Autores falam sobre o “Cultura das Transgressões” em programa de rádio

O presidente do ETCO, Roberto Abdenur, e três dos cinco autores (Renato Janine Ribeiro, Aristides Junqueira e Marcílio Marques Moreira) do livro “Cultura das Transgressões no Brasil – Cenários do Amanhã”, recém-lançado pelo ETCO em parceria com o iFHC, concederam entrevistas individuais para o programa “Começando o Dia”, da rádio Cultura FM de São Paulo.

Comandado pelo jornalista Alexandre Machado, o programa mistura música clássica com notícias de política, economia, cultura, sustentabilidade e comportamento. Vai ao ar de segunda a sexta-feira a partir das 8h.

Confira abaixo as entrevistas:

Entrevista Renato Janine Ribeiro (23/08/2011)

Entrevista Aristides Junqueira (24/08/2011)

Entrevista Roberto Abdenur (26/08/2011)

Entrevista Marcílio Marques Moreira (29/08/2011)

Freio na Voracidade

O Estado de S. Paulo – 04/09/2011

Por Renato Janine Ribeiro

O capitalismo é ético? Eis uma questão muito difícil de responder. Basicamente, hoje há duas grandes linhas a respeito. Uma enfatiza a dinâmica de um sistema, ou um estilo, que libera a produção das amarras tradicionais e assim revela capacidade inigualável de criar e talvez até distribuir riquezas. Mas o preço dessa libertação é um caráter nada ou pouco ético: o capitalista é movido por um “instinto animal”, promove uma “destruição criativa”. Na melhor das hipóteses, é neutro eticamente, o que chamamos de “amoral”. Com frequência é até predatório, o que chamamos de “imoral”. Só por ele, não respeitaria direitos trabalhistas – tanto assim que, nas últimas décadas, vários deles foram reduzidos – nem teria reverência pela natureza e o ambiente.

 

Isso não representa contudo, necessariamente, uma condenação do capitalismo. Apenas mostra que ele é excelente naquilo que se propõe: produzir. Precisa, porém, de controles externos. Esses podem ser exercidos pelo Estado, pela sociedade, pela opinião pública. Desse ponto de vista, o que pode introduzir ética na economia são as pessoas, enquanto não empresários. Isto é, o próprio empresário, por valores éticos que não são seus como empresário, mas como pessoa, como sujeito moral, pode orientar sua atividade produtiva numa direção melhor. Se não for ele, será a sociedade. Quando cada vez mais pessoas compram levando em conta não só o preço, mas o que as empresas fazem de bom e de mau, é isso o que acontece. Exemplo importante no Brasil foram as campanhas – movidas por pessoas, inclusive empresários da Abrinq – contra o trabalho infantil. A Zara, acusada há dias de comercializar produtos em que se usa trabalho escravo, padece em sua imagem por isso.

Esse é um primeiro modo de ver o capitalismo, digamos, “selvagem”. Mas há outra percepção, ou concepção, do capitalismo. Esta aparece quando organizações como a Etco se empenham em defender um ambiente limpo de corrupção para os negócios melhor florescerem. Aqui o problema é, como se vê na série sobre a cultura das transgressões que saiu pela editora Saraiva (de cujo terceiro volume participei), de que maneira evitar a primazia da transgressão, que faz as boas regras – boas segundo a lei e a ética – serem violadas em nome de uma vantagem fácil que, porém, desmoraliza a sociedade, amoraliza a economia e imoraliza a política. Essa linha de pensamento estaria mais perto dos calvinistas de Max Weber, que sentiam a “ética protestante” expressando-se no “espírito do capitalismo”. Pessoas empreendedoras, que mourejam, fazem de tudo para a sociedade prosperar: o empresário weberiano do século 16 ou 17 nada tem a ver com o banqueiro da caricatura, fumando charuto, indolente, espertalhão, mancomunado com os poderosos, corruptor. Esse empreendedor dos começos da modernidade pode não ser simpático – nas Américas, seria senhor de escravos, na Holanda, não reconheceria direitos a seus empregados -, mas ele