O professor de direito da USP, Heleno Torres, falou em sua palestra sobre os conflitos entre contribuintes e o fisco, o processo administrativo e judicial e a reforma tributária. Ele lamentou que os projetos em discussão estejam demasiadamente focados na criação do imposto sobre valor agregado, sem dar a devida atenção às questões relacionadas com a segurança jurídica. Em sua opinião, o Brasil precisa de um sistema que traga mais previsibilidade à atividade econômica, permitindo “que as pessoas saibam exatamente quais são os tributos que devem pagar e quais são as obrigações que devem cumprir em relação aos tributos que são devidos e, ao mesmo tempo, constituir um estado de segurança, um estado de normalidade, onde o ambiente de negócios possa favorecer novos investimentos e uma amplitude na expansão de negócios no Brasil”.
Heleno Torres chamou atenção para a necessidade de controlar os excessos do fisco. “Falta ao Código Tributário Nacional, por exemplo, um capítulo sobre o processo e o procedimento de fiscalização, que atribua aos contribuintes direitos mais candentes sobre os limites da fiscalização e da ação do fisco nas relações administrativas”, afirmou.
O tributarista contou o caso de um cliente que, depois de ser advertido duas vezes pela fiscalização de que seu negócio deveria ser enquadrado como instituição financeira, resolveu mudar a sua razão social para enquadrar-se nessa categoria. Durante esse processo, foi surpreendido por decisão do CARF contrária à alteração, alegando que a empresa atendia aos requisitos de instituição financeira. “O sistema tributário não pode levar os contribuintes a uma situação de tamanha contradição”, advertiu. “Essas contradições, elas agravam o ambiente de negócio, agravam pesadamente os contribuintes com somas de multas, de juros, de cobranças, de pagamentos de advogados e tantas outras repercussões e, de fato, isso não é o que se espera de um sistema tributário com segurança jurídica.”
Heleno destacou a urgência de uma reforma no sistema de consultas para torná-lo efetivo na solução de dúvidas dos contribuintes e redução dos conflitos. “Precisamos reformular com muita urgência o sistema de consultas, aproveitar essa oportunidade para que nós tenhamos, a partir do momento da apresentação do auto de infração, ou mesmo do lançamento, a possibilidade que o contribuinte possa iniciar a sua impugnação, que isso seja célere, na medida em que também o mercado precisa de decisões rápidas em matéria tributária”, disse.
Falou também sobre a necessidade de maior uniformização de entendimentos no julgamento de processos tributários, para evitar que casos iguais tenham resultados distintos em diferentes instâncias. E lembrou que a situação atual também não interessa ao Estado, que não recebe as dívidas tributárias, nem à sociedade. “Não há um único estado, um único munícipio no país onde a dívida ativa tenha cobrança superior a 1% do volume acumulado. Ou seja, a conflitividade não interessa ao fisco”, afirmou Heleno Torres. “O tributo que não entra para os cofres públicos por espontaneidade faz falta no orçamento público. E quando faz falta no orçamento público, das duas uma: ou temos aumento de impostos ou temos contingenciamento até que aquela receita ingresse nas contas públicas e aquele orçamento possa atender a essas despesas. De qualquer jeito a sociedade perde.”
Ao final da palestra, em uma breve conversa com o tributarista Everardo Maciel, coordenador do evento, respondeu pergunta sobre a integração das etapas administrativas e judiciais dos processos tributários. “Se isso for para simplificar, para reduzir a litigiosidade, é urgente que nós façamos uma simplificação dos processos nesse universo tão complexo que é o contencioso administrativo e judicial”, concluiu.
A seguir, a transcrição da palestra.
Palestra: Segurança Jurídica e Processo Tributário
Palestrante: Heleno Torres
Currículo (em 25/6/19): Professor titular do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); livre-docente (USP), doutor (PUC-SP), mestre (UFPE) e especialista (Università di Roma – La Sapienza) em direito tributário; diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Financeiro (IBDF); acadêmico da cadeira 44 da Academia Paulista de Direito (APD); diretor vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF); foi vice-presidente e membro do comitê-executivo da International Fiscal Association (IFA), com sede em Amsterdã, Holanda. Advogado e parecerista.
