Aumento de denúncias é resultado de maior transparência

Valor Econômico – Caderno Especial – Combate à Corrupção – 17/08/2012

 

Se o Brasil pretende se consolidar como um país economicamente competitivo,  necessita de legislação que efetivamente sancione as pessoas jurídicas pela  prática de corrupção. A falta de lei dessa natureza distorce os mercados,  afugenta investidores e compromete o desenvolvimento do país. Essa é a avaliação  do ministro chefe da Controladoria-Geral da União (CGU), Jorge Hage Sobrinho,  apresentada durante o seminário internacional “O impacto da Corrupção sobre o  Desenvolvimento”, organizado pelo Valor e pelo Instituto  Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco).

“É preciso criar meios mais efetivos para atingir o patrimônio das pessoas  jurídicas, obter efetivo ressarcimento dos prejuízos causados, ampliar as  condutas puníveis, inclusive para atender aos compromissos internacionais  assumidos pelo Brasil”, diz Hage, assinalando que vários países já dispõem de  leis desta espécie, como Estados Unidos (1977), França (2000), Itália (2001),  Chile (2009) e Reino Unido (2010).

Segundo o ministro, nos últimos anos, de forma inédita, a corrupção tem sido  detectada, investigada, divulgada e punida na esfera administrativa. De 2003 até  agora a CGU expulsou 3.826 funcionários públicos. Pelo menos 70% dos casos estão  ligados à corrupção e à improbidade administrativa. Esse combate tem sido feito,  de forma inovadora, assinala ele, por meio da articulação e cooperação entre  diversos órgãos públicos.

Além de enfrentar a corrupção, o Brasil passou a investir na transparência,  não só de recursos públicos, mas de qualquer informação produzida ou mantida  pelo Estado, que não esteja protegida por sigilo e não tenha caráter pessoal. O  aumento de denúncias de casos de corrupção no país, indica Hage, é resultado da  maior transparência do governo e de maior envolvimento dos cidadãos. O número de  visitantes do portal da transparência, da Controladoria, por exemplo, passou de  285 mil em 2005, para 3,3 milhões em 2012.

A Lei de Acesso à Informação, ampliada em seus objetivos, também se mostra um  instrumento efetivo, cada vez mais utilizado pelos cidadãos, segundo o ministro.  “Nos órgãos federais, por exemplo, já recebemos mais de 20 mil perguntas via Lei  de Acesso à Informação e mais de 80% delas foram atendidas dentro do prazo”,  diz.

Os esforços do Brasil em incrementar cada vez mais a transparência e o acesso  à informação são reconhecidos mundialmente, analisa Hage. Atualmente, diz ele  com base na pesquisa Latin American Corruption Survey 2012, há uma percepção  maior do cidadão brasileiro em relação à corrupção. Segundo a pesquisa, 88% dos  entrevistados disseram ter conhecimento de empresa, indivíduo ou servidor  público que esteja sendo processado por fazer ou receber um pagamento  impróprio.

Contudo, é preciso avançar muito mais, defende Hage. “São necessárias  alterações radicais na legislação processual brasileira para que a corrupção e a  improbidade sejam efetivamente punidas”, diz. Entre os desafios a serem  vencidos, aponta o ministro-chefe da CGU, estão a racionalização das normas  processuais, com redução dos recursos e outras medidas protelatórias (PEC dos  Recursos e Reforma do CPP), a superação dos excessos “garantistas” da  jurisprudência dos Tribunais, e aprovação de projetos de lei importantes para o  combate à corrupção (PL sobre Responsabilização de Pessoas Jurídicas por atos de  corrupção, em tramitação na Câmara dos Deputados e PL que regulamenta o Conflito  de Interesses entre o público e o privado e amplia a quarentena, em tramitação  no Senado Federal). “Além da adoção do financiamento público exclusivo de  campanhas e conscientização dos empresários de que jogar limpo é um bom  negócio”.

Para o ex-ministro Marcílio Marques Moreira, presidente do conselho  consultivo do Etco, o combate à corrupção está apenas começando. O mais  importante, observa, é acabar com a desconfiança mútua entre a administração  pública e o setor privado.

