Quando empresários inescrupulosos misturam substâncias mais baratas na gasolina ou fazem a bomba mentir sobre o volume efetivamente colocado no tanque do carro, o consumidor lesado é o primeiro a reclamar. Mas as pessoas não se queixam quando o posto abaixa demais o preço do combustível. “Nós migramos de um sistema de combustível adulterado para um sistema de combustível que não paga imposto, porque, quando não se paga imposto, reduz-se o preço. O consumidor vira, em princípio, um aliado daquele fornecedor, daquela entidade varejista, então é importante uma divulgação, uma conscientização do consumidor dos efeitos perversos dessa prática.”
COMBATE COMEÇA A GANHAR DESTAQUE
Até pouco tempo atrás, a luta contra o devedor contumaz não despertava maiores atenções da sociedade. Mas esse cenário está mudando. Nos últimos tempos, o tema vem ganhando destaque na grande imprensa. Uma prova disso foi o seminário O Devedor Contumaz e a Ética Concorrencial, que o ETCO e o jornal Valor Econômico realizaram em novembro de 2015. O assunto também foi tema de um caderno do Valor, publicado no mesmo mês.
Em agosto de 2014, uma matéria da revista Época mostrou o caso de uma refinaria, com atuação nos estados do Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo, que se tornou líder do mercado fluminense ao não pagar impostos.
A atenção da mídia ajuda a tirar o devedor contumaz das sombras nas quais ele costuma e prefere atuar.