País perde até 2,3% do PIB por ano

Valor Econômico – Caderno Especial – Combate à Corrupção – 17/08/2012

 

As práticas de corrupção no Brasil subtraem da economia um montante que vai de R$ 51,4 bilhões, em um cenário razoável, a R$ 84,5 bilhões, na pior das situações. Significa um desvio entre 1,38% e 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB). No ranking mundial da “corrupção percebida”, um indicador estabelecido pela ONG Transparência Internacional com 180 países, o Brasil ocupa a 73ª posição, atrás de nações como Porto Rico (39º), Coreia do Sul (43º), Kuwait (54º) e Malásia, que está no 60º posto. A pontuação, que vai de 0 a 10 – com 0 indicando o pior nível – já foi de 2,7 em 1995 para o Brasil e agora está em 3,8, abaixo da média global de 2011, de 4,05.

O Índice de Percepção da Corrupção (ICP), divulgado desde 1995 pela ONG, é um indicador subjetivo, formado pela opinião de empresários e instituições. Mesmo assim, o nível de corrupção percebida do Brasil é consistente com a relação observada com o PIB per capita e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, valores baseados em dados estritamente quantitativos. O custo da corrupção pode ser entendido como sendo o montante de recursos que deixa de ser aplicado no país – seja em atividades produtivas, saúde, educação, tecnologia etc – porque é desviado para o pagamento das práticas corruptas.

O índice serve de referência para instituições como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “Considerando o cenário menos corrupto, de R$ 51,4 bilhões ou 1,38% do PIB, o desvio corresponde a 7,2% do montante que o Brasil investe em máquinas, equipamentos, construção civil e infraestrutura. E 26% do que gasta em educação e 88% do que investe em pesquisa e desenvolvimento”, diz José Ricardo Roriz Coelho, diretor titular do Departamento de Competitividade e Tecnologia da Fiesp.

Cálculos feitos por outra metodologia, pelo professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), estimam em R$ 18 bilhões o total de verbas de “uso duvidoso” em 2011. “As verbas envolvem tanto aquilo que pode ser suspeito como pode ser simplesmente incompetência, porque a Controladoria Geral da União (CGU) – de onde são extraídos os dados – investiga se o recurso do município foi bem utilizado; e às vezes é mau utilizado não por má fé, mas por incompetência. Vale lembrar que no Brasil a incompetência é realmente muito grande e não tem como separar uma coisa da outra “, diz Marcos Fernandes G. da Silva, professor e pesquisador da FGV.

Silva é autor dos livros “Ética e Economia”, “Economia Política da Corrupção no Brasil” e “Formação Econômica do Brasil: Uma Reinterpretação Contemporânea”. Nos livros, ele se vale de “vários estudos que foram sendo atualizados sobre uma mesma metodologia”. “É um exercício de engenharia econômica onde procuro calcular o custo de oportunidade do dinheiro desviado, ou seja, o que se poderia fazer em termos de investimentos em políticas públicas, por exemplo, com o recurso que foi a princípio desviado.”

Marcos Fernandes da Silva, professor da FGV, acrescenta que quando se faz o cálculo do custo de oportunidade do dinheiro “roubado” é preciso levar em conta o valor que esse dinheiro teria no futuro. “Se ele fosse investido de forma adequada em educação, em acumulação de capital, isso geraria retorno para os indivíduos e para a sociedade.”

Financiamento público de campanha divide opiniões

Valor Econômico – Caderno Especial – Combate à Corrupção – 17/08/2012

 

O financiamento público das campanhas eleitorais é um passo decisivo no combate à corrupção? O tema é polêmico. Todos, porém, concordam em um ponto: a necessidade urgente de tornar o processo mais transparente, de forma a fortalecer a democracia e torná-la mais representativa. A questão-chave é deixar claro “quem financia quem”, fundamental para o eleitor ter condições de conhecer os vínculos entre candidatos e empresas. E de poder avaliar como o político se posiciona na hora de escolher entre o interesse público e daqueles que bancaram as despesas da campanha.

