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Contencioso administrativo tributário federal: diagnóstico e perspectivas

ARTIGO ESPECIAL: José Barroso Tostes Neto, secretário da Receita Federal do Brasil

Por José Barroso Tostes Neto
17/07/2020

O processo administrativo fiscal tem fundamento constitucional, uma vez que a Constituição Federal assegura a todos os cidadãos o direito ao devido processo legal e ao contraditório e à ampla defesa, tanto no processo judicial quanto no administrativo.

Sua utilidade vai desde possibilitar à Administração Tributária a revisão de seus atos administrativos, como o lançamento, até fornecer ao sujeito passivo um instrumento especializado e de amplo acesso para a solução de litígios tributários. Serve também de filtro ao Poder Judiciário, uma vez que as questões resolvidas em favor do sujeito passivo, em regra, não podem ser judicializadas.

Entretanto, como única porta de saída dos litígios tributários e com um arcabouço jurídico, na essência, de mais de meio século, o modelo atual do processo administrativo fiscal não apresenta a mesma efetividade observada no passado para resolver os problemas que se avolumam no contencioso tributário.
Nesse cenário, apresenta-se a seguir um diagnóstico da situação atual do contencioso administrativo tributário, suas causas e alternativas para o aperfeiçoamento do sistema.

Diagnóstico do modelo atual

O rito processual para solução de litígios tributários é regulado pelo Decreto nº 70.235/72, sendo composto por três instâncias julgadoras colegiadas.

Na primeira instância, de competência das Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJ), havia, em fevereiro deste ano, cerca de 267 mil processos à espera de análise, com tempo médio de permanência em contencioso de 948 dias. Quando se trata de processos prioritários (de contribuintes acima de 60 anos de idade ou com moléstia grave ou deficiência; acima de R$ 15 milhões; com representação fiscal para fins penais, entre outros), a temporalidade média é de cerca de 111 dias.

Os valores envolvidos nos processos em litígio na primeira instância administrativa equivalem a aproximadamente R$ 155 bilhões, entre processos de crédito tributário e de pedidos de restituição, ressarcimento ou compensação de tributos. A título de comparação, em fevereiro de 2019, o estoque de processos nas DRJ era de cerca de 261.000 processos, com permanência média de 969 dias.

A análise do estoque das DRJ revela que a grande maioria dos processos envolve baixos valores. São quase 70% dos processos com valores abaixo de R$ 60 mil, correspondendo a menos de 2% do montante total em litígio. O gráfico abaixo reflete a situação de fevereiro
de 2020:

A situação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), responsável pelos julgamentos em segunda instância e instância especial, não discrepa. Em números aproximados, são R$ 628 bilhões distribuídos em 116.400 processos em fevereiro de 2020, contra R$ 567 bilhões em 121.100 processos, em fevereiro de 20191.

Os processos de pequeno valor também representam o maior desafio para o Carf. Cerca de 61% do estoque atual são de processos abaixo de R$ 120 mil.
Em fevereiro de 2019, o Carf estimou o tempo para julgamento do estoque das Turmas Extraordinárias, que julgam processos de valor até 60 salários mínimos, em cerca de 6 anos, contra cerca de 1 ano na Câmara Superior de Recursos Fiscais e de 3 anos nas Turmas Ordinárias2.

Em suma, considerados apenas os órgãos julgadores administrativos, o montante em litígio perfaz o valor de R$ 783 bilhões. Isso significa 11% do PIB de 2019, equivalente a R$ 7,257 trilhões3.

O atual modelo do contencioso administrativo fiscal está esgotado e exige reformulação. O uso de ferramentas tecnológicas para automatizar o julgamento de processos, a centralização da gestão do acervo de processos aguardando julgamento em âmbito nacional, o fim da competência territorial das DRJs (atualmente, todas julgam processos de todo o país, respeitada a competência por matéria) e outras medidas gerenciais implementadas não foram suficientes para dar concretude ao princípio constitucional da razoável duração do processo4.

Os dados citados demonstram o alto grau de litigiosidade na seara tributária, o que não é uma exclusividade do contencioso administrativo. As execuções fiscais têm sido apontadas como o principal fator de morosidade do Poder Judiciário. Os processos de execução fiscal representam cerca de 39% do total de casos pendentes e 73% das execuções pendentes no Poder Judiciário, com taxa de congestionamento de 90% no ano de 2018. Isto é, de cada cem processos de execução fiscal que tramitaram no ano de 2018, apenas 10 foram solucionados5.

