REVISTA ETCO – EDIÇÃO 25
AGOSTO, 2020
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“Se nada for feito, vai piorar”

Tributarista Everardo Maciel, presidente do Conselho Consultivo do ETCO, discute as causas e apresenta soluções para a patologia do processo tributário brasileiro

Revista ETCO
20/07/2020

Na avaliação do tributarista Everardo Maciel, presidente do Conselho Consultivo do ETCO, o problema do contencioso tributário tende a piorar se as lideranças do País não se conscientizarem de sua gravidade. Em sua opinião, a questão é árida e os políticos preferem temas que dão mais visibilidade, como a mudança no modelo de impostos. “É flagrante a dimensão, a magnitude, a persistência, a disfuncionalidade, enfim, a patologia do processo tributário no Brasil”, diz.

As soluções, no entanto, não lhe parecem tão difíceis de alcançar, desde que partam do diagnóstico correto. Com a experiência de quem comandou a Receita Federal durante os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002, ele aponta três grandes fontes de litígio que precisam ser enfrentadas: a excessiva liberdade do Fisco para interpretar as normas tributárias e autuar os contribuintes; as intermináveis demandas judiciais, promovidas por contribuintes, sobre a constitucionalidade de normas tributárias, no âmbito do que ele denomina “indústria das teses”; e a falta de clareza de alguns conceitos legais que provocam grandes disputas judiciais.

Nesta entrevista, ele explica os três problemas e apresenta as soluções que defende para cada um deles. Sua adoção, segundo Everardo, teria o efeito de fechar a torneira que inunda os órgãos de julgamento administrativos e judiciais de novos processos o tempo todo. Mas seria necessário resolver também o problema do elevado estoque de contencioso já formado – e para essa questão ele também apresenta uma proposta: permitir o uso de precatórios, créditos e prejuízos acumulados para liquidar dívidas tributárias inscritas em dívida ativa.
A seguir, os principais trechos da entrevista.

Revista ETCO: O contencioso tributário federal cresceu em cinco anos do equivalente a 42,7% para 50,4% do PIB, segundo pesquisa feita pela consultoria EY para o ETCO. O que esperar para o futuro?

Everardo Maciel: Se nada for feito, inevitavelmente, vai piorar. É isso o que vem acontecendo sistematicamente ao longo do tempo. Acho que não existe ainda uma consciência muito clara sobre a natureza e a dimensão do problema. Esse tema não tem visibilidade política. É mais charmoso, mais elegante falar sobre a criação de um novo imposto, alegando que é adotado em países desenvolvidos, do que falar em reformas processuais, por ser um tema muito árido e técnico e, por isso, de difícil assimilação. Elas não têm, por conseguinte, o necessário apelo político para que possam prosperar.

O nosso principal problema tributário é o processo. Qualquer que seja o sistema tributário, no aspecto material, se o processo for disfuncional, não vai dar certo. É claro que a incidência dos tributos, portanto, a competência tributária, é matéria importante. Mas a mais relevante é o processo. Especialmente no caso brasileiro, onde é flagrante a dimensão, a magnitude, a persistência, a disfuncionalidade, enfim, a patologia do processo tributário.

Quais as razões do alto nível de litígios tributários no Brasil?

Everardo Maciel: A litigiosidade tem dois aspectos a destacar. Primeiro, a origem do litígio: por que ele surge? Segundo, a resolução: como liquidar o litígio gerado? Vamos começar pela questão da origem. O litígio tributário tem basicamente três fontes: o Fisco, o contribuinte ou o conceito. O Fisco é fonte de litígio especialmente porque inexistem limites para os lançamentos de ofício. Se não existem restrições à lavratura de autos de infração, eles vão ocorrer. Porque o Fisco pode fazer qualquer autuação, sem que exista custo caso seja insubsistente. É o que chamo “lançamento sem ônus”.

Em relação à segunda fonte de litígios, o contribuinte, a razão está relacionada com o nosso modelo de controle de constitucionalidade das matérias tributárias. Mais especificamente, com o controle difuso, que permite a qualquer contribuinte entrar na Justiça para arguir a constitucionalidade de uma norma.

Por que o controle difuso alimenta tanto a litigiosidade?

Everardo Maciel: Porque nossa Constituição contém uma extensão amazônica de matéria tributária. Para ter uma ideia, o capítulo sobre tributação tem mais que o dobro de palavras que toda a Constituição dos Estados Unidos, que não tem nem sequer uma palavra sobre tributos, ou seja, o contribuinte tem amplo espaço para questionar a matéria tributária no aspecto constitucional. Então, um contribuinte entra na Justiça contra determinada matéria e logra êxito na primeira instância. Seu concorrente ingressa com uma ação idêntica em outro juízo, mas perde. E ambos percorrem um longo caminho pela via recursal até o Supremo Tribunal Federal encerrar a questão, o que costuma demorar de dez a vinte anos. E nesse período o que perdeu tem que seguir recolhendo os tributos e o que venceu, não, numa clara ofensa ao princípio constitucional da isonomia tributária. E isso se faz acompanhar daquilo que eu chamo de “indústria das teses”, um termo elegante que implica tentar descobrir qualquer coisa que exista do lado do contribuinte em relação à qual se possa arguir inconstitucionalidade e, no final, ele não pagar os impostos. Isso no Brasil se tornou uma indústria.