Transcrição da palestra
Boa tarde a todos.
Caríssimo Edson, quero agradecer esse convite, e igualmente ao meu caríssimo amigo dr. Everardo Maciel. Quero dizer que o senhor tem duas opções: ou eu posso fazer uma palestra aqui professoral ou sentar nessa cadeira e debater com você o tema. O que é que você prefere?
Mas de fato eu agradeço aos organizadores pela compreensão, mas represento a congregação da Faculdade de Direito no Conselho Universitário da USP, e coincidem esse encontro e a reunião do Conselho. São duas reuniões por semestre, então costumeiramente evitamos muito faltar.
Mas eu também me senti no dever de comparecer a esse encontro e agradeço ao professor Humberto Ávila por ter feito essa transição de horários, porque de fato o convite do Everardo para falar-lhes sobre reforma tributária a mim é muito importante. Exato porque tenho com ele dividido, compartilhado alguns fóruns internacionais e nacionais sobre esse tema e sempre buscando aquilo que eu acho que é comum a todos os senhores, que é como construir uma reforma tributária possível, que traga realmente resultados o mais rápido possível para refletir na vida das pessoas e das empresas e que se preste justamente a financiar o Estado de uma forma suficiente de um lado, e ao mesmo tempo garantir a segurança jurídica para todos os cidadãos e todas as empresas.
Eu poderia, Edson, continuando a sua fala, dizer que realmente são todos esses percalços. E por isso, me chama muito a atenção que as atenções estejam tão concentradas sobre uma reforma tributária que se baseia estritamente no IVA, como se o nosso único problema estivesse no âmbito do imposto sobre consumo ou nas relações de consumo em geral.
Eu quero destacar aos senhores que, de fato, o que os cidadãos e as empresas reclamam é por uma reforma tributária da segurança jurídica.
Uma reforma tributária que traga previsibilidade no ambiente negocial. Que as pessoas saibam exatamente quais são os tributos que devem pagar e quais são as obrigações que devem cumprir em relação aos tributos que são devidos e, ao mesmo tempo, constituir um estado de segurança, um estado de normalidade, onde o ambiente de negócios possa favorecer novos investimentos e uma amplitude na expansão de negócios no Brasil.
Não há estado de direito sem segurança jurídica. Segurança jurídica é a base de tudo. É a origem do próprio estado de direito e é exatamente aqui que se encontra esse grande tema da segurança jurídica em relação à aplicação dos tributos.
A criação e aplicação dos tributos recebeu pelo direito brasileiro uma preeminência importantíssima. Não existe no mundo sistema tributário constitucionalizado na forma como nós temos. Isto deveria ser um fator de segurança jurídica.
Diversamente, o que temos é justo o oposto, onde os processos e a conflitividade evidenciam o surgimento permanente de tensões entre fisco e contribuinte e, ao mesmo tempo, com um manancial de produção normativa impossível de ser acompanhado e entendido até mesmo por especialistas.
Então, todos nós estamos conscientes e convictos de que chegou a hora de uma reforma tributária para valer.
Mas essa reforma tributária é apenas aquela que se concentra no imposto sobre o valor agregado, no IVA, ou em outros termos que tem se posto no dia a dia? Não. Quero destacar aos senhores que eu acho que essa proposta é até virtuosa na medida em que ela estava disponível para os parlamentares darem início a esse diálogo, a essa construção com a sociedade de uma discussão mais profunda sobre a reforma tributária e, a partir deste impulso, aí sim iniciarmos esse grande debate como estamos fazendo aqui.
Mas a reforma do sistema tributário brasileiro é muito maior. Passa não apenas pelos impostos incidentes sobre consumo, sobre indústria, sobre serviços e, obviamente, não é esse o tema que está atribuído a mim aqui nesse momento, mas passa por essa dinâmica dos tributos sobre consumo, que verdadeiramente trazem para todos uma sensação de enorme custo tributário, porque uma das opções do nosso modelo tributário foi concentrar, realmente, a incidência sobre essas relações de circulação, mas eu diria aos senhores que, de fato, não é o IBS que vai prometer realmente o paraíso na Terra.