Controle de riscos

Valor Econômico – Caderno Especial – Combate à Corrupção – 17/08/2012

 

Em um contexto em que o eixo de crescimento da economia mundial se inverte e  desloca-se para os países emergentes e em que os preços das commodities devem se  manter em patamares elevados nos próximos anos, abre-se uma janela de  oportunidade para nações, como o Brasil, ricas em recursos naturais. Transformar  esse ciclo de riqueza em benefício para toda a população dependerá em grande  parte de gerenciar com eficiência as instituições, conduzir políticas públicas e  reduzir a corrupção.

“A diferença entre viver uma maldição e uma bênção está essencialmente ligada  à governança e à redução da corrupção”, disse Otaviano Canuto, vice-presidente  do Banco Mundial, um dos presentes ao seminário internacional “O Impacto da  Corrupção sobre o Desenvolvimento”, organizado pelo Valor e  pelo instituto Etco, na quarta-feira, em São Paulo.

Nesse contexto, ferramentas de controle de gastos, maior transparência por  parte dos órgãos públicos e avanços no sistema político são áreas que precisam  ser reforçadas para coibir práticas ilícitas. Para o diretor de governança  pública e desenvolvimento da Organização para Cooperação e Desenvolvimento  Econômico (OCDE), Rolf Alter, a corrupção é um fenômeno global que atravessa  fronteiras e cujo combate tem de ser reforçado diante da perspectiva de que nos  próximos anos mais de US$ 1 trilhão em projetos de investimentos no mundo sejam  realizados por diferentes países. “Muito dinheiro será aplicado e será preciso  atuar em todo o planeta para prevenir a corrupção e promover a integridade”,  disse.

Um estudo do Banco Mundial entre 2005 e 2008 mostra avanços em alguns países  da Europa e retrocessos de outros no combate à corrupção. Casos de corrupção  administrativa, como presentes e dinheiro dados pela iniciativa privada para  acelerar a tomada de decisão por parte de um ente público, tiveram redução. Já a  corrupção ligada a compras públicas – que lida com uma quantia maior de dinheiro  público e é mais centralizada – aumentou na mesma amostragem de países. “Os  casos de sucesso aconteceram nos países que fizeram uma reforma específica e  pragmática, utilizaram de monitoramento e métrica para avaliar o desempenho  público, e criaram capacidade de gestão pública local”, disse Otaviano  Canuto.

A corrupção não é um problema que ameaça apenas a economia brasileira, mas  também os negócios das empresas que buscam a internacionalização. “Hoje temos  mais empresas brasileiras investindo lá fora e a geografia de interesse delas  são áreas que ainda passam por amadurecimento das instituições, que em alguns  casos ainda são frágeis”, destacou o diretor de Políticas e Estratégia da  Confederação Nacional da Indústria (CNI), José Augusto Coelho Fernandes.

O Brasil tem feito avanços para aumentar a transparência em relação aos  gastos da União, mas ainda será preciso superar vários obstáculos, segundo os  presentes à discussão, principalmente nos pequenos e médios municípios. Um dos  progressos foi a edição da Lei de Acesso à Informação Pública, em vigor desde  maio deste ano. O ministro chefe da Controladoria Geral da União (CGU), Jorge  Hage Sobrinho, afirmou que já foram recebidos mais de 20 mil pedidos de  informação, sendo que os órgãos que mais recebem consultas são a Susep, INSS,  Banco Central, Ministérios da Fazenda e do Planejamento. Outra ferramenta do  governo para aumentar a divulgação de dados é o portal da transparência, em que  pode-se analisar as despesas do governo, com detalhamento diário.

“O Brasil se tornou uma referência nesse campo”, ressaltou Hage. “Quem usava  o portal antes era um público específico, como o pesquisador, o jornalista e o  funcionário público. Agora o cidadão brasileiro está utilizando”, afirmou Jorge  Hage.

Para Josmar Verillo, vice-presidente do Conselho de Administração da Amarribo  Brasil, braço da Transparência Internacional no país, é preciso avançar no tema  principalmente nas pequenas e médias cidades em que partidos políticos atuam  como quadrilhas se revezando no poder. “Em alguns casos, há até cobrança de  royalties quando há alternância na Prefeitura, mas interesse em manter um  esquema”, afirmou, frisando que nessas áreas os principais beneficiários são  políticos. Em sua visão, seria preciso atuar em várias áreas. Receber a pressão  de órgãos internacionais ajudaria. Seria preciso também revisar o Código Penal e  retirar a figura do foro privilegiado. “Tem-se a impressão de que o Judiciário é  frágil e que o Código Penal está desatualizado”, afirmou.

