“Chegamos a um nível insustentável de litígios”
A advogada Raquel Novais defende a adoção de sistemas de solução de conflitos, a exemplo da transação e da arbitragem tributárias, como ações prioritárias para reduzir o contencioso
Sócia da área tributária do escritório Machado Meyer Advogados, Raquel Novais é especialista em consultoria tributária de estruturação e resolução de conflitos fiscais técnicos de alta complexidade. Formada pela Faculdade de Direito de Franca, com mestrado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sua atuação envolve a tributação de setores regulamentados, como os de recursos naturais e energia.
A advogada chama a atenção para a “cultura de desconfiança” que predomina na relação entre o Fisco e os contribuintes, agravada pelo fato de que os mecanismos de soluções de conflitos são insuficientes – daí a necessidade de desenvolver alternativas como a transação e a arbitragem.
Ela lembra também que, no passado, muitas das cobranças exorbitantes eram canceladas já nas instâncias administrativas, o que foi gradualmente deixando de ocorrer. “A impressão de perda de imparcialidade tira a eficácia das decisões e direciona as disputas para a revisão pelo Poder Judiciário”, avalia.
Leia os principais trechos da entrevista.
Há algo de muito errado no nosso sistema
O nível de contencioso que o Brasil alcançou é insustentável. Nenhuma sociedade pode conviver com tanta energia investida na disputa tributária. Os reflexos deste quadro para a economia são visíveis. Num ambiente em que não há segurança jurídica sobre a incidência de tributos, a possibilidade constante de litígios afugenta investimentos, ainda mais num cenário global de grande competição para atrair esses investimentos.
São litígios que envolvem valores extremamente expressivos. Os autos de cobrança exorbitantes, e que exigem encargos de defesa altíssimos por conta das garantias exigidas na fase judicial, indicam que existe algo de muito errado em nosso sistema.
Falta confiança entre o Fisco e os contribuintes
Entre as causas mais relevantes para que tenhamos chegado ao atual nível de contencioso no País, a principal é sem dúvida a complexidade do nosso sistema tributário.
Não existe outro país com um sistema tão complicado. Isso gera incerteza e insegurança no que diz respeito à aplicação das normas tributárias. Há também a falta de confiança, de parte a parte, entre o Fisco e o contribuinte, o que fortalece a cultura do litígio. Os mecanismos de soluções de conflito são insuficientes.
O nível de cancelamento de autos de infração nas instâncias administrativas, que no passado punham termo a grande parte das cobranças exorbitantes e sem substrato, caiu muito.
Os tribunais administrativos mantêm a sua importância, mas, para a grande maioria dos temas representativos (notadamente, os de alta indagação jurídica), não tem sido infrequente a chancela das autuações, transferindo para o Judiciário a responsabilidade pelo efetivo controle de legalidade.
A impressão de perda de imparcialidade tira a eficácia das decisões e direciona as disputas para a revisão pelo Poder Judiciário, notoriamente assoberbado. Esse movimento tende a agravar cada vez mais os números do contencioso e, em última análise, o próprio índice de recuperabilidade dos créditos tributários por parte da Fazenda Pública.
As leis devem ser pilares da pacificação
Há provavelmente quem imagine que a situação de alto contencioso seja positiva para os escritórios de advocacia e para a categoria dos advogados tributaristas, mas não é.
O crescimento do País gera muito trabalho para a advocacia, e esse é um tipo de trabalho positivo, desafiador: criar soluções, ter ações propositivas em setores em desenvolvimento, ver os negócios acontecendo, com soluções tributárias que são fundamentais para a segurança.
Eliminar o litígio é utópico. Mesmo as jurisdições com excelente reputação de bom relacionamento entre Fisco e contribuinte enfrentam o litígio. Mas ele deve ser limitado; apenas o necessário para compor em assuntos limitados.
Os demais mecanismos, a começar pela própria lei, seguida de uma comunicação ágil e imparcial entre o Fisco e os contribuintes, deveriam ser os pilares da pacificação.
É preciso criar mecanismos de negociação
Em meio a um cenário tão complexo, certamente não há apenas uma medida de solução. Mas uma que terá impacto favorável para amenizar o problema é a transação tributária, prevista no Código Tributário Nacional de 1966 e jamais regulamentada [até a apresentação da MP 899/2019, ou MP do Contribuinte Legal, convertida na lei nº 13.988/2020, que foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em abril].
O mecanismo da transação permite às partes a solução de conflitos mediante concessões recíprocas e reguladas. Será um mecanismo adicional na solução de conflitos, que poderá contribuir para a redução do montante em litígio.
A instituição de outros mecanismos alternativos de solução de conflitos, como a arbitragem tributária, também seria importante. Há grandes discussões quanto à aplicação da arbitragem no Direito tributário. A meu ver, essa alternativa teria enorme potencial para reduzir o volume de processos no Poder Judiciário, de forma mais rápida e mantendo o nível de imparcialidade que garante a eficácia das soluções finais.