Eu diria que nós temos cinco grandes valores a serem perseguidos nessa reforma tributária no que concerne à tributação do consumo.
O primeiro é uma não cumulatividade real, ou seja, com uma incidência tributária que permita a tomada de créditos universais, ou seja, créditos financeiros em todas as operações. Isso é um mandamento constitucional que nunca foi cumprido.
O segundo é que tenhamos uma e somente uma alíquota aplicável em todo o processo de circulação.
O terceiro é que nós eliminemos ou pelo menos tenhamos coragem de reduzir drasticamente figuras perversas de exceção que só devem caber em situações muito estritas – e falo aqui da substituição tributária, ao menos na forma como se encontra.
Um outro aspecto que eu acho que é de capital importância é também a revisão urgente do modelo de benefícios e incentivos fiscais, ao menos no modo como eles estão postos. Regimes especiais que pululam a torto e a direito. Até mesmo os próprios beneficiários desses regimes têm dificuldades em cumprir todas as suas obrigações e por isso me parece que este também é um outro grande foco da reforma da tributação sobre consumo.
Mas temos o imposto sobre a renda, temos discussões ainda em relação à tributação de serviços. Eu pessoalmente acho que o imposto sobre serviços de comunicação poderia perfeitamente, aí sim, ter uma base de tributação compartilhada com municípios, com alíquota comum em certos serviços bem marcados que viriam então compartilhados com os estados, já que a discussão toda se concentra nesse debate sobre economia digital, então que tenhamos aí uma competência compartilhada.
Mas daí só isso justificar o compartilhamento de competências ou a extinção praticamente do imposto sobre serviços dos municípios para atribuir aos estados o direito de ter uma alíquota única ou comum em relação a outros estados e uma tributação baseada no destino, que não é estado mas sim município, eu pessoalmente discordo frontalmente dessa escolha que está posta no projeto que está em andamento.
Mas acho, sinceramente, que esse projeto não logrará êxito. O que logrará êxito realmente é a concentração maior do IVA no âmbito federal, no âmbito da União, e nos estados e municípios reformas profundas, que, aí sim, evidenciem esses pressupostos que eu acabei de antecipar.
Ora, esse é um foco da reforma tributária. A reforma do sistema de tributos, da repartição, da distribuição do produto arrecadado.
O outro, que, sim, este é de extrema relevância, é aquele que tocava o Edson [Vismona] na sua exposição: das obrigações acessórias, do processo, do procedimento de fiscalização, do direito penal tributário, enfim, daquilo que corresponde à vida, ao dia a dia do contribuinte na relação com esse sistema tributário.
E para dizer-lhes de modo bem objetivo o quanto realmente essa parte carece de reforma, eu diria aos senhores que todo o conteúdo do Código Tributário Nacional, verdadeiramente, hoje, é quase que intocável, comparativamente com a Constituição, justamente naquilo que corresponde a esses fundamentos. E por quê? Porque ficou como sendo praticamente o último reduto de proteção do cidadão na relação com o fisco.
Então, praticamente nenhuma regra do Código Tributário Nacional tem sido modificada, diversamente do que ocorre com o texto constitucional. Isso é paradigmático, não é? Só no Brasil acontece algo parecido.
Mas isso nos coloca uma reflexão. Ora, ocorre esta imutabilidade porque o Código Tributário é perfeito, nos últimos 50 anos nada mudou a justificar sua reforma? Ou porque, de fato, estão aí regras importantes e que tanto o fisco quanto o contribuinte entendem que elas devam ser mantidas como estamentos desse sistema?
Eu diria aos senhores que esse sistema está ainda trabalhando muito bem, mas ele já dá mostras de enorme cansaço. Ele precisa realmente progredir para mudanças objetivas em diversos pontos.
Falta ao Código Tributário Nacional, por exemplo, um capítulo sobre o processo e o procedimento de fiscalização, que atribua aos contribuintes direitos mais candentes sobre os limites da fiscalização e da ação do fisco nas relações administrativas.
