REVISTA ETCO – EDIÇÃO 25
AGOSTO, 2020
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“É uma doença que não está sendo tratada corretamente”

O advogado Roberto Quiroga Mosquera diz que a principal causa do contencioso tributário no Brasil é a imprecisão e a falta de diálogo na aplicação das normas jurídicas

Revista ETCO
20/07/2020

O advogado Roberto Quiroga Mosquera, sócio especialista em Direito tributário do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr e Quiroga Advogados, de São Paulo, considera que há um desequilíbrio na balança entre os excessos cometidos pelo Estado e a má interpretação ou a má-fé por parte dos contribuintes. “Eu diria que 70% do problema é originado dos exageros do Estado e a responsabilidade por 30% é dos contribuintes”, avalia Quiroga, que é também professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e do Mestrado Profissional da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV). Para ele, a resolução do problema depende, acima de tudo, de uma decisão política do governo – tanto para lidar com o passivo acumulado quanto para evitar que esse montante continue crescendo ano após ano.

A seguir, trechos da entrevista.

Maior parte são valores irrecuperáveis

Certamente é assustador o montante do contencioso tributário no Brasil, R$ 3,3 trilhões, equivalente à metade de um PIB anual, mas é preciso ter em mente que não se trata de um número real. Algo entre 60% e 80% desse valor é irrecuperável, pois está atrelado a empresas quebradas, falidas, sem bens que possam gerar qualquer expectativa de recuperação dos créditos. É enganoso, então, pensar que há R$ 3,3 trilhões a receber. Na realidade, talvez haja R$ 1 trilhão, ou nem isso. Seria importante o governo fazer uma grande revisão e admitir que jamais vai receber boa parte desses valores, deixando a partir disso de investir tempo e dinheiro nos casos perdidos para priorizar aqueles em que há a perspectiva real de receber. Essa revisão poderia contribuir muito para reduzir a duração dos processos envolvendo contencioso tributário, que tem sido, em média, de dez anos.

Muitas normas dúbias

O Brasil arrecada cerca de R$ 1,4 trilhão em tributos federais por ano e vem gerando R$ 150 bilhões ao ano de contencioso tributário. Ou seja, mais de 10% da arrecadação. É uma proporção muito alta. Esses números são como uma febre, indício de uma doença que não está sendo tratada corretamente. E quais são as causas que precisam ser atacadas com urgência? A principal é que temos uma legislação dúbia, em que o contribuinte fica sujeito a interpretações diversas, sem que o governo consiga oferecer uma estrutura adequada de esclarecimento dessas interpretações. Além da imprecisão, há também uma quantidade enorme de normas. Acompanhar tudo isso sem estar sujeito a equívocos, ou a interpretações diferentes por parte da fiscalização, é praticamente impossível.

Falta diálogo

Há uma distância muito grande, no Brasil, entre os contribuintes e o governo. O governo assume uma posição extremamente fiscalista. Em outros países, as empresas têm a oportunidade de apresentar previamente à Receita o que estão pretendo fazer em termos fiscais e checar se os planos estariam corretos. Há também a possibilidade de um contribuinte conversar com a fiscalização, argumentar, apresentar outro ponto de vista, sem que as diferentes interpretações necessariamente se transformem em disputas na Justiça. Aqui há um desequilíbrio muito grande de forças e quase nenhum esforço para fazer um trabalho preventivo. Falta diálogo, em síntese. Esse distanciamento tem provocado, inclusive, um aumento nas autuações que envolvem questões penais e acabam sendo levadas à esfera criminal.

Abuso de autoridade

Não há qualquer punição no Brasil para um fiscal que se equivoca ou exagera na aplicação da norma tributária. Na ausência de uma orientação geral mais clara, os fiscais acabam tendo visões diferentes, interpretações próprias das normas. O problema é que qualquer autuação causa um grande transtorno à empresa, pois é preciso acionar uma estrutura de defesa e apresentar garantias para levar a contestação adiante. Quando fica comprovado que se tratou de um erro da fiscalização, nada acontece para o Fisco. O ônus está todo concentrado em um só lado. O governo tem a prerrogativa da autotutela em questões tributárias – ou seja, pode cobrar diretamente do contribuinte quando acha que deve –, mas não deveria abusar desse direito, algo que infelizmente vemos com frequência no País. Aliás, já que estamos em meio a uma discussão sobre abuso de autoridade, um bom tema para incluir no debate é a forma equivocada como os fiscais agem muitas vezes, protegidos pela certeza de que não haverá qualquer tipo de punição.

Decisão política

Uma evolução positiva no quadro do contencioso tributário no Brasil depende de uma decisão política que precisa partir do governo – mais precisamente, do Ministério da Fazenda. É preciso avaliar a fundo o quadro e planejar ações para lidar com o montante acumulado e, ao mesmo tempo, reduzir a geração de novos passivos. É uma discussão delicada, especialmente num momento de déficit público, com o governo gastando mais do que arrecada, mas é uma discussão necessária. Deve-se ter em mente que facilitar a vida das empresas será bom para a economia do País. Muitas delas estão se sentindo acuadas. Hoje, 80% das autuações do Fisco estão concentradas em um grupo de aproximadamente 8 mil empresas. Certamente é uma questão de praticidade fiscalizar as maiores arrecadadoras, é mais fácil ir lá e pegar os ovos de ouro, mas é preciso tomar mais cuidado para não matar as galinhas que produzem esses ovos.

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