REVISTA ETCO – EDIÇÃO 27
DEZEMBRO, 2021
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“Nossos valores éticos, já tão frágeis, estão em processo de degradação”

Everardo Maciel, consultor tributário, foi secretário da Receita Federal entre 1995 e 2002 (governos FHC), é presidente do Conselho Consultivo do ETCO

Por Everardo Maciel
23/11/2021

“A ética permeia todas as relações dentro do Estado e na sociedade. Nós nunca tivemos no Brasil uma estrutura de valores sólida, que pudesse formar uma conduta ética permanente. Mas percebo que nossos valores éticos, já tão frágeis, estão em um processo acentuado e contínuo de degradação no Estado e na sociedade. Há vários exemplos.

Na Constituição de 1988, estabelecemos um teto de remuneração para os agentes públicos. Mas todos os dias se encontra uma forma de burlar isso, por meio de remunerações específicas, como auxílio moradia ou diárias de viagem no Judiciário, no Ministério Público e até mesmo no Poder Legislativo. Todas elas tratadas como indenização – o que é ainda mais grave, porque não se sujeita ao Imposto de Renda. Quando o Estado faz esse tipo de concessão, tem repercussão sobre o comportamento de toda a sociedade.

Criam-se as cotas de representação parlamentar e dia após dia se apresentam casos envolvendo práticas muito pouco virtuosas, algumas com nomes peculiares, como “rachadinhas”. No Senado e na Câmara, abre-se espaço para assessores não concursados para funções que deveriam ser prestadas por assessoria profissional. É a prática do compadrio.

Nos processos orçamentários, foram criadas as emendas parlamentares, que são uma forma de tomar dinheiro público, muito frequentemente para atos de corrupção. Antes, existiam as emendas individuais e de bancada e agora foram instituídas as Emendas de Relator, envolvendo valores entre R$ 16 e R$ 20 bilhões, que não se sabe para quem vão. Essas são, também, evidências robustas da vigente anarquia orçamentária.

Há tempos, foi criada uma expressão terrível: o ‘rouba, mas faz’. Pouco importa se o agente público está roubando, importa que ele faz alguma coisa para mim. Isso é sintoma de um valor degradado. E, quando isso se amplifica, reproduz o conceito criado pela grande pensadora Hannah Arendt: a banalização do mal. Ninguém acha errado. Quase todos acham normal.

Elisão fiscal no mundo e no Brasil

Dados obtidos por jornalistas investigativos da organização ProPublica e divulgados em abril pelo The New York Times e pelo The Guardian, extraídos de forma não necessariamente lícita do IRS (a Receita Federal dos Estados Unidos), mostram que 24 das maiores fortunas americanas pagaram uma alíquota efetiva média de Imposto de Renda de 3,4% entre 2014 e 2018. Um deles teve num determinado ano um acréscimo patrimonial de US$ 18 bilhões e não só não pagou um centavo de imposto, como pediu, acintosamente, uma restituição de US$ 4 mil dólares. Parece mais um deboche.

Aqui, uma pessoa física que faz uma aplicação em um fundo de investimento no Brasil recolhe imposto. Porém, se ele o fizer em um paraíso fiscal, não paga imposto. Que comportamento eu estou induzindo? “Aplique no paraíso fiscal, que é melhor do que fazer aqui.” Mas só quem consegue aplicar no paraíso fiscal são as grandes fortunas. É um foco de regressividade ostensivo.

As trincheiras do ETCO

O ETCO representa uma trincheira muito especial na defesa de um ambiente de negócios justo, em que prevaleça a competição e não a esperteza, e no enfrentamento de problemas da ética concorrencial, sobretudo aqueles que decorrem da tributação. O êxito tem sido parcial, porque existem interesses poderosos antagônicos e também porque apreciamos o autoengano.

Um exemplo é o descaminho, o contrabando, no setor de tabaco, que decorre da crença de que aumentar a carga tributária vai reduzir o consumo. Ninguém consegue. Não estou defendendo o tabagismo, mas o meu raciocínio é o seguinte: o que não deve ser feito deve ser proibido, sem uso de mecanismos indiretos para induzir determinados comportamentos.

No século 18, criou-se a figura dos sin taxes – os chamados impostos do pecado. Eram tidos como pecado: tabaco, bebida alcoólica e o jogo. Então era lícito beber, fumar e jogar, até mesmo imoderadamente, desde que pagasse o imposto. Assim, o pagamento do imposto promoveria a remissão desses pecados, o que é a hipocrisia levada ao extremo.

Há também o problema dos devedores contumazes, que criam negócios não como um instrumento para produzir ou comercializar seus produtos, mas para acumular riqueza com o não pagamento de impostos. Em 2003, por iniciativa do ETCO, nós conseguimos introduzir o artigo 146-A na Constituição, que enfrenta esse problema. Entretanto, não se conseguiu avançar na criação da necessária lei complementar. O projeto se encontra no Senado Federal [PLS 284/17], mas avança a passos muito lentos, porque poderosas forças se opõem à sua aprovação.

Da indignação à mudança

Charles de Gaulle dizia que indignação não é um valor. Mas é um bom começo. A indignação conduz à conscientização, que conduz à convicção. Só quando a indignação conseguir fluir dentro da sociedade brasileira é que vai haver uma consistente defesa de valores éticos. É difícil? Sim. Problemas culturais têm solução difícil. Mas o fato de ser difícil não deve servir como desestímulo ou desesperança. Apenas como um obstáculo sério a enfrentar, contra o qual deve mover-se essa indignação consciente.”

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