Recentemente, eu recebi um pedido de parecer que tinha um caso extremamente alarmante. Era uma entidade que se entendia como instituição não financeira, recolhia por regime não cumulativo, o PIS e a COFINS, o fiscal então disse: “Não, o senhor é uma instituição financeira, eu vou lhe autuar e cobrar como tal no regime cumulativo”. Um ano depois, vem outro fiscal e faz a mesma coisa. Autua como instituição financeira pelo regime cumulativo.
A empresa faz uma reunião e decide: “Ora, já que por duas vezes a fiscalização veio aqui e nos autuou como instituição financeira, vamos então mudar a nossa razão social, a nossa estrutura para instituição financeira”.
Tomaram todos os procedimentos, que obviamente isso não é simples, é custoso e difícil, e chegou a esse intento. Qual a surpresa? O CARF então decide que aquela entidade não é uma instituição financeira e deve recolher o PIS e a COFINS pelo regime não cumulativo. E mais tarde outro fiscal comparece e autua a empresa porque ela seria uma instituição não financeira e, portanto, estava usando do “sistema cumulativo”, entre aspas, indevidamente. Mas não lhe confere direito a créditos, que é uma peculiaridade.
E aí, em qual fiscal esta empresa – que é pública, destaque-se, ou seja, não estamos falando de uma empresa de gaveta, nem um planejamento tributário, entre aspas, “agressivo” – [deve acreditar]? É uma empresa que quer ser correta em relação aos seus procedimentos. Essa empresa então, perplexa, indagava sobre, afinal de contas, o que ela era? Uma instituição financeira ou não financeira?
Vejam, o sistema tributário não pode levar os contribuintes a uma situação de tamanha contradição. Essas contradições, elas agravam o ambiente de negócio, agravam pesadamente os contribuintes com somas de multas, de juros, de cobranças, de pagamentos de advogados e tantas outras repercussões e, de fato, isso não é o que se espera de um sistema tributário responsivo, com segurança jurídica.
Daí que nós precisamos construir, reformar esse modelo de segurança jurídica pelo procedimento – e aí, realmente, não faltam aspectos a serem trabalhados. É o caso das consultas.
Eu e o Everardo já trabalhamos em diversas situações sobre esse tema. Precisamos reformular com muita urgência o sistema de consultas, aproveitar essa oportunidade para que nós tenhamos, a partir do momento da apresentação do auto de infração, ou mesmo do lançamento, a possibilidade que o contribuinte possa iniciar a sua impugnação, que isso seja célere, na medida em que também o mercado precisa de decisões rápidas em matéria tributária. Não atende ao mercado, às empresas, que as decisões administrativas demorem 2, 3, 4, 5 anos a serem tomadas, até porque até lá muitas vezes aquele negócio nem existe mais. Basta ver a questão [das] bitcoins, por exemplo. Ano passado, eu atendi um cliente que dizia: “Professor, eu preciso dessa decisão urgente, eu não posso esperar 6 meses. Talvez daqui a 6 meses os concorrentes já tenham me ultrapassado, eu já esteja superado na técnica, no dia a dia dos negócios”.
Esses aspectos, infelizmente, ficam para trás quando pensamos no modelo que nós temos hoje de processos administrativos/judiciais ou mesmo de consultas. Ao lado disso, do processo administrativo para o processo judicial, repete-se pelo artigo 38 da Lei de Execuções Ficais tudo aquilo que foi objeto de discussão no processo administrativo.
É preciso que, com segurança jurídica e proteção do direito dos contribuintes, tenhamos condições de reduzir esse prazo, não é?
Eu me lembro que em 2007, quando começamos a examinar esse assunto em uma tentativa de propor medidas alternativas de soluções de controvérsias no processo administrativo/judicial, a título de conciliação, de transação tributária ou mesmo da inclusão da arbitragem, não havia no Brasil nenhuma apuração sobre os valores do montante dos tributos que estavam em processos judiciais ou administrativos.
Hoje, nós temos, e são alarmantes, esses números. Nós temos R$ 2 trilhões de passivo tributário em dívida ativa. Ora, isso evidencia o quê? Evidencia que exatamente nós precisamos de uma reforma tributária que evite a conflitividade. Não adianta só resolver o problema do processo judicial em si, é preciso antecipadamente evitar a conflitividade.
