“Faz sentido hoje lançamentos abrangendo períodos de cinco anos?”
A tributarista Rita Bacchieri, vice-presidente do Carf, defende caminhos para evitar dívidas tributárias impagáveis
Rita Eliza Reis da Costa Bacchieri é uma das conselheiras que representam os contribuintes nos julgamentos do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), por indicação da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Desde fevereiro de 2020, acumula o cargo de vice-presidente do Carf. Em sua visão, o alto nível de contencioso verificado no Brasil reflete problemas como a complexidade do sistema tributário, a baixa qualidade das normas, a lentidão no julgamento de temas controversos e os altos valores dos lançamentos. Segundo ela, autuações referentes a períodos de cinco anos, que somam tributos, juros e multas, muitas vezes atingem cifras que inviabilizam a manutenção da atividade econômica das empresas.
Para reduzir a complexidade, ela acredita no caminho da reforma tributária. E defende medidas pontuais para evitar dívidas impagáveis, como permitir a regularização do débito antes do lançamento e reduzir os períodos para a realização de fiscalização, tendo em vista as modernas ferramentas de que o Fisco dispõe hoje para identificar rapidamente eventuais irregularidades por parte dos contribuintes.
Mais detalhes na entrevista a seguir.
Dívidas que surgem já impagáveis
É inegável que a complexidade do sistema tributário é o grande causador dos litígios. Também temos normas de baixa qualidade, com redação ruim, e muitas vezes a interpretação quanto aos seus conceitos e efeitos só surgem depois de muitos anos.
Considerando o prazo decadencial de cinco anos, quando se verifica uma conduta incorreta por parte do contribuinte, em geral, ela enseja automaticamente um passivo elevado e, considerando o porte médio das empresas brasileiras, impagável. Esse cenário gera insegurança jurídica, afastando investimento e, muitas vezes, estimulando a migração das empresas menos estruturadas para a informalidade.
O aumento do contencioso também está relacionado ao aperfeiçoamento dos instrumentos de fiscalização, que facilitou a constatação de desvios ou práticas passíveis de discussão, elevando o volume de autuações.
Baixa efetividade na cobrança dos valores em contencioso
Dentro do tripé de fiscalização, contencioso e arrecadação, o que sempre me surpreende são os números sobre o recebimento dos valores e o confronto entre o crédito tributário principal e os demais valores atrelados à cobrança. Cito como exemplo a situação do estado de Minas Gerais. Segundo levantamento feito pelo Tesouro Nacional, entre 2009 e 2017, foram arrecadados cerca de R$ 5,1 bilhões em receitas de dívida ativa. Entretanto, em março de 2019, segundo a administração tributária de Minas, ainda havia R$ 65,4 bilhões registrados em dívida ativa no Estado, sendo que R$ 14,3 bilhões eram referentes ao tributo em si e o restante às multas e juros.
Para mim, esses dados, assim como os efeitos observados dos reiterados programas de parcelamentos de débitos criados por União, estados e municípios, mostram que o modelo atual de contencioso tributário talvez não esteja sendo efetivo do ponto de vista da arrecadação. A situação acende um alerta sobre a necessidade de repensarmos a forma de cobrança do crédito tributário.
Reforma tributária e medidas pontuais
Para reduzir o problema do contencioso, é necessário simplificar a legislação, o que passa pela realização de uma reforma tributária nesse sentido. Em termos mais práticos, alguns pontos me parecem importantes. Os programas de parcelamento trazem efeitos inegáveis, levando muitos contribuintes a desistir das discussões administrativas e judiciais em troca da possibilidade de pagar os débitos com expressivos descontos de juros e multa.
Observando esse comportamento, tenho a impressão de que se, antes do lançamento, fosse dada ao contribuinte a oportunidade de explicar ou mesmo apresentar denúncia espontânea, talvez nem todos os lançamentos fossem necessários. Isso foi percebido em relação ao Imposto de Renda da Pessoa Física e a criação da malha fiscal.
Outro ponto diz respeito ao período de fiscalização. Diante da evolução tecnológica e da sofisticação dos seus processos, será que ainda faz sentido o Fisco realizar lançamentos abrangendo períodos de cinco anos?
Sei que há de fato a discussão das teses, e essas são essenciais, mas minha opinião passa pela constatação de que muitos contribuintes optam pelo contencioso simplesmente por não possuírem recursos financeiros para adimplir um lançamento cujo valor – elevado em razão da extensão do período de apuração, dos juros e multa – impacta a manutenção da atividade produtiva.
O papel de tribunais administrativos como o Carf
O Carf é hoje um órgão extremamente técnico, embora as críticas ainda sejam comuns, em especial sobre a capacidade dos conselheiros representantes dos contribuintes. Mas é senso comum entre aqueles que ali atuam que a qualidade e o comprometimento dos julgadores são inquestionáveis.
Ter um tribunal administrativo forte e altamente capacitado é importante. Primeiro, porque, caso o litígio seja encaminhado para o Judiciário, ele chegará mais maduro, facilitando a tomada de uma decisão mais coesa para a sociedade. Segundo, porque as decisões reiteradas do tribunal podem se tornar fonte de direito, evitando a multiplicação de autuações.