E a terceira fonte do contencioso, os conceitos?

Everardo Maciel: São concepções muito indeterminadas ou ambíguas presentes na legislação tributária, que facultam, especialmente por parte do Fisco, a geração de litígios. São conceitos que têm, para usar uma expressão do meu amigo e companheiro do ETCO, professor Hamilton Dias de Souza, “baixa densidade normativa”. A rigor, não são muitos os casos realmente importantes. Entendo que existem três bastante relevantes e que merecem uma solução: o planejamento tributário abusivo, o ágio [valor que pode ser abatido do Imposto de Renda quando uma empresa adquire outra por valor superior ao de seu patrimônio líquido] e a hipótese de multa substitutiva de perdimento no caso de interposição fraudulenta no comércio exterior [punição severa que o Fisco aplica ao enquadrar como fraude o uso de intermediários em operações de importação e exportação]. São matérias extremamente relevantes na constituição de litígios, mas note: nenhuma delas guarda relação com a natureza do imposto.

Até aqui, falamos apenas da origem dos litígios. Mas o senhor disse que o contencioso elevado se deve também ao nosso sistema de resolução das
disputas. O modelo atual precisa ser reformado?

Everardo Maciel: A resolução do litígio tem a ver com todos os procedimentos administrativos que existem para resolvê-lo – e o nosso modelo precisa de uma ampla reforma. Mas se eu fosse estabelecer uma hierarquia de importância, diria que resolver as causas que dão origem aos litígios é mais importante do que consertar os procedimentos de resolução, porque, me permita usar uma expressão do cotidiano, é inútil ficar enxugando o chão com a torneira aberta. Se o processo na sua origem continua descontrolado, por melhor que seja o modelo que eu venha a adotar para a resolução dos conflitos, ele será ineficaz pelo volume de litígios gerado. Frequentemente, quando se tenta tratar desse assunto no Brasil, vejo alguma atenção à resolução do litígio, mas quase nenhuma atenção à geração do litígio.

Como resolver esses problemas?

Everardo Maciel: Em relação aos litígios originários da administração tributária, acredito em uma solução que procure ajustar aos dias de hoje ideias que foram apresentadas nos anos 1960 e 1970 por grandes tributaristas, como Rubens Gomes de Souza, Gilberto de Ulhôa Canto, Geraldo Ataliba e Gustavo Miguez de Mello. Consiste na integração do processo tributário administrativo com o judicial, que possibilite à parte vencida no contencioso administrativo recorrer diretamente à segunda instância do Judiciário: o Tribunal Regional Federal, no caso de tributos federais, ou o Tribunal de Justiça, no caso de tributos estaduais e municipais.

Significa eliminar a primeira instância do Judiciário?

Everardo Maciel: Não necessariamente. Se o contribuinte não quiser entrar pela via administrativa, pode entrar pela via judicial, como aliás é hoje. Mas ambas acabariam direcionadas para o mesmo lugar. Porque o recurso, tanto administrativo como judicial de primeira instância, desaguaria no tribunal.

Quais são as principais implicações dessa integração?

Everardo Maciel: Primeiro, elimina a restrição que hoje impede a administração tributária de recorrer à Justiça quando perde o processo no âmbito administrativo. Segundo, obriga o perdedor a pagar sucumbência [os gastos que a parte vencedora teve com o processo]. E tendo sucumbência, passa a haver agora um limite ao lançamento, porque se o lançamento for insubsistente, haverá custo para o Estado. Assim, faz combinar autoridade com responsabilidade e previne abusos de lançamento.

Terceiro, permite eliminar a exigência atual de o contribuinte efetuar depósitos ou apresentar garantias para discutir o débito na Justiça, algo que é muito oneroso para as empresas.

E, quarto, a integração do processo possibilita substituir a execução judicial pela cobrança estritamente administrativa do crédito tributário. Isso teria um efeito extraordinário no funcionamento do Judiciário. O Brasil tem hoje cerca de 80 milhões de ações em curso na Justiça. Desse total, em torno de 31 milhões, ou seja, 38% correspondem a ações de execução fiscal. Já imaginou o que significa tirar todo esse peso do Judiciário? Seria uma mudança quase que revolucionária do ponto de vista do funcionamento da Justiça brasileira.

Existe proposta nesse sentido em discussão no País?

Everardo Maciel: Já se tentou fazer avançar isso no Senado Federal com a Proposta de Emenda Constitucional nº 112, de 2015, que teve origem na Operação Zelotes e na chamada CPI do Carf. Essa PEC, no entanto, não prosperou, sendo arquivada, aparentemente, pela nossa tendência de não tratar de matérias com um pouco mais de densidade técnica, apesar da sua relevância. Mas as linhas gerais dessa ideia estão lá montadas.