A ex-ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie Northfleet destacou  que, em alguns casos, órgãos públicos têm dificuldades para prestar contas em  razão das demandas burocráticas. “Muitos não conseguem preencher tudo que é  preciso”, afirmou. A burocracia chega também às empresas. Ela citou um exemplo:  em conversa recente com um grande empresário brasileiro que tem negócios no  Brasil e ativos nos Estados Unidos, o executivo contou que, para gerenciar as  demandas de órgãos públicos federais, estaduais e municipais no Brasil tem uma  equipe de cem funcionários, enquanto nos Estados Unidos tem apenas um. “Essas  dificuldades acabam pesando sobre toda a estrutura”, frisou, ressaltando que  outra tarefa importante no Brasil seria a necessidade de formação de agentes  públicos. “No Brasil, às vezes o prefeito é eleito por ser simpático e por  manter boas relações com a população e não por critérios técnicos”.

Novo código prevê pena para empresa que praticar corrupção

Fonte: Valor Econômico (São Paulo) – 04/06/2012

Se o Congresso Nacional aprovar as mudanças que estão sendo discutidas para o Código Penal, empresas e agentes privados terão mais segurança jurídica em análises processuais de crimes econômicos, com o detalhamento de conceitos e explicitação de condutas passíveis de tipificação criminal. A proposta de um novo código traz um título específico para crimes econômicos. Nele estarão presentes capítulos referentes a crimes contra a ordem tributária e à Previdência Social; contra o sistema financeiro nacional; de lavagem de dinheiro; contra propriedade intelectual e imaterial; relacionados à Lei de Licitações; de enriquecimento ilícito; e falência. Outros, referentes a direitos humanos e meio ambiente, também serão incluídos.

Datado de 1940, o Código Penal será completamente revisto, a partir de uma série de sugestões apresentadas por uma comissão de juristas instituída pelo Senado Federal. A intenção é aperfeiçoar o texto e preencher lacunas decorrentes de condutas da atualidade, como a difusão do uso da internet.

“A mudança trará mais segurança para o mercado, vai criar mais senso de responsabilidade e ética pelos agentes. O anteprojeto atualiza, na área econômica, crimes que hoje estão defasados”, diz o consultor legislativo do Senado, Tiago Ivo Odon.

Dentre as inovações que virão no texto, está a criminalização de pessoas jurídicas que praticarem atos de corrupção contra a administração pública e também no âmbito privado. Hoje, apenas pessoas físicas podem ser punidas por crimes, com exceção dos casos que envolvam questões ambientais. Nos dois casos, há punições como multas, suspensão de atividades e até o fechamento da companhia.

O anteprojeto está em fase final de elaboração. O último encontro no Senado dos membros da comissão está previsto para 11 de junho. Depois disso, o relator do texto, o procurador regional da República Luiz Carlos dos Santos Gonçalves vai consolidar as sugestões aprovadas durante as reuniões ocorridas desde o fim de 2011. A expectativa do relator é que não haja alteração significativa na redação final que será dada ao anteprojeto.

Não houve a preocupação de “endurecer” ou “amolecer” a legislação, diz o procurador. “A expressão correta é tornar proporcional, de acordo com a gravidade efetiva ou potencial do comportamento de que deve-se buscar a pena. São textos já existentes, mas muitas vezes antigos. A intenção da comissão foi modernizá-los”.

Outra mudança defendida pelos juristas, na legislação referente a crimes tributários e previdenciários, é o impedimento de apresentação de denúncia à Justiça se o devedor apresentar-se em juízo e fizer uma espécie de depósito caução, como garantia de que vai quitar a dívida futuramente, ou um acordo para parcelamento da dívida. Hoje, a jurisprudência dos tribunais superiores já admite a exclusão penal, se o devedor parcelar a dívida ou quitá-la antes do oferecimento da denúncia.