“O poder econômico tem importância fundamental no financiamento de campanhas políticas cada vez mais onerosas. Até para valorizar a democracia representativa, seria interessante avançar no modelo do financiamento público”, diz o presidente do Instituto Ethos, Jorge Abrahão. “Não dá para ter a ilusão de que o financiamento público vai acabar com a corrupção, mesmo porque não vai tornar as pessoas mais honestas”, afirma o professor da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-Rio), Pedro Abramovay. “Não há nenhuma evidência de que a forma de financiamento aumenta as chances de combater a corrupção”, explica o presidente da Associação Brasileira de Ciência Política e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, Leonardo Avritzer.

O financiamento público das campanhas avançou em vários países a partir da segunda metade do século XX, como mostra o trabalho “A responsabilidade das empresas no processo eleitoral” realizado em 2010 pelo Instituto Ethos e pela Transparência Internacional. Mas se ele se fazia presente em 59% dos países democráticos em 2003, como constatou a ONG Idea International, em nenhum deles as despesas das eleições eram bancadas exclusivamente com recursos do Estado. No Brasil, esse financiamento tornou-se mais significativo a partir de 1995 com a criação do Fundo Partidário.

É impossível saber quanto o fundo efetivamente representa na receita total dos partidos porque parte significativa das doações ainda é feita “por baixo do pano”. “Não é possível menosprezar o pode econômico das grandes empresas. Elas ganham licitações, super-faturam os preços por meio de aditivos e financiam as campanhas com recursos do caixa 2”, comenta Avritzer. “Nesse contexto, o financiamento público pode aumentar a transparência e diminuir a corrupção.” Mas quem garante que as empresas não continuarão bancando seus candidatos? “O financiamento exclusivamente público não resolve o problema e pode ser até pior. Alguns candidatos continuarão recebendo recursos das companhias de forma ainda menos transparente do que agora”, diz o professor de direito penal da Universidade de Direito da FGV-Rio, Tiago Bottino.

No entanto, é impossível ignorar o fato de o financiamento privado privilegiar os políticos com acesso aos recursos do mundo empresarial. “Alguns candidatos passam parte considerável dos mandados arrecadando fundos para financiar as campanhas. Uns fazem isso de forma lícita, outros, de maneira ilícita, que abre uma enorme brecha para a corrupção”, explica Abramovay. Nesse contexto, recursos públicos podem tornar a disputa pelos votos mais igualitária, nesses tempos em que as despesas eleitorais sobem à estratosfera.

Em 2008, os 11 candidatos à Prefeitura de São Paulo declararam à Justiça Eleitoral que iriam gastar R$ 96,1 milhões. Neste ano, os 12 candidatos preveem gastos de R$ 341,5 milhões, 255% a mais.

Para os especialistas, mais importante que a origem dos recursos para o financiamento eleitoral é a transparência do processo, o estabelecimento de regras claras e a fiscalização para garantir o cumprimento. E, também, a fixação de penalidades mais duras para quem se desviar da rota, como a inegibilidade de quem for condenado pela Justiça Eleitoral durante um certo período de tempo. Nessas eleições, alguns juízes eleitorais estão exigindo a adoção dos princípios da Lei da Transparência pelos candidatos.

Desvios se valem de brechas na estrutura legal

Valor Econômico – Caderno Especial – Combate à Corrupção – 17/08/2012

 

A maioria dos casos de corrupção ao redor do mundo envolve complexas estruturas financeiras e corporativas legais para esconder o produto das atividades ilegais. Essa é um das conclusões do relatório “Puppet Master”, divulgado no fim do ano passado pela Iniciativa para a Recuperação de Ativos Roubados (StAR, na sigla em inglês), associação criada pelo Banco Mundial e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). O documento, que foi feito a partir da revisão de 150 casos no banco de dados denominado “Grand Corruption”, com valores próximos a US$ 50 bilhões. Recomenda que os governos devem adotar medidas firmes para melhorar a transparência de operações financeiras, a fim de reduzir as brechas para esse tipo de crime.

O estudo examina as ligações entre corrupção em grande escala de funcionários públicos e a ocultação de bens roubados por meio de empresas de fachada, fundações e fundos. De acordo com informações dadas pelo grupo StAR ao Valor, por meio do Banco Mundial, os casos analisados apontaram que as formas mais comuns de corrupção eram suborno, propina e utilização de contratos falsos de consultoria, bem como níveis significativos de peculato. Conforme o grupo StAR, os casos compartilhavam de uma série de características comuns. Em sua grande maioria, uma empresa foi indevidamente utilizada para esconder o rastro do dinheiro.