Seria necessário mudar a estrutura do órgão que cuida do contencioso administrativo, certo?

Everardo Maciel: Sim. Para que haja essa integração e a possibilidade de revisão da decisão administrativa no juízo, é preciso que o órgão do contencioso administrativo goze de autonomia administrativa e financeira. Eu defendo a tese de que o provimento dos cargos desse órgão seja feito por concurso público, ou seja, que tenhamos juízes administrativos independentes, que, ao contrário do que existe hoje, não representem nem o Fisco nem os contribuintes. E com vitaliciedade.

A integração deve vir acompanhada de previsão constitucional de normas gerais de processo administrativo e tributário, regulamentadas por lei complementar, e permitindo a delegação de competência, em relação a essa matéria, dos pequenos municípios para os Estados em que estão localizados. Hoje, 88% dos municípios brasileiros têm menos de 50 mil habitantes e, a rigor, não dispõem de condições necessárias para dar curso a processos de cobrança, fiscalização e julgamento de tributos. Deveriam ser autorizados a delegar essa competência à administração tributária estadual.

E os litígios relacionados com o controle difuso de constitucionalidade: como resolver?

Everardo Maciel: Acredito que isso possa ser feito por meio de uma mudança na Lei nº 9.868/1999, que trata do controle concentrado de constitucionalidade – aquele no qual o questionamento é feito diretamente ao Supremo Tribunal Federal. Essa lei estabelece as hipóteses para se ajuizar com uma Ação Declaratória de Constitucionalidade. O artigo 14, inciso 3, permite esse tipo de ação quando há relevante controvérsia judicial. Precisaríamos apenas acrescentar o seguinte complemento: “ou relevante repercussão fiscal”.

Assim, não seria necessário esperar que os processos envolvendo teses percorressem todo o caminho da primeira instância até o Supremo para se ter uma solução definitiva. A Fazenda Pública, ao entender que determinada matéria tem grande relevância fiscal, poderia entrar prontamente com uma Ação Declaratória de Constitucionalidade no STF.

Qual a solução para o contencioso que tem origem em conceitos mal formulados, como os três que o senhor citou: planejamento tributário abusivo, ágio em aquisições de empresas e uso ilícito de intermediários no comércio exterior?

Everardo Maciel: Cada um envolve aspectos específicos que não cabe tratar aqui, mas a solução para esses casos segue um modelo geral. Ele consiste em elaborar uma proposta de transação tributária estabelecendo uma solução para o futuro, corrigindo os pontos da legislação atual que estão gerando controvérsia, e outra para o passado. E deixar ao contribuinte o direito de optar pela adesão ou não a essa transação.

A propósito, o que o senhor achou dos modelos de transação tributária aprovados pela Lei nº 13.988/2020, sancionada em abril?

Everardo Maciel: Sobre a solução de conflitos por negociação direta, no caso de solução individual, eu tenho dúvidas de que isso vá prosperar. E por quê? Sobretudo porque vai existir sempre uma espécie de insegurança por parte da autoridade tributária para implementar a transação. Há sempre a perspectiva de tomar uma decisão e depois ser alvo de investigação pelo Tribunal de Contas ou ação de improbidade por parte do Ministério Público. Porque uma solução desse tipo não é nada trivial. Quando a autoridade estabelecer um desconto para a dívida, restará sempre a possibilidade de que alguém diga: “ele fez errado, ele poderia ter sido mais duro”. E isso é impossível avaliar.

Já a chamada “transação temática” eu acho que não dá certo. A transação temática envolve necessariamente anistias. E a Constituição é absolutamente clara ao estabelecer que a anistia, assim como a remissão, a isenção, a redução de base de cálculo, só pode ser feita por lei específica que trate exclusivamente da matéria. Eu sou muito pessimista em relação ao sucesso dessa nova lei, mas espero que o meu pessimismo seja desautorizado pelos fatos.

O que mais de importante precisaria ser feito no enfrentamento ao problema do contencioso?

Everardo Maciel: As ações das quais falei até aqui tratam basicamente do fluxo, da prevenção de novos litígios, mas precisamos enfrentar também o problema do estoque de contencioso. São necessárias medidas de limpeza nesse estoque. Isso pode ser feito por meio de uma grande compensação entre créditos e débitos dos contribuintes e do Estado. Uma possível solução seria permitir que o contribuinte utilize precatórios, prejuízos certificados ou créditos acumulados, próprios ou de terceiros, para liquidar créditos inscritos em dívida ativa. Se uma empresa não tiver créditos próprios, ela pode comprar de terceiros, conferindo liquidez a créditos que hoje são ilíquidos. Alguém pode dizer: “Mas isso vai criar um mercado”. Sim. Mas vende quem quer, compra quem quer. Com essa medida, limparíamos dívidas dos dois lados, reduzindo o volume de créditos inscritos em dívida ativa e também as dívidas do Estado.

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