Mas evitar a conflitividade reclama também um outro ponto importantíssimo, que é o atendimento do fisco ao contribuinte, que hoje é péssimo, não existe. Nós precisamos que o atendimento se dê na Receita Federal e nas Procuradorias Regionais da Fazenda Nacional, mas também nas Procuradorias Estaduais, nas Procuradorias Municipais, nas Secretarias de Fazenda estaduais e municipais. E um atendimento de qualidade, não um atendimento superficial. É um atendimento para a solução dos problemas, daqueles que realmente querem ter a solução dos seus problemas do cotidiano fiscal.
Por isso, eu tenho muito apreço pelo que diz Everardo com relação à necessidade de saltarmos, por exemplo, do CARF ou de uma decisão administrativa para um tribunal. Por que ficaríamos reféns de formação de decisões monocráticas se já podemos formar jurisprudências sobre os casos específicos, aqueles que vão chegando, e sobre os temas [que] são tomadas as decisões?
Do mesmo modo que as decisões da câmara superior de recursos fiscais, por exemplo, no âmbito do CARF, bem poderiam, em comunhão com a COSIT, ter permanentemente uniformizações de entendimentos sobre diversos itens das discussões que são ali travadas e chegam a resultados. A fórmula das súmulas talvez não seja a única possibilidade, mas podemos ter de fato dispositivos que se somem como critérios de uniformização da jurisprudência sobre os mais variados casos.
O modelo que nós temos hoje, onde o CARF decide a cada instante de uma forma e, posteriormente, no âmbito da administração, essas decisões não são consideradas pela fiscalização – muito pelo contrário, muitas vezes são deliberadamente descumpridas porque o fiscal entende de forma diferente e acabou-se. E assim segue um mundo de conflitividade permanente e que só traz fragilidade ao nosso ambiente de negócios.
Por isso, a conexão entre procedimento de fiscalização ou de produção de lançamentos tributários, impugnação e discussão na via administrativa e o contencioso judicial precisam coincidir de algum modo em uma estrutura mais enxuta, com menos prazos e com mais agilidade, sem dúvida alguma. Esse é um caminho sobre o qual nós não temos dúvidas que o Brasil precisa trilhar.
E ao lado disso, termos medidas, sim, de simplificação. E pela primeira vez eu estou convicto de que há uma sensação de compreensão por parte das procuradorias municipais, estaduais e a própria Procuradoria da Fazenda Nacional sobre a importância de formas alternativas de solução de conflitos.
Não há um único estado, um único munícipio no país onde a dívida ativa tenha cobrança superior a 1% do volume acumulado. Ou seja, a conflitividade não interessa ao fisco. O fisco simplesmente não consegue cobrar essa dívida. Agora, porque ele não consegue cobrar essa dívida não quer dizer que tenhamos aí alguma vantagem. Não. Porque o tributo que não entra para os cofres públicos por espontaneidade faz falta no orçamento público. E quando faz falta no orçamento público, das duas uma: ou temos aumento de impostos ou temos contingenciamento até que aquela receita ingresse nas contas públicas e aquele orçamento possa atender a essas despesas. De qualquer jeito a sociedade perde.
Quem ganha? O sonegador contumaz. É contra esse que todos nós temos que agir. A sociedade civil organizada, o fisco, as autoridades, todos temos que agir contra esse mal que campeia no sistema tributário. Por quê? Porque ele se aproveita dessas falhas legislativas e até mesmo jurisprudenciais e usa desses mecanismos para se locupletar em seu favor no âmbito da concorrência, em clara concorrência desleal.
É por isso que eu entendo que a segurança jurídica vai exatamente ao encontro desta previsibilidade necessária, ou seja, de caminhos do rito processual onde necessariamente o contribuinte, o bom contribuinte, tem ao mesmo tempo celeridade nas suas decisões, encontre ali na administração ou no âmbito judicial solução para os seus conflitos de forma séria e objetiva, mas ao mesmo tempo também a sociedade tenha a satisfação desses créditos, veja o resultado desses tributos aplicados nos seus interesses e seus propósitos.
