Neutralidade tributária (cf/88, art. 146-a) e o combate aos devedores contumazes

Artigo: O devedor contumaz de tributos é um tipo de empresário desleal que faz muito mal aos concorrentes que pagam seus impostos corretamente e também ao País

Por Hamilton Dias de Souza
28/10/2015

Constituem fundamentos da República a construção de uma sociedade “livre, justa e solidária”, o “desenvolvimento nacional”, a erradicação da pobreza e das desigualdades, bem como a promoção do “bem de todos”, independentemente de quaisquer “formas de discriminação” (CF/88, art. 3º).

Trata-se de um ambicioso projeto que agrega à função de bloqueio típica dos estados modernos uma função de legitimação de certos valores e interesses, constitucionalmente qualificados. Como observa Tércio Sampaio de Ferraz Jr., a CF/88 cria um Estado que exige a realização desses mesmos valores.

A tarefa não é fácil e supõe um mercado sadio e equilibrado em paralelo às instituições oficiais. Tanto que a CF/88 o erige à categoria de “patrimônio nacional”, isto é, direito de todos, a ser incentivado e preservado como forma de “viabilizar o desenvolvimento”, “o bem-estar da população” e a autonomia do País (CF/88, art. 219).

LIVRE INICIATIVA E LIVRE CONCORRÊNCIA

Se o mercado pressupõe livre iniciativa (CF/88, arts. 5º, XIII e 170, caput e parágrafo único), um mercado verdadeiramente equilibrado impõe livre concorrência (CF/88, art. 170, IV), contraponto natural daquela, sob pena de desintegração. É a tensão entre ambas que garante a economia de mercado concebida pelo constituinte.

Insere-se nesse contexto o art. 146-A da CF/88, que, ao prever a criação de “critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência”, consagra a neutralidade concorrencial tributária. A tributação não pode figurar como elemento que coloque agentes econômicos de um mesmo mercado relevante em situação de desigualdade competitiva.

A questão é de suma importância. Em qualquer economia, a carga tributária é fator sensível na formação dos preços de bens e serviços. Assim, o não pagamento de tributo, por menor que seja, possibilita ao contribuinte vantagem extraordinária em relação aos que com ele arquem, como reconhecido pelo CADE (SC 38/99).

A tributação não pode figurar como elemento que coloque agentes econômicos de um mesmo mercado relevante em situação de desigualdade competitiva
A norma comentada possui duas dimensões. Uma negativa, impedindo a legislação tributária de prever, para situações similares, cargas impositivas diferentes. E uma positiva, compelindo a Administração à repressão de práticas do particular que levem, no plano dos fatos, a distorções concorrenciais, calcadas em vantagens fiscais indevidas.

Quanto a esse segundo aspecto, devem-se mitigar velhas práticas prejudiciais ao mercado, como a adulteração de produtos, a utilização abusiva de medidas judiciais para afastar a tributação, a sonegação e o “não pagamento sistemático de tributos” etc. Cuida-se de combater agentes que se valem de economia fiscal indevida para concorrer deslealmente.

Os estados do Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia dispõem de legislação coibindo práticas de devedores contumazes. Porém, tramita perante o Supremo Tribunal Federal (STF) ação direta de inconstitucionalidade questionando normas dessa espécie (ADI 4854-RS), por configurarem sanções políticas inconstitucionais, conforme súmulas 70, 323 e 547 da Corte.

A tese defendida na ADI prova demais. Tais verbetes concretizam entendimento fundado na livre iniciativa de que não pode o Estado usar meios coercitivos para forçar o pagamento de tributos, por dispor de instrumental jurídico e institucional adequado para tanto. Portanto, alcançam apenas sanções de cunho arrecadatório.

Medidas do Estado com objetivo de proteger outros interesses legítimos, como os dos que são atingidos em seu direito de concorrer em igualdade de condições (CF/88, art. 170, IV) e os de toda a coletividade a um mercado sadio e equilibrado (CF/88, art. 219), não são abrangidas, como decidido pelo Plenário do STF (RE 550.769/ RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa), in verbis:

“Não há que se falar em sanção política se as restrições à prática de atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial. Para ser tida como inconstitucional, a restrição ao exercício da atividade econômica deve ser desproporcional e não razoável” (voto do relator). (…) o descumprimento injustificado e reiterado de obrigações tributárias (…) da recorrente acarreta notória distorção do sistema concorrencial… na medida em que permite comercializar os seus produtos em patamar de preço inferior ao de seus concorrentes.

Constato que não se aplicam ao caso as súmulas 70, 323 e 547 desta Suprema Corte (…)” (voto do Min. Ricardo Lewandowski).

Diante de risco ao mercado e à concorrência, pode o Estado instituir sistemas especiais de fiscalização e arrecadação, coibindo práticas dos devedores contumazes. Desde que sejam razoáveis, tais medidas serão válidas. Isto é, quando não houver meio menos gravoso de evitar os desvios e quando forem adequadas ao alcance dessa finalidade. Se o interesse for meramente arrecadatório, porém, haverá invalidade, conforme as referidas súmulas.

Atualmente, o Estado não possui meios eficazes para coibir práticas anticoncorrenciais. Execuções são propostas quando não há patrimônio para responder pelo débito; cautelares fiscais não surtem os efeitos desejados; cassações de liminares ocorrem tardiamente etc. Somente medidas administrativas imediatas podem impedir a sua proliferação (suspensão ou cancelamento da respectiva inscrição fiscal, perda do registro, interdição do estabelecimento e outras).

PROTEÇÃO AOS AGENTES IDÔNEOS

Empresas formadas para praticar ilicitudes não têm legitimidade para arguir direito à livre iniciativa. Este não é um direito absoluto, e deve ser considerado juntamente com o direito das demais empresas a uma concorrência justa, que verdadeiramente lhes permita empreender. A ponderação dos interesses envolvidos exige a tomada de medidas para proteger os que agem de acordo com a ordem jurídica, e não o contrário. Por isso se afirma que sanções instituídas com esse objetivo são legítimas.

Em suma, o que as súmulas 70, 343 e 547 protegem é a livre iniciativa de agentes idôneos, não impedindo o Estado de garantir o bom funcionamento da economia e defender a livre concorrência, como já decidido. Quando do julgamento da ADI 4854-RS, o STF poderá delimitar o âmbito de aplicação daqueles verbetes, reafirmando a prerrogativa dos entes tributantes de combater adequadamente os devedores contumazes, que, de forma sistemática, consciente e injustificada, deixam de recolher tributos para obter vantagem concorrencial indevida.

Hamilton Dias de Souza, advogado tributarista, conselheiro consultivo do ETCO e fundador e titular da Dias de Souza Advogados Associados