REVISTA ETCO – EDIÇÃO 26
JUNHO, 2021
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Aprimorar a relação fisco-contribuinte

Propostas nesse sentido foram discutidas pelos participantes de um webinar realizado pelo Jota com patrocínio do ETCO sobre contencioso tributário e a necessidade de se valorizar os bons contribuintes e combater os devedores contumazes

Por ETCO
26/05/2021

São dois problemas que causam muitos prejuízos ao País. De um lado, a ação predatória dos devedores contumazes de tributos: empresas estruturadas com o propósito de nunca recolher os impostos devidos e utilizar essa vantagem ilícita para praticar concorrência desleal, lesando o fisco e desvirtuando o mercado. Do outro, o gigantismo do contencioso fiscal, que se alimenta da complexidade e das deficiências do sistema tributário brasileiro e gera enorme insegurança jurídica tanto para quem paga quanto para quem arrecada os impostos.

Reunir especialistas para debater soluções para esses dois temas foi o objetivo do webinar Contencioso Tributário: Como valorizar a relação com os bons contribuintes e combater os devedores contumazes, realizado no dia 16 de outubro pela Casa Jota, com patrocínio do ETCO. Os participantes foram a ex-senadora Ana Amélia Lemos, autora do Projeto de Lei do Senado (PLS) 284/17 (aguardando votação), que faz a distinção entre o devedor contumaz e os demais tipos de devedores e autoriza punições mais duras contra aquele; o procurador João Henrique Grognet, coordenador-geral de Estratégia de Recuperação de Créditos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN); a diretora executiva do Grupo de Estudos Tributários Aplicados (Getap), Zabetta Macarini Gorissen; e o tributarista Breno Vasconcelos, pesquisador do Insper. A mediação ficou a cargo de Laura Diniz, cofundadora do Jota, e da repórter Jamile Racanicci.

Diagnóstico do contencioso

O debate teve como ponto de partida o estudo que a consultoria E&Y (Ernst & Young) realizou para o ETCO sobre a evolução do contencioso nos últimos anos, suas causas, propostas de solução e exemplos do que funciona em outros países. O trabalho mostrou que a soma dos valores em disputa ou em processo de cobrança subiu de R$ 2,275 trilhões (42,7% do PIB) em 2013 para R$ 3,44 trilhões (50,4%) em 2018.

O estudo foi publicado na edição de agosto de 2020 da Revista ETCO. Com entrevistas com 27 especialistas envolvidos nessa discussão, entre juristas, tributaristas e representantes dos três poderes e da iniciativa privada, foi apresentado um quadro detalhado de propostas. A publicação pode ser baixada livremente no site do Instituto.

Várias sugestões foram debatidas no webinar. O procurador Grognet defendeu que o País dê mais ênfase à solução de litígios no âmbito administrativo, reduzindo assim o número de casos que vão parar na Justiça. “Devemos considerar a execução fiscal como uma última ferramenta para a recuperação do crédito público e fortalecer a execução administrativa”, afirmou. “Qualquer país que preze minimamente o dinheiro do contribuinte tem que se dedicar a essa tarefa, afinal de contas uma execução fiscal custa dinheiro.”

Avanços recentes

Grognet destacou a estratégia que a PGFN vem adotando de desistir de recursos em processos de baixo valor ou sem chances de recuperação do crédito tributário. No total, segundo ele, já são mais de 2 mil desistências. O procurador citou outros dois avanços recentes que vêm contribuindo para melhorar a relação entre o fisco e os contribuintes. Um deles foi a adoção do instituto do Negócio Jurídico Processual na esfera tributária, a partir de 2018. Esse instrumento permite que as partes em litígio negociem, não os valores em discussão, mas sim alguns aspectos importantes do processo tributário, como prazos, conferência de cálculos e garantias.

O outro foi a aprovação da Lei nº 13.988/2020, que regulamentou as primeiras modalidades de transação tributária no País, autorizando o fisco a conceder descontos em alguns tipos de negociação com os contribuintes. Segundo Grognet, até agosto de 2020, já haviam sido celebradas transações com 77,4 mil contribuintes, totalizando compromissos de pagamento de R$ 28 bilhões.