O pior dos males é o que nós estamos a ver, que é o de aumento de tributos, o de busca do direito tributário de exceção permanentemente sendo construído pelas administrações tributárias ou pelos legisladores, como agora: para financiar, com a reforma da previdência social, pega-se os bancos, corretoras, seguradoras como instrumentos de financiamento de algo que é de interesse de todos. Como se isso fosse uma espécie de justicialismo ou de Robin Wood da era moderna. Não. Isso, efetivamente, é um típico caso de tributação de exceção, onde você sai da normalidade para atender às demandas de urgência porque o sistema como está não consegue ter suficiência para o financiamento do Estado.
Eu poderia falar aqui sobre diversos pontos no que concerne a cada um desses itens, claro que o tempo é muito curto, mas eu acho que o mais importante aqui é pontuar essa necessidade.
Por fim, eu diria que é parte desse grande processo nós chegarmos a um código de conduta do fisco e do contribuinte, ou seja, termos regras mais claras sobre os direitos e os deveres do contribuinte em relação aos deveres e aos direitos da administração tributária. Isso também traria e deve trazer regras melhores sobre conformidade, sobre o modelo de compliance tributário que o bom contribuinte deve atender.
Gustavo Brigagão fala muito disso nas questões sobre tributos indiretos etc., de como devamos ter esse tratamento equilibrado, equitativo entre sujeitos que estão no sistema tributário não cumulativo. Isso, eu diria aos senhores, além do sistema de tributação do consumo, na verdade, todo modelo tributário reclama cada vez mais um sistema baseado em conformidade, baseado no respeito aos direitos da concorrência, mas especialmente que nós tenhamos nesse conjunto de normas disposições que assegurem maior previsibilidade e melhor qualidade nas relações entre fisco e contribuinte.
Por isso, eu evito chamar aquilo que antes se destacava como código de defesa do contribuinte, mas eu gosto muito de um modelo que se aproveite o Código Tributário Nacional, especialmente na sua primeira parte, para reforçarmos regras que sejam de proteção, de defesa dos contribuintes.
Eu ficaria por aqui, Everardo, e me colocaria à sua disposição para qualquer comentário adicional ou alguém da plateia que queira fazer. Muito obrigado.
Questão de Everardo Maciel para Heleno Torres:
EVERARDO MACIEL: Obrigada Heleno. Eu acho que você feriu muitos pontos na questão de segurança jurídica particularmente centrada na questão do processo, mas eu acho que dois pontos que você mencionou que eu acho que merecem uma atenção especial e, portanto, eu ia fazer exatamente essa pergunta para você. Que é essa, vamos chamar assim, essa falta de limites no lançamento que hoje existe, que permite que aconteçam situações como as que você aqui narrou, que não são únicas. Aliás, ao contrário, são as questões mais frequentes com que nos deparamos. Porque há, me permita usar uma expressão não técnica para definir, porque existe o lançamento sem culpa. “Pode lançar que não há problema.”
Então, para isso, a questão que eu ponho para você, que eu gostaria de ouvir sua opinião, é uma questão que já vem sendo tratada há muitos anos e curiosamente sempre desaparece. Desde Rubens, o projeto original do código tributário, de Rubens Gomes de Souza, posteriormente nos estudos no início dos anos 60, destacadamente de Gilberto Ulhôa Canto, e posteriormente com os trabalhos que fizeram em associação Gilberto Ulhôa Canto, Geraldo Ataliba e o Gustavo Miguez de Mello, onde tinha uma questão que estava presente: era a ideia de integração entre o processo administrativo e o processo tributário. Que, aliás, chegou a ser introduzido no texto da Constituição anterior – e introduzido, infelizmente, por uma via que estava politicamente condenada. Foi exatamente uma emenda constitucional, promulgada pelo executivo, que é a Emenda nº 7, conhecida politicamente como o “Pacote de Abril”. E o Pacote de Abril inviabilizou tecnicamente qualquer possibilidade futura de implementação dessa medida por via da lei ordinária.
Então, a questão que eu colocaria para você é muito simples e é única. O que acha da ideia de integração entre o processo administrativo e judicial no âmbito tributário?