Para o relator, a alteração mais emblemática, porém, é a inclusão dos crimes contra o sistema financeiro no texto. O que se propõe é usar o que já está na lei em vigor sobre esses casos, de 1986, com reformulações. Ele lembra que a legislação atual que criminaliza essas condutas foi aprovada após o escândalo conhecido como Coroa-Brastel. Na época, com a quebra de uma corretora, milhares de pessoas foram lesadas.

“Nós temos no Brasil o fenômeno da legislação de urgência. Acontece um caso criminoso grave e, na semana seguinte, vem uma lei a respeito daquilo. Costumam ser leis que não passam por uma reflexão aprofundada. Essa é uma lei que ao longo desses vinte e poucos anos vem sendo controversa”, afirma. O novo código, explica o relator, explicitará penas distintas para condutas de gestão fraudulenta singular (um caso), de período (prática recorrente) e de gestão temerária.

Essa última conduta é definida como operações de crédito que represente concentração de risco não admitida pelas normas do sistema financeiro nacional. Caso as normas não estejam previstas, serão caracterizadas operações com risco em volume suficiente para levar ao colapso a instituição em caso de inadimplemento.

Um tipo penal que será incorporado ao código, dentro das condutas de crimes contra o sistema financeiro, é o uso de informação privilegiada por pessoas que atuem em bolsas de valores, com acesso a dados internos sobre investimentos de uma empresa – o chamado “insider trading”. Hoje esse tipo de conduta já está previsto na Lei das S.A. com pena de um a cinco anos de prisão, mais multa de até três vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime. Pelo texto do anteprojeto, a pena mínima é aumenta em um ano. A pena máxima e a multa são mantidas como na legislação atual.

Algumas sugestões feitas pela comissão de juristas são semelhantes a propostas em análise por deputados e senadores. Amanhã, por exemplo, o Senado deve aprovar um conjunto de medidas para aperfeiçoar o combate ao crime de lavagem de dinheiro.

O texto final deverá ser apresentado aos senadores no fim deste mês, com votação simbólica pela comissão de juristas. Em seguida, o trabalho será encaminhado ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) vai analisar a proposta e apensar todos os projetos referentes ao assunto em exame pelo Congresso.

A corrupção e o desenvolvimento

Fonte: Valor Econômico – 02/05/2011

Começo a colaboração nesta página sentindo-me honrado e, também, ansioso por contribuir para um debate respeitoso entre posições que podem ser divergentes. Sem divergência, é difícil haver debate; sem respeito, é impossível. Proponho hoje uma questão que sei candente, a da corrupção. Cresci, acreditando que corrupção e subdesenvolvimento andavam juntos. Alguns achavam que o Brasil era subdesenvolvido, porque corrupto; sem chegar a tanto, eu considerava nosso país corrupto, porque subdesenvolvido. Mas será mesmo assim?

Porque, mundo afora, se vê que também os países mais ricos e desenvolvidos mostram bastante corrupção. Nem eu, nem nenhuma entidade que estude a corrupção, temos dados consistentes sobre sua dimensão real. Mesmo o indicador mais utilizado, o da Transparência Internacional, fala em percepção da corrupção. É possível que a corrupção maior passe despercebida. Talvez nunca venhamos a saber dela. Quando o portal do Governo revelou os gastos com cartões corporativos, mesmo os que causaram maior indignação eram de pequena monta; certamente, grandes corruptos não deixam pistas. Mas, de todo modo, o que se lê sobre as nações mais desenvolvidas, com a exceção dos países escandinavos, aponta escândalos espantosos. Não falemos apenas na Itália de Berlusconi, na França de Chirac, nas acusações a ex-primeiros-ministros espanhóis ou na crise holandesa de 1976, quando se soube que o marido da rainha recebera suborno da Lockheed. Concentremo-nos na invasão norte-americana do Iraque e nos contratos que ela proporcionou.