Conforme o StAR, os instrumentos mais comuns utilizados nos sistemas bancário e corporativo como fachada para esconder operações ilegais são o uso de acionistas nominais, utilização de privilégios entre advogados e clientes (sigilo profissional do advogado), além de falhas nos mecanismos de controles de lavagem de dinheiro por parte dos fundos fiduciários, prestadores de serviço ou bancos, especialmente em casos em que há altos valores envolvidos.

Uma estimativa realizada pela entidade Global Financial Integrity aponta que de US$ 20 bilhões a US $ 40 bilhões são roubados em países em desenvolvimento anualmente em casos de corrupção.

Mas há menções específicas a alguns países, como no caso em que os investigadores brasileiros do StAR citam o privilégio legal como uma questão importante na questão da corrupção no país. “No Brasil, mesmo quando o investigador consegue encontrar a empresa prestadora de serviços que foi usada como instrumento de corrupção, muitas vezes esta foi vendida para um escritório de advocacia, que recorre ao privilégio legal de não poder divulgar o nome da pessoa que comprou a companhia”, aponta a StAR.

Cinco brasileiros são citados pelo “Puppet Master”: o ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf; os banqueiros Edemar Cid Ferreira e Daniel Dantas; a irmã de Dantas, Verônica; e Rodrigo Silveirinha, ex-subsecretário de Administração Tributária do Rio de Janeiro.

Receita aumenta o cerco aos maiores infratores

Valor Econômico – Caderno Especial – Combate à Corrupção – 17/08/2012

 

A fiscalização da Receita Federal bateu recorde em 2011 ao identificar R$ 109,3 bilhões em valores sonegados. O montante supera em 21,25% o total de autuações em 2010. De acordo com dados da Receita, em 26,35% das fiscalizações encerradas foram identificadas, em tese, a prática de crimes contra a ordem tributária ou contra a Previdência Social. Para esses casos, foram formalizadas Representações Fiscais para Fins Penais, que serão encaminhadas ao Ministério Público Federal. No ano passado a Receita reteve 569.671 declarações na malha fina, abaixo das 700 mil em 2010.

Para ampliar o cerco contra a sonegação, o órgão tem aumentado o valor das multas, que chegam a 150% sobre o total do imposto a ser cobrado quando for caracterizada fraude por parte do contribuinte, além de criar sistemas de informação sobre serviços médicos, cartão de crédito, atividades imobiliárias. Conta também com sistemas eletrônicos avançados, como é o caso do Sistema Púbico de Escrituração Digital (Sped), ferramenta que permite acompanhar online a contabilidade das empresas. A intenção não é aumentar o número de autuações, mas selecionar os maiores infratores.

“Com o Sped ganhamos agilidade à medida que temos a informação na mão em tempo menor e numa forma mais eficaz de tratá-la”, conta Caio Cândido, subsecretário de Fiscalização da Receita. “Temos um banco de dados que nos permite esmiuçar a vida do contribuinte. O Sped oferece ainda qualidade na informação por conta dos vários filtros que são feitos.”

“Hoje o Fisco está tão instrumentado com ferramentas que o contribuinte que tenta burlar a Receita Federal tem um prazo de validade: no período de dois meses a Receita já autua esse contribuinte”, diz Sebastião Luiz Gonçalves, coordenador da 2ª Câmara de Fiscalização do Estado de São Paulo.

Os números comprovam a tese de Gonçalves, que também é membro do Conselho Regional de Contabilidade do Estado de São Paulo (CRC/SP). De acordo com os dados da Receita, o setor industrial liderou as autuações no segmento da pessoa jurídica, com R$ 30,9 bilhões. Entre as pessoas físicas, os proprietários e dirigentes de empresas foram os mais autuados, somando um total de R$ 1,6 bilhão, segundo dados da Receita.

O governo está empenhado em aprimorar ferramentas de controle para evitar fraudes. Além do Sped, Gonçalves cita controles como a Declaração de Informações sobre Atividades Imobiliárias (Dimob), Declaração de Operações com Cartão de Crédito (Decred) e a Declaração de Serviços Médicos e de Saúde (Dmed). “Era muito comum o contribuinte gastar R$ 1 mil e lançar R$ 10 mil na declaração do Imposto de Renda com gastos em saúde. Hoje o prestador de serviço informa tudo à Receita.”

Para Caio Cândido, subsecretário de Fiscalização da Receita, se por um lado o Fisco ganha em qualidade e agilidade, por outro há um aumento de trabalho. “Tivemos uma alteração no modo de fiscalizar com a adoção do Sped”, informa, referindo-se ao sistema para o qual as empresas estão, gradativamente, sendo obrigadas a migrar. “Com o cruzamento de informações, houve um grande acréscimo ao trabalho da fonte. Antes, a escrituração estava em livros, em papéis dentro da empresa. Hoje, o auditor está capacitado a auditar os dados enviados por meio eletrônico”, esclarece.

Para estudiosos, o bom exemplo deveria partir do andar de cima

Valor Econômico – Caderno Especial – Combate à Corrupção – 17/08/2012

 

Para quatro estudiosos ouvidos pelo Valor, o estereótipo do brasileiro malandro e conivente com pequenas ilegalidades não encontra respaldo histórico ou atávico. Embora de linhas divergentes de pensamento, eles se mostraram de acordo em um ponto: o exemplo da boa conduta deveria vir do andar de cima.

Para o antropólogo Roberto DaMatta, o comportamento do brasileiro se explica pela composição da sociedade. “O problema é que até hoje o Brasil vive em um modelo imperial, uma sociedade aristocrática e hierarquizada, na qual algumas poucas pessoas detêm privilégios que não cabem aos demais”. Trata-se, afirma, de um modelo herdado da civilização portuguesa e que não desapareceu com a Proclamação da República, a separação da Igreja do Estado e a criação do jogo do bicho, no Rio de Janeiro. “No sistema português, religiosos eram julgados pelo Direito Canônico e os nobres e ministros tinham foruns privilegiados”. Para DaMatta, os sinais mais evidentes desse modelo são o paternalismo do serviço público e os privilégios de determinados setores do Judiciário. “Nosso problema maior é a igualdade, civilizar o espaço público e cuidar bem do dinheiro que é de todos”.

Já o sociólogo Chico de Oliveira atribui a corrupção à própria essência do sistema capitalista. “A grande corrupção não se dá no interior do Estado, ela se dá na relação entre o Estado e o mercado. Ocorre que o pensamento econômico contemporâneo absorveu a corrupção praticada pela iniciativa privada e a transformou em competitividade”. Oliveira não poupa os sindicatos, que tendem a se corromper na medida em que se desviam de suas funções originais e expandem seus poderes para outras áreas da economia.

Para o historiador Marco Antonio Villa, a corrupção tornou-se mais presente no Brasil após a Proclamação da República, com “picos” durante o Estado Novo (década de 30), mas até meados da década de 80 não era um fenômeno de proporções endêmicas como hoje. O historiador acredita que providências contra a corrupção deveriam ter sido adotadas quando da redemocratização do país após o fim do regime militar, o que não foi possível em razão da doença do presidente eleito Tancredo Neves e a posse do então vice, José Sarney, representante das forças mais conservadoras. Villa não concorda com a tese de uma herança colonial portuguesa. “É querer imputar ao outro o problema que é nosso”. Ele critica o que considera uma falta de politização da sociedade. (GM)

Professora recomenda padrão único para prestação de contas

Valor Econômico – Caderno Especial – Combate à Corrupção – 17/08/2012
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Ao contrário de países como o México e a Itália, em que a corrupção está  muito ligada a grupos criminosos que buscam manter sua posição com base em atos  ilícitos, no Brasil ela está muito centrada na esfera pública e em seu uso para  fins privados. Com história democrática recente, iniciada no fim dos anos 1980,  o país está fazendo bons avanços em relação ao assunto. A opinião é da  professora Rita de Cássia Biason, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas  sobre Corrupção da Unesp, que também acredita que os casos de corrupção não  estão crescendo no país, mas que essa impressão decorre da maior visibilidade  deles na mídia.
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“Temos feito bons avanços no combate à corrupção e poderíamos fazer mais com  alguns pequenos atos”, afirma a professora. No fim do semestre, ela fez com seus  alunos um trabalho para analisar como os tribunais de contas dos Estados e dos  municípios prestam contas à população. O que se verificou foi que cada um presta  contas de um jeito diferente e alguns deles não as publicam no site, dando  visibilidade ao resultado. “Poderia ser definido um padrão único que poderia ser  usado por todos os tribunais de contas dos Estados”, diz Rita de Cássia, que  frisa que talvez a existência da Lei de Transparência Pública, em vigor desde  maio, possa ampliar a exigência de prestação de contas públicas de várias  esferas do governo.
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Integrante de um grupo de estudo sobre corrupção da Organização para  Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a professora diz que, enquanto os  países desenvolvidos se preocupam com a corrupção principalmente referente a  empresas que buscam burlar regras de licitações, no Brasil o quadro se inverte e  está mais presente na esfera pública. “As estatais e os governos federal,  estaduais e municipais precisam cada vez mais de instrumentos de combate a  práticas antiéticas”, diz.
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Em sua visão, a corrupção não tem crescido no Brasil nos últimos anos. A  impressão, bastante presente na sociedade, seria reflexo de quatro fatores que  tornam o assunto mais visível, diz. Primeiro, desde 1989, com as eleições  diretas para todos os cargos eletivos, o Brasil ingressa em um período  democrático em que os líderes ganham maior visibilidade, enquanto a imprensa faz  o papel de fiscalizadora do poder. Segundo, com o fim da censura, a mídia passa  a ter um papel mais investigativo, buscando casos de grande repercussão.  Terceiro, a internet facilita o cruzamento e a procura de dados. E, por fim,  discute-se cada vez mais a regulação da esfera pública. “O Brasil viveu muito  tempo sem democracia e, ao ingressarmos nela, entramos numa fase de inocência,  achamos que tudo seria azul, esquecendo que no fundo democracia é gestão de  incertezas, que os atores têm papéis distintos.”

 

Código penal está aquém dos anseios da sociedade

Valor Econômico – Caderno Especial – Combate à Corrupção – 17/08/2012
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Defasado, o Código Penal brasileiro não atende aos anseios da sociedade e  tampouco permite que se puna de forma exemplar o crime organizado no país.  Segundo o jurista Walter Fanganiello Maierovitch, professor de direito criminal  e consultor da União Europeia sobre o tema, caso não haja mudanças no corpo da  lei, jamais haverá no Brasil uma iniciativa como a Operação Mãos Limpas, na  década de 90 na Itália, que culminou na investigação de mais de 6 mil pessoas,  incluindo empresários, servidores públicos e parlamentares, entre os quais os  ex-primeiros ministros Giulio Andreotti e Bettino Craxi, que tiveram suas  carreiras políticas encerradas após a comprovação de envolvimento com atividades  da máfia italiana.
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Na visão de Maierovitch, a ação do crime organizado no Brasil atingiu um grau  de sofisticação semelhante ao que se observou na Itália. Ele cita os fortes  indícios apontados nas relações entre o bicheiro Carlinhos Cachoeira, o  ex-senador Demóstenes Torres e a construtora Delta.
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“Chegou-se a um estágio em que há suspeitas de lavagem de dinheiro de jogo do  bicho com licitações fraudulentas de empreiteiras”, afirma. Segundo o Código  Penal, diz o jurista, situações com esta só podem ser enquadradas por meio da  formação de “bando ou quadrilha”, segundo o artigo 288. E, na esmagadora maioria  das vezes, como os réus são primários, os advogados conseguem habeas corpus para  que respondam em liberdade. “A prisão preventiva de Carlinhos Cachoeira é uma  exceção no sistema brasileiro”, afirma.
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O jurista sugere uma emenda que ampliasse o conceito de “bando e quadrilha”  para “associações delinquenciais especiais”, a exemplo do que foi feito na  Itália no final dos anos 80, por iniciativa de um deputado do Partido  Socialista. “No Brasil, prevalece a presunção de inocência, que é um princípio  correto, mas há situações em que a prisão preventiva é necessária para que as  investigações atinjam todos os elos da cadeia criminosa. Com as ferramentas  tecnológicas, a cúpula de uma organização pode operar fora do Brasil e corromper  internamente”. No campo jurídico italiano, entende-se “associações  delinquenciais especiais” como aquelas que possuem poder corruptor, como  controle de território e controle social, com infiltração no Estado, ao ponto de  interferir no processo eleitoral. Outro caso lembrado é o do ex-deputado  fluminense Álvaro Lins, com comprovado envolvimento com as milícias cariocas,  que responde ao processo em liberdade devido aos seus bons antecedentes.
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O jurista defende que a tipificação de crime organizado siga o que foi  acordado na Convenção de Palermo, realizada em 2000 e ratificada pelo Brasil em  2008. Segundo o documento, até mesmo doleiros podem ser citados na formação de  crime organizado. Maierovitch vai além e apoia a inclusão de entidades  religiosas que utilizem espaço comprado em horário de TV para prática de ações  classificadas como “verdadeiro estelionato”. Entre outras mudanças urgentes, o  jurista defende o fim do foro privilegiado para autoridades e a adoção de  critérios mais técnicos para indicação de ministros ao Supremo Tribunal Federal  (STF), que teriam mandatos de cinco anos, sem direito à reeleição.

Empresas corruptoras ficam livres de punição

Valor Econômico – Caderno Especial – Combate à Corrupção – 17/08/2012
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O funcionário de uma empresa pode até ser flagrado dando caixinha para um  funcionário público liberar um alvará, fingir não ter visto que a obra não  corresponde à planta aprovada ou fraudar uma licitação. Daí à companhia ser  punida pelo suborno vai uma enorme distância porque provar a maracutaia é  praticamente impossível. No máximo, nos casos mais graves, é considerada  inidônea e fica proibida de prestar novos serviços ao Poder Público. O prejuízo  é pago pelo contribuinte.

A impunidade está a caminho do fim. O Projeto de Lei 6.826/2010, conhecido  como a Lei Anticorrupção, de autoria do Poder Executivo, tramita vagarosamente  pela Câmara dos Deputados. “Caminhamos para um acordo e provavelmente o PL será  aprovado depois das eleições de outubro”, comenta o deputado Carlos Zarattini  (PT-SP), relator do PL.

A esperança do relator é aprovar o PL na Comissão Especial para que possa  seguir direto para o Senado. Mas sempre existe o risco de 10% dos deputados  apresentarem requerimento pedindo para o projeto ser apreciado pelo plenário da  Câmara, atrasando ainda mais os trabalhos. A morosidade não se deve apenas à  burocracia dos trâmites legislativos. “O poderoso lobby empresarial trabalha  para descaracterizar e retardar a aprovação do PL”, comenta Zarattini. O maior  alvo do lobby é a responsabilidade objetiva, considerada a essência do projeto.  O instrumento jurídico permite punir a empresa que se beneficiou de ato lesivo,  independentemente de se comprovar a ação. A companhia será responsabilizada se  tiver obtido algum benefício. “A responsabilidade objetiva é inegociável”,  afirma.

Até o momento, a punição dos envolvidos em casos de suborno ou corrupção é  praticamente inviável por falta de legislação específica para pessoas jurídicas – sejam elas empresas, entidades de classe, ou organizações não governamentais.  As relações da iniciativa privada com a administração pública são regidas pela  Lei 8.666/93, das Licitações. As empresas que não cumprirem as determinações  podem ser advertidas, multadas e consideradas inidôneas. “A inidoneidade é  contestada nos tribunais porque é difícil provar o envolvimento das companhias”,  explica Zarattini. “Quando os funcionários são pegos tentando subornar agentes  públicos, alegam que os empregados agiam por conta própria”.

Com a aprovação do PL 6.826/2010, o Brasil sairá de uma posição delicada por  não cumprir tratados internacionais. É o caso da Convenção sobre o Combate à  Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais  Internacionais da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico  (OCDE), de 1997. Brasil, Argentina e Irlanda são os únicos dos 34 países  signatários que não criaram legislação específica para punir empresas  corruptoras.

“Outro assunto que o país não está tratando com a devida atenção é o do  enriquecimento ilícito dos funcionários públicos, embora seja signatário de  convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a questão” comenta Josmar  Varillo, da Amarribo Brasil. A última notícia do Projeto de Lei 5.686/2005, de  autoria do Executivo, foi um pedido do deputado Amauri Teixeira (PT-BA) para  incluí-lo na pauta de votação da Câmara dos Deputados em setembro do ano  passado.