REVISTA ETCO – EDIÇÃO 25
AGOSTO, 2020
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“Não adianta atacar só os sintomas, precisa tratar as causas”

A tributarista Vanessa Canado, assessora especial do ministro Paulo Guedes na elaboração no projeto de reforma tributária do governo federal, defende uma reforma ampla para resolver as razões mais profundas do contencioso

Revista ETCO
20/07/2020

A professora de Direto tributário Vanessa Canado é um dos principais nomes responsáveis pela elaboração do projeto de reforma tributária do governo federal, atuando como assessora especial do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ela entende que a gravidade do contencioso tributário brasileiro não tem paralelo no mundo. Atribui o problema à complexidade do nosso sistema de impostos. E defende que o País busque soluções profundas e de longo prazo, não se contentando com medidas paliativas. Mas suspeita que as condições para a reforma tributária necessária não estejam suficientemente maduras.

A seguir, trechos da entrevista.

Gravidade observada em pesquisas e conversas com investidores

A proporção de contencioso sobre o PIB, tanto no estudo do ETCO quanto em pesquisa do Insper, da FGV e do CCiF, é astronomicamente superior à mediana dos demais países. Essa tem sido também uma reclamação constante de investidores e empresas que atuam no Brasil. No passado, o debate sobre reforma tributária era centrado no tamanho da carga. Nos últimos anos, passou a ser a melhora na relação Fisco-contribuinte. Quando você olha o balanço das empresas abertas, chama muita atenção o contencioso tributário, que é elevado até comparativamente ao contencioso trabalhista. Eu participo de muitos seminários internacionais, estive este ano no G-20 e noto que esse não é um problema relevante lá fora, mas uma questão bastante doméstica.

O problema é a complexidade do nosso sistema

Embora tenhamos um sistema duplo de julgamento do contencioso – administrativo e judicial – que não é muito comum no mundo; embora o processo seja demorado; embora muitas vezes haja também julgamentos tendenciosos; isso tudo não me parece ser um diagnóstico da causa do problema.

Não tenho nenhuma dúvida de que a causa do contencioso é o desenho equivocado do sistema tributário, desde o sistema constitucional tributário, que, por exemplo, separou a tributação do consumo, dando ensejo a essa causa bilionária do STF, de exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS-Cofins, até chegar às regrinhas de substituição tributária e margem de valor adicionado no ICMS, que muda de produto a produto, de estado a estado.

Com essas inúmeras regras, é óbvio que vai existir sempre mais de uma interpretação possível, que é onde surgem os conflitos entre o Fisco e os contribuintes. Isso é uma bola de neve que pode até diminuir de tempos em tempos, com os programas de refinanciamento de dívidas, com as forças-tarefa do Carf para diminuir o estoque de contencioso, só que isso é um pouco como enxugar gelo – não estanca o problema.

Erros de diagnóstico e soluções paliativas

Vejo muitas pessoas dizerem que uma das causas do contencioso tributário é o fato de que pagar imposto no Brasil dá muito trabalho. Mas por que pagar imposto dá muito trabalho? Porque temos um monte de impostos, um monte de regimes diferentes, um monte de bases de cálculo, um monte de alíquotas. Me preocupa fazer um diagnóstico apressado e superficial e adotar medidas que não vão resolver o problema. Embora seja possível dar soluções mais paliativas e que melhorem o ambiente de negócios agora, é importante que essas soluções paliativas venham acompanhadas das soluções de longo prazo.

Reduzir os tratamentos diferenciados

O que geralmente acaba com o contencioso é eliminar diferenças, ou seja, um sistema tributário mais homogêneo, em que haja uma carga tributária mais moderada para todo mundo e menos tratamentos diferenciados.  Um exemplo é a PLR (Participação nos Lucros ou Resultados), que não paga tributação de folha e é hoje um dos maiores contenciosos na tributação da folha. O que as pessoas discutem? Se é ou não é PLR. Então, a partir do momento em que se cria essa diferenciação no sistema tributário, cria-se contencioso. Geralmente, trazer regras mais detalhadas não acaba com o contencioso, mas cria mais pontos para serem interpretados.

A questão ainda precisa amadurecer

Embora a discussão sobre a reforma tributária seja antiga, ela só está sendo debatida mais profundamente com a sociedade recentemente, de cinco, dez anos para cá. Ainda é preciso amadurecer muito essa discussão. Existe essa coisa natural do ser humano, dos medos das mudanças profundas, as pessoas tendem a insistir em medidas mais pontuais. Acho que isso é normal, é uma coisa de todos os países, por isso que a discussão demora. Demora para aprofundar, demora para amadurecer. Tenta-se uma medida pequena e se vê que não funciona, aí uma hora as pessoas vão perceber que precisa entrar em alteração mais profunda além das questões pontuais.

Enquanto não temos a reforma ideal

Se não se consegue fazer uma reforma tão ampla, que sejam afastados pelo menos os principais problemas do sistema atual. Vou dar um exemplo. No caso do PIS-Cofins, as principais causas estão relacionadas basicamente a dois assuntos: a questão da exclusão do ICMS e do ISS da base de cálculo; e a questão dos créditos: o que dá direito de crédito, o que não dá direito de crédito. Se não se consegue fazer uma reforma da tributação do consumo que de algum modo unifique os impostos, pelo menos é possível endereçar esses dois problemas.

O que eu proponho é: claro que existe uma reforma ampla que vai trazer um impacto muito maior, mas dá para fazer algumas alterações pontuais partindo de uma hierarquia. Então, pode-se fazer um diagnóstico olhando do maior contencioso para o menor, olhar o que deu ensejo àquele problema e atacar aos poucos. Não precisa ser uma reforma do sistema como um todo, de uma vez só.

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