HELENO TORRES: Eu, há algum tempo, tinha uma série de questionamentos sobre essa possibilidade justamente pela forma como o Código Tributário foi elaborado. Nos últimos tempos eu passei a perceber que é perfeitamente possível acomodarmos uma reforma desse modelo do sistema de cobrança, onde o ato de lançamento… E esse é um dado interessante: Rubens Gomes de Souza tratava o lançamento tributário como provisório. O artigo 142 deixa, de algum modo, esse resquício ao dizer que cabe ao auto de infração, se for o caso, propor a penalidade cabível. Propor, por quê? Por ser penalidade caberia então o devido processo legal para se chegar, a partir do contraditório e ampla defesa, à decisão definitiva e, portanto, ao lançamento tributário definitivo.
Essa definitividade pode vir no plano da administração como pode vir também em uma composição com o processo judicial tributário.
Eu quero só destacar aos senhores que é exatamente essa fragilidade, muitas vezes da teoria e da jurisprudência, que nos levou a esse estado de coisas inconstitucional que está aí.
E falo especificamente da penalização das relações tributárias, justamente quanto àquele contribuinte que declara o tributo devido, ou seja, atende aos critérios da obrigação acessória do lançamento por homologação – a massa hoje dos lançamentos são por homologação –, o contribuinte então cumpre a legislação no que concerne a esse ponto… e aí em parte também culpa da doutrina. Por muito tempo, a doutrina passou a dizer que quando o contribuinte faz essa declaração, ele promove o auto lançamento dos tributos. Ao dizer isso, havia aí uma intenção específica com relação a segurar o prazo decadencial do artigo 150, parágrafo 4º, e não do artigo 173.
Ao firmar esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça aproveitou-se da ocasião para dizer: “Ok, então a declaração do contribuinte constitui o lançamento, constitui a obrigação tributária pelo lançamento”.
É o que está na base justamente desse princípio de representação para fins penais da declaração sem sequer o contribuinte ter passado por alguma via de discussão administrativa ou judicial sobre aquela cobrança.
E aí o crédito tributário simplesmente declarado não pago e muitas vezes não impugnado passa a servir então como fundamento de impugnação.
Eu já vi de tudo. Já vi PIS/COFINS, ISS, imposto sobre a renda, ICMS, contribuições previdenciárias, todas estão levando contribuintes às vias penais e à Polícia Federal com oitivas e com todo o início do processo criminal. Isso é gravíssimo. Maior insegurança jurídica não pode haver.
Há um caso, Everardo, que o contribuinte, ao entendimento – o professor Quiroga, que é um expert nisso, sabe – de que os pagamentos de participação em lucros seriam isentos, uma briga que, inclusive está no Supremo Tribunal Federal, é muito antiga etc., a partir da discussão de isenção, o contribuinte então não faz o lançamento dessa contribuição. Chega um fiscal e entende que seria devido e cobra o tributo e o lançamento etc.
A discussão, portanto, é sobre isenção. O contribuinte não tinha essa obrigação pré-existente. Ele não poderia nunca fazer uma declaração desse tributo porque entendia ser justamente isento. A presunção dele era pelo não pagamento. Não é pelo pagamento.
Qual a surpresa? Que, enfim, ao final o CARF decide que incidiria a contribuição sobre essa verba. Antes de o contribuinte iniciar o processo judicial, tem a surpresa de uma representação para fins penais que leva 26 executivos a oitivas na Polícia Federal no Rio de Janeiro.
É uma grande empresa e isso traz obviamente repercussões na vida privada desses executivos – e feita unicamente com o intuito, o propósito, de pressão para que os contribuintes paguem aquilo que não é devido, porque à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Regional Federal daquela região etc., entende-se pela, justamente, isenção daquele tipo de cobrança tributária.
Então, eu entendo cada vez mais que se isso for para simplificar, se isso for para reduzir a litigiosidade, é urgente que nós façamos, aí sim, uma acomodação do Código Tributário Nacional, primeiro com essa experiência dos últimos 50 anos, e, segundo, que nós possamos realmente construir as condições de uma simplificação dos processos nesse universo tão complexo que é o contencioso administrativo e judicial.