Corrupção não é só atraso, porque existe em países ricos

Em 2003, eu lecionava na Universidade de Maryland. No seu campus de College Park, vi um debate sobre a invasão iminente. Um seu defensor explicou que ela nada custaria aos contribuintes, porque seria paga com o petróleo iraquiano. Nunca antes eu tinha visto um ladrão ser tão explícito. Mas a verdade é que não apenas o ouro negro do Iraque foi entregue a quem os invasores quiseram, como também o orçamento dos Estados Unidos foi sangrado a fundo. Contudo, as denúncias de benefícios a empresas vinculadas ao então vice-presidente norte-americano não levaram a nenhum inquérito mais exigente. Comparando, o fato de estarem hoje indiciados Chirac, na França, e entre nós os suspeitos pelo mensalão do PT, é um diferencial significativo, embora muitos creiam que nada disso resultará em condenações.

Ou pensemos historicamente. Uma das fases de maior desenvolvimento econômico dos Estados Unidos, o final do século XIX, é também o apogeu dos “robber barons”, barões ladrões, alcunha dada a industriais e financistas que não tinham escrúpulos no trato dos empregados, fornecedores, concorrentes e na sonegação tributária. Suas práticas indecentes não impediram o país de crescer economicamente.

Considero muito bom que, em nossos dias, movimentos militem por um ambiente de negócios marcado pela honestidade. Ter garantias éticas é essencial – sustenta André Franco Montoro Filho num bem argumentado artigo do livro “A cultura das transgressões”, editado pela ETCO – para que o capitalismo funcione. Torço para que ele tenha razão. Mas penso que essa é uma forma apenas de capitalismo, que não funcionou em todas as épocas nem em todos os lugares. Certamente, é o preferível para a sociedade como um todo; deve melhorar a vida dos funcionários, dos concorrentes, sobretudo os pequenos empresários, e o papel do Estado. Mas não significa que seja essa, necessariamente, a tendência dominante do capitalismo.

Quer isso dizer que devamos nos resignar à corrupção? De forma alguma. Porém, primeiro, não devemos confundir sua percepção com sua realidade. Hoje, a boa notícia é que se denuncia mais a corrupção do que sob a ditadura. Mas isso não quer dizer que o regime de exceção fosse mais honesto – apenas, que era mais difícil descobrir e relatar o mau uso do dinheiro público. A sociedade está mais exigente. É preciso que tanto os órgãos da Justiça quanto a imprensa aperfeiçoem seus meios de identificar e denunciar os atos de corrupção. Mas também há um segundo aspecto que devemos apontar.

É frequente ouvir-se, hoje, que ser ético agrega valor. Em certos casos, é verdade. A empresa que promove um recall, o governante que corrige uma política, o jornalista que reconhece um erro podem sofrer um impacto negativo em sua imagem a curto prazo, mas depois disso conseguem maior confiança de seu respectivo público. Perdem no varejo, ganham no atacado. Nosso tempo valoriza essas condutas, e isso é bom. Só que políticos, empresas e jornais também lucram com práticas, digamos, menos ortodoxas. Dos exemplos de boas práticas, não podemos inferir que sempre a ética é bom negócio. Porque nem sempre é. E, sobretudo, não deve ser negócio.

Não há ética sem o risco do prejuízo e do fracasso. Quando pregamos que a ética é vantajosa ou mesmo rentável, esquecemos que muitas vezes ela não o é. “Hoje, para ser ético, às vezes é preciso ser herói”, diz um personagem no romance “A casa da Rússia”, de John LeCarré. Nem todos nós teremos estofo ou disposição para o heroísmo. Mas devemos reconhecer que as razões para combater a corrupção e assegurar a lisura na política, na economia e na sociedade são, afinal de contas, éticas mesmo. Combater a corrupção para melhorar o ambiente econômico é muito bom, mas não basta. Prometer a jovens – empresários, políticos ou jornalistas – um mundo ao mesmo tempo lucrativo e decente é correr o risco de não fortalecer sua fibra moral. Quando tiverem de escolher, saberão fazê-lo? Terão a coragem necessária para enfrentar o prejuízo que a decência, por vezes, exige?

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

 

Corruptos: somos todos ou só os outros?

Fonte: Portal Exame – São Paulo/SP – BLOGS – 09/12/2010

Autor: Bolívar Lamounier

Uma pesquisa da Transparência Internacional divulgada hoje pela Folha de S. Paulo mostra que menos de 6% dos brasileiros admitem ter praticado pequenos subornos para obter vantagens junto a agentes públicos de saúde, educação e fiscais. Esse diminuto índice coloca-nos ao lado de 23 outros países abençoados pelo santo padroeiro dos honestos.

O problema, segundo o mesmo levantamento, é que 64% dos brasileiros acham que a corrupção aumentou nos últimos três anos. Ou seja, quase não há corrupção, embora sejamos quase todos corruptos.

Discrepâncias como essa parecem-me inevitáveis nesse tipo de pesquisa – não tanto por seu caráter subjetivo, mas por se pedir ao entrevistado uma “confissão” algo embaraçosa e em seguida convidá-lo a vituperar genericamente os males da sociedade.

Como hoje é o Dia Internacional do Combate à Corrupção, vou meter a minha colher de pau no assunto corrupção, reproduzindo trechos de um texto que escrevi em 2007 para um seminário promovido pelo Instituto ETCO sobre a “cultura da transgressão”.

Os meios de comunicação têm ultimamente martelado a tecla de um “amoralismo” ao ver deles difundido em todas as camadas sociais. Esse diagnóstico soa-me correto.

Na verdade, milhões de cidadãos sequer identificam o que há de transgressivo em certas transgressões; outros tantos as vêem com complacência ou indiferença, e muitos admitem havê-las cometido ou cometê-las com freqüência.

Chego a me perguntar se a sociedade brasileira não terá saltado simplesmente de uma  pré-modernidade meio amoral (a do colonialismo português) para uma “modernidade” que também o é, só que em muito maior escala.

Um primeiro ponto a ressaltar é portanto a debilidade de nossa ordem normativa, ou seja, de nossas normas e valores como balizas para o comportamento em sociedade. De fato, entre nós, orientações e restrições derivadas da  tradição, da família, da religião ou da moral nunca foram muito eficazes na função de inibir ou coibir comportamentos transgressores.

Não descabe lembrar que, no Brasil, as igrejas cristãs nunca exerceram sobre seus rebanhos uma autoridade sequer remotamente  comparável à que elas ostentavam na Europa e nos Estados Unidos. Falta-me competência para discutir se a mencionada debilidade ocorreu devido à escassez de  recursos materiais à disposição do clero,  à míngua de vocações ou de fato à alegada inexistência de pecado abaixo do equador .

Outro ponto importante, gostemos ou não, é que a corrupção (o comportamento transgressivo) se generalizou – isto não só entre nós, por toda parte -, como o lado mau de uma moeda cujo lado bom é a modernidade econômica : o aumento da mobilidade social, a multiplicação de oportunidades, o crescente acesso das camadas de menor renda a uma infinidade de bens e serviços.

Nesta perspectiva, essa transgressão onipresente dos dias de hoje é a versão secular da queda do paraíso ou, se preferem, um correlato perverso da modernidade. Associa-se à “dessacralização” do mundo e à legitimação generalizada do desejo na  motivação do comportamento individual.

Nos anos 50 – época panglossiana do “desenvolvimentismo” – , numerosos intelectuais e políticos de toda a América Latina acreditaram que a industrialização e a urbanização se processariam sem solavancos e que os benefícios da modernidade logo se distribuiriam entre os estratos da sociedade.

Dois erros crassos de previsão. Mas o pior é que eles também previram ou pelo menos supuseram implicitamente que o resultado de tais processos seria uma sociedade bem integrada, pacífica, com índices substancialmente mais baixos de criminalidade.

Decorrido meio século, se existe entre os brasileiros alguma percepção compartilhada é com certeza a de havermos sido logrados pela história. A realidade é que todos nós, pobres e ricos, vivemos numa sociedade  – como se costuma dizer –  anômica,  esgarçada e  chocantemente violenta.

Mas não é justo jogar tanta responsabilidade nos ombros dos sociólogos e economistas de 50 anos atrás. Se eles projetaram uma trajetória relativamente indolor, foi porque não poderiam antever os efeitos de quatro ou cinco décadas de industrialização, crescimento demográfico acelerado, urbanização massiva e altamente concentrada em grandes áreas metropolitanas, quinze anos de crescimento econômico em “marcha forçada” seguidos por um quarto de século de quase-estagnação, e três décadas (do início dos anos 60 até 1994) de super-inflações praticamente ininterruptas .

Como poderia tudo isso ter acontecido sem estirar ainda mais a pobreza e as desigualdades sociais pré-existentes ?  Como imaginar um soft-landing, uma reintegração suave, numa sociedade malsaída de tamanhas rupturas e contradições ?

Mas atenção, atenção. Eu decididamente não subscrevo a teoria que vʠa criminalidade como consequência direta da pobreza ou das desigualdades de renda ; ou de ambas combinadas com o que acima chamei de “dessacralização” do mundo. Há outras variáveis em jogo.

O que estou dizendo é que a modernização brasileira – pelas razões que resumi acima -, foi tremendamente destrutiva para o tecido social e normativo, mesmo admitindo a prévia debilidade deste num país de formação colonial e escravista.

A tudo o que foi dito até aqui é obviamente necessário acrescentar o papel do Estado.  Em tese, a transgressão deve ser controlada pela ação preventiva, dissuasória e  repressiva do Estado. Mas entre a tese e a realidade existe em geral uma grande distância. Nenhum Estado é 100% efetivo nessa missão.

No Brasil, além de tolerar ou não ser capaz de prevenir muitos malefícios, o Estado tem direta ou indiretamente produzido outros tantos. Em sua função de aplicar as leis (law enforcement), ele não tem sido capaz de controlar o volume de transgressões, aliás nem de evitar que tais comportamentos se alastrem.  E nem preciso me deter na porosidade do território nacional a redes transgressoras de extrema periculosidade, como o narcotráfico. Ou no fato de os próprios corpos policiais aos quais incumbe materialmente a tarefa de coibir ações transgressivas serem vulneráveis à corrupção em suas numerosas formas.

A carga tributária e a elevada proporção do PIB que ela representa também merecem exame pela ótica de prováveis efeitos  “transgressogênicos”. Ninguém ignora que a carga atual esteriliza empreendimentos e desestimula empreendedores em todas as classes, restringe a criação de empregos e legitima, por assim dizer, a sonegação.

Que dizer da corrupção política, do clientelismo e da “privatização do Estado” ?

Há quem singelamente veja a corrupção política atual como uma  “sobrevivência” ou um prolongamento “natural” daquele antigo  “clientelismo” do interior e das áreas rurais, movido por ambições que em geral se contentavam com nomear a professora rural ou o agente dos correios.

Sim, claro, aquele velho clientelismo em parte sobreviveu. Seu habitat preferencial é hoje a periferia  das grandes cidades. Na verdade, ao perder suas bases rurais, o clientelismo tornou-se esquálido como fonte de influência política.

O que ocorreu de importante na segunda metade do século 20, foi que o Estado se agigantou como comprador de bens e serviços ; dessa forma, numerosas posições e funções de governo ipso facto se transformaram em alavancas de poder e enriquecimento. A escala de operações estendeu-se notavelmente.

Tendo como piso as pedestres “mordomias” e a manutenção de máquinas de escritório, e passando pelo eterno empreito de obras públicas do porte de rodovias, portos e aeroportos, ela hoje inclui até a contratação de serviços requintados, como  a publicidade da administração direta e das estatais.

Com seu faro apurado, centenas de piratas logo se habilitaram para singrar esses novos mares. Conhecendo como ninguém  a máquina pública, logo aportaram no arquipélago dos favorecimentos, das compras governamentais, das licitações fraudáveis e dos “recursos não-contabilizados”.

Esquematicamente, o que pretendi dizer com a peroração acima foi que, ao romper a barreira do subdesenvolvimento, o Brasil rompeu também o pouco que possuía de ordem normativa, e apenas começa a construir instituições e valores comparáveis, nesse aspecto, aos das sociedades mais desenvolvidas.

O mais provável é a almejada reintegração da sociedade se dar  – se é que vai se dar -, após dilatado período de tempo. Para isso, níveis mais altos de desenvolvimento serão uma condição necessária, mas não suficiente.

Muito dependerá da progressiva redução das desigualdades sociais, da oferta de oportunidades, do reforço de padrões civilizados de convívio, de uma reorientação profunda na estrutura e na forma de agir do Estado, e de um combate sem trégua ao narcotráfico e à criminalidade que dele decorre.