Causas do alto grau de litigiosidade administrativa

A intensa litigiosidade tributária é um fenômeno complexo, multifacetado, associado até mesmo a questões culturais. A complexidade da legislação tributária é a causa que mais se sobressai, mormente porque atrelada a uma série de obrigações acessórias dela decorrentes e à falta de previsibilidade das decisões administrativas e judiciais.

Ao lado disso, o processo administrativo fiscal também pode ser utilizado como meio de financiamento do débito tributário, o que acaba incentivando a litigiosidade. Sua longa duração possibilita o ingresso do sujeito passivo em inúmeros programas de regularização fiscal, os chamados “Refis”, para parcelar débitos de forma beneficiada.

Aliás, a prática reiterada de instituir programas de parcelamentos especiais tem sido um fator de estímulo ao não cumprimento espontâneo das obrigações tributárias, ao crescimento da litigiosidade e certamente uma causa importante do vertiginoso aumento do contencioso tributário administrativo e judicial.

Não obstante pressupor excepcionalidades para suas instituições, ao longo dos últimos 20 anos foram criados 76 programas de parcelamentos especiais, todos eles com expressivas reduções nos valores das multas, dos juros e dos encargos legais, prazos excessivamente longos para pagamento e, sem exceção, com baixos resultados efetivos na redução do passivo tributário.

O processo administrativo fiscal é ainda um processo gratuito, cujos débitos, corrigidos por juros simples, permanecem com exigibilidade suspensa ao longo do seu curso, permitindo a emissão de certidão com efeito de negativa. Nas hipóteses de possível repercussão na esfera criminal, a persecução penal fica ao aguardo da decisão definitiva no processo administrativo fiscal, a teor da Súmula Vinculante nº 24, do Supremo Tribunal Federal.

A decisão administrativa definitiva favorável ao sujeito passivo, em regra, é irreversível no âmbito judicial. De outro lado, se a decisão é favorável à Fazenda, a lide pode ser levada ao Poder Judiciário, sem que haja qualquer integração ou harmonização entre os processos administrativo e judicial, causando enorme desperdício de tempo, trabalho e custos.

Não bastassem todos esses aspectos a estimular a litigiosidade, a ausência de métodos alternativos de solução de litígios sobrecarrega os processos tributários.
Enfim, trata-se de um modelo sem precedentes no mundo quando comparado com outros países de maior competitividade global, que traz prejuízos tanto para o Estado como para a imensa maioria dos contribuintes.

Perspectivas para a melhoria do contencioso tributário

A melhoria do contencioso tributário passa por dois eixos principais de atuação: a prevenção à formação de novos litígios e a implementação de medidas visando à maior celeridade na solução dos litígios que surjam.

Prevenção de litígios

Sem dúvida, uma reforma tributária que implemente um sistema tributário mais simples, justo e uniforme possui um papel primordial na prevenção de litígios. Porém, por extrapolar a seara processual e pela sua complexidade, por ora esse assunto não será aprofundado.

Enquanto a reforma tributária não se concretiza, a Receita Federal tem buscado consolidar e sistematizar a legislação tributária e conferir maior agilidade na sua interpretação. Nesse sentido, foram editados vários atos normativos consolidando a legislação de tributos e revogando atos anteriores, como exemplificam o Regulamento do Imposto de Renda de 2018 e as IN RFB nos 1.700/2017, 1.911/2019 e 1.928/2020, tendo sido revogadas mais de uma centena de instruções normativas que não mais produziam efeitos. O tempo médio de permanência das soluções de consulta, por sua vez, foi reduzido de 261 dias em 2018 para 210 dias em 2019.

Outra iniciativa relevante é a promoção da conformidade tributária, visando ao incremento do grau de compliance. A Receita Federal objetiva incentivar e facilitar o cumprimento das obrigações tributárias, principais ou acessórias. Duas ações são complementares para a consecução de referido objetivo: a autorregularização e a simplificação das obrigações acessórias.

A autorregularização busca o cumprimento espontâneo da obrigação tributária, com a emissão de cartas e alertas e a realização de reuniões de conformidade, para que o contribuinte, antes do início do procedimento fiscal, possa regularizar pendências e inconsistências.

O exemplo mais conhecido é o da malha fiscal do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), que tem como resultado milhares de autorregularizações, evitando-se a instauração de procedimentos fiscais e de litígios subsequentes. O quadro abaixo revela o elevado número de autorregularizações relativas ao IRPF e o baixo quantitativo de autuações comparativamente às autorregularizações.

A Receita Federal instituiu também o Projeto Simplificação de Obrigações Acessórias, que contempla a aproximação com os Estados buscando-se o mapeamento e a eliminação de obrigações acessórias. Há ainda o objetivo de padronização dos leiautes de alguns módulos do Sistema Público de Escrituração Digital (Sped). Como resultado, vários Estados dispensaram obrigações tributárias acessórias em virtude da utilização da Escrituração Fiscal Digital de ICMS e IPI.

Implementação de medidas visando à maior celeridade na solução dos litígios

Tendo em vista que o contencioso administrativo tributário há anos não passa por uma reforma substancial, são inúmeras as possibilidades de avanço nesse campo, tais como: implementação de métodos alternativos de solução de litígios; arbitragem tributária como alternativa opcional ao julgamento feito pelo órgão administrativo; adoção de ritos diferenciados e simplificados conforme a natureza do processo; harmonização e/ou integração com o processo judicial; uniformização do marco normativo que vincula as instâncias administrativas; e emprego cada vez mais intensivo de tecnologia da informação, inclusive inteligência artificial, para a formação e julgamento de lotes temáticos e o auxílio na elaboração de decisões. A experiência de outros países, adaptada à nossa realidade, deve ser aproveitada.

Nesse contexto, recentemente foi aprovada pelo Senado Federal a Medida Provisória (MP) nº 899/2019, convertida na Lei nº 13.988 de 14 de abril de 2020, estabelecendo os requisitos e as condições para que a União e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio, nos termos do art. 171 do Código Tributário Nacional.

A referida Lei prevê a transação tributária na cobrança da dívida ativa da União e no contencioso administrativo tributário; quanto a este último, contempla a transação no tocante a litígios que envolvam relevante e disseminada controvérsia jurídica e a litígios de baixo valor. O modelo adotado guarda paralelo com o Offer in Compromise, utilizado pelo Internal Revenue Service dos Estados Unidos da América. Espera-se, assim, uma maior efetividade na arrecadação e a diminuição da excessiva litigiosidade, desafogando as instâncias julgadoras.

O texto sancionado também prevê rito diferenciado para o contencioso administrativo fiscal de pequeno valor, assim considerado aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere 60 salários mínimos. O julgamento passará a ser realizado em última instância pelas Delegacias de Julgamento, com vinculação aos entendimentos do Carf e aplicação subsidiária do Decreto nº 70.235/72.

Assim, à semelhança do que já ocorre nos juizados especiais federais, os processos de baixo valor terão rito simplificado e mais célere e o Carf terá uma redução do influxo desse tipo de processo, que constitui a maioria dos litígios.
Houve ainda a alteração no voto de qualidade (§ 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972), com a inserção por emenda ao texto da MP 899/2019 de dispositivo definindo que, em caso de empate no julgamento do processo, a resolução será favorável ao contribuinte. Esta medida certamente terá grande impacto no contencioso administrativo e, pelos amplos aspectos envolvidos, justifica ser objeto de outro artigo.

Conclusões

O exame das nuances do contencioso tributário pátrio evidencia a morosidade na solução de litígios e o acúmulo de processos e de crédito tributário, com enorme prejuízo para o Estado e a sociedade. Tal situação é comum aos contenciosos administrativo e judicial, dado o excessivo grau de litigiosidade da matéria tributária.

Apesar de os esforços empreendidos para a melhoria da gestão e o aumento da produtividade dos órgãos de julgamento terem produzido resultados extremamente significativos, o modelo atual do processo administrativo fiscal, por si só, não tem sido capaz de solucionar os litígios tributários com agilidade.

Assim, devem ser ampliadas as medidas para conferir maior celeridade à solução dos litígios e, principalmente, para prevenir a sua formação. Para além de uma reforma tributária que caminhe no sentido da simplificação tributária e da diminuição da litigiosidade, são necessárias medidas mais profundas no campo processual. Dentre outras, a adoção de métodos alternativos de solução de litígios, a arbitragem tributária como alternativa opcional ao julgamento feito pelo órgão administrativo, a implementação de ritos processuais diferenciados e a harmonização do processo administrativo com o judicial.
Nesse sentido, é alvissareira a recente aprovação da possibilidade de transação tributária e da instituição de rito processual simplificado para processos de pequeno valor, no âmbito da Lei nº 13.988/2020.

Fontes

1. http://idg.carf.fazenda.gov.br/dados-abertos/relatorios-gerenciais/2020/dados-abertos.pdf. Acesso em 27/03/2020.
2. http://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/situacao-do-atual-estoque-do-carf. Acesso em 27/03/2020.
3. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27007-pib-cresce-1-1-e-fecha-2019-em-r-7-3-trilhoes. Acesso em 27/03/2020.
4. O art. 24 da Lei nº 11.457/2007 estabeleceu prazo máximo de 360 dias para que as decisões administrativas sejam proferidas.
5. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em 27/03/2020.

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