A diretora do Grupo de Estudos Tributários Aplicados ressaltou a importância da regulamentação da transação tributária e comemorou o nível de adesão em 2020. “Fiquei surpresa com os primeiros resultados da transação tributária, ainda mais em um ano de pandemia”, afirmou. Zabetta lamentou, no entanto, que o Congresso tenha estabelecido limite de 50% no desconto total que pode ser oferecido aos contribuintes por meio da transação tributária. Ela lembrou que a Medida Provisória que deu origem à Lei não previa esse limite. “O fato de colocar os 50%, de certa forma, pode limitar um pouco o apetite da sociedade com relação à transação”, afirmou.

Zabetta ressaltou também que os contribuintes aguardam a utilização da transação para solucionar litígios envolvendo as chamadas teses tributárias, parcela do contencioso que decorre de divergências entre o fisco e os contribuintes sobre a forma correta de interpretar determinadas leis. Essa modalidade está prevista na Lei nº 13.988/2020, mas até a data do webinar nenhuma proposta de transação envolvendo tese tributária havia sido proposta pelo fisco. “Se a gente tiver uma agenda positiva de temas para transacionar, pode ser uma iniciativa bastante útil para limpar os autos de infração e as ações que estão em andamento”, explicou.

Compliance cooperativo

Em mensagem enviada aos debatedores, o presidente executivo do ETCO, Edson Vismona, também elogiou o instrumento da transação e sugeriu a adoção de outro mecanismo muito utilizado no mundo para resolver divergências entre o fisco e os contribuintes: a mediação no início do processo de autuação fiscal.

O tributarista Breno Vasconcelos defendeu a criação de lei nesse sentido. “Mediação é uma forma de redução de contencioso importante, dentro de um programa grande de compliance cooperativo”, disse. “Em vez de continuarmos na lógica da discussão somente após a aplicação de penalidades, nós temos a possibilidade de abrir um canal de discussão e mediação antes da lavratura do auto de infração.” Ele enfatizou que a medida deve ficar restrita aos bons contribuintes.

Breno listou uma série de características do sistema tributário que aumentam a insegurança jurídica no País. Para começar, citou o risco, sempre presente, de que uma nova interpretação de uma norma tributária tenha aplicação retroativa. “O contribuinte atende a uma interpretação vigente em determinado momento e depois é fiscalizado, autuado e julgado de acordo com a nova interpretação”, criticou.

Outro fator de insegurança, segundo ele, é a ausência de atos que registrem a interpretação oficial das normas tributárias. “A edição de uma nova norma deveria vir acompanhada de um guia explicando como interpretá-la”, sugeriu. Em sua opinião, isso evitaria uma prática que costuma ser adotada pelo fisco de tentar aumentar a arrecadação por meio do atalho fácil de reinterpretar normas tributárias, em vez do caminho adequado, porém mais difícil, de aprovar mudança legislativa no Congresso.

Breno citou ainda a ausência de um processo de consulta eficaz, a falta da sistematização da legislação vigente exigida pelo artigo 212 do Código Tributário Nacional e a duração excessiva dos processos tributários no País entre as causas da insegurança jurídica.

Projeto contra Devedor contumaz

A ex-senadora gaúcha Ana Amélia lamentou a complexidade do sistema tributário brasileiro e seus impactos negativos sobre a competitividade das empresas nacionais. “O problema não é apenas o peso da carga, mas a complexidade do sistema, que custa muito dinheiro”, afirmou. Ela lembrou uma comparação feita pelo empresário Jorge Gerdau Johannpeter, dono de siderúrgicas de porte equivalente no Brasil e no Canadá, sobre as estruturas dedicadas às tarefas tributárias nas duas unidades. “Para a siderúrgica localizada no Rio Grande do Sul, ele tem 250 profissionais cuidando das questões envolvendo tributos. No Canadá, o mesmo serviço exige apenas três pessoas”, contou.

Citando o ditado espanhol hecha la ley, hecha la trampa, que pode ser traduzido livremente como “feita a lei, feita a brecha”, Ana Amélia apontou a relação entre a complexidade do sistema e práticas como a sonegação e a inadimplência contumaz. Empresários mal intencionados, que deixam de recolher os impostos devidos, se aproveitam do extenso emaranhado de normas e da lentidão da Justiça para prolongar ao máximo os processos de cobrança. Enquanto isso, usam a vantagem tributária ilícita para ganhar mercado e transferem os lucros da empresa inadimplente para outros negócios.

Projeto parou no Senado

Ana Amélia, que não concorreu à reeleição no Senado, lamentou que o projeto de lei que apresentou em 2017 para combater essa prática, que vinha avançando na legislatura anterior, não tenha evoluído a partir de 2019, quando teve início nova legislatura. “Nós fizemos uma proposta muito bem construída, com especialistas, com a participação do ETCO, porque envolve concorrência desleal, para separar os tipos de devedores. A discussão foi uma guerra, mas ainda assim conseguimos aprovar a proposta na Comissão Especial com uma modulação absolutamente aceitável da penalidade”, disse.

A ex-senadora chamou atenção para a punição muito mais severa que acabou sendo autorizada pelo Supremo Tribunal Federal no final de 2019, na apreciação do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 163.334. Na ocasião, a maioria dos ministros entendeu que um devedor de Santa Catarina poderia ser julgado não apenas na esfera civil, como a legislação prevê para os inadimplentes, mas também criminalmente, por apropriação indébita de ICMS. O tipo penal prevê pena de prisão.

Embora referente a apenas um caso, a decisão abriu caminho para que outros devedores também sejam julgados e condenados criminalmente. “Fizeram tanta luta contra o que nós estávamos propondo na comissão especial do Senado e veio o STF, no vazio legislativo, e estabeleceu uma penalização muito mais dura”, comparou Ana Amélia.

O webinar debateu também a instituição do chamado Cadastro Positivo Fiscal, que cria critérios para distinguir os bons contribuintes. “O objetivo é aproximar cada vez mais o fisco do bom contribuinte, para que ele pague seus tributos mais facilmente, de forma mais eficiente e com menos contencioso”, resumiu a diretora do Getap.

Segundo Zabetta, a classificação dos contribuintes pode levar em conta critérios como a existência de débitos em aberto, o cumprimento de acordos de parcelamento, o risco de inadimplência e a entrega das obrigações acessórias exigidas pelo fisco. E as contrapartidas podem incluir benefícios como a permissão de autorregularização antes da aplicação de auto de infração, a celebração de negócio jurídico processual e a substituição de garantias. “Por que exigir garantia [para discutir um caso na Justiça] de um contribuinte que tem bom histórico de pagamento e que não apresenta risco de inadimplência?”, perguntou.

O procurador Grognet também defendeu a instituição do Cadastro Positivo, ressalvando que as vantagens oferecidas não constituem uma vantagem fiscal. “São benefícios que visam, em última análise, reduzir o custo das empresas com o contencioso”, afirmou.

Unificação dos tributos

Por fim, os participantes trataram do papel da reforma tributária na simplificação do sistema tributário e na redução dos litígios relacionados aos impostos sobre consumo. “Hoje, nós temos a União, 27 estados e 5.570 municípios com poder de legislar, cada um sobre o seu tributo, em razão da fragmentação da base de incidência e dos diversos impostos sobre consumo que existem no País”, pontuou o tributarista Breno Vasconcelos. Para ele, as Propostas de Emenda Constitucional que se encontram no Congresso (PECs 45 e 110), que propõem a unificação dos tributos sobre consumo, podem melhorar muito a segurança jurídica e reduzir os litígios entre o fisco e os contribuintes. “Simplicidade, obviamente, gera menos contencioso. Quando a regra é clara, quando você tem poucas regras, poucas exceções às regras, tem redução de contencioso”, justificou.

Zabetta concordou que a simplificação prevista nessas propostas pode trazer muitos benefícios ao País. Ao ser perguntada sobre o risco de que mudanças tão profundas como as previstas nas PECs gerem novos focos de contencioso, ela admitiu que essa possibilidade existe. “Você vai ter novos conceitos, novas atividades, o que, sem dúvida nenhuma, pode gerar novo contencioso”, comentou. “Não queremos mudar para chegar exatamente ao nível de contencioso que temos hoje.”

A diretora do Getap disse, no entanto, que é possível contornar esse perigo por meio de um bom trabalho legislativo no processo de aprovação da PEC no Congresso e na subsequente elaboração da legislação infralegal. “Para isso, é importante que a gente tenha a oportunidade de discutir exaustivamente os conceitos”, concluiu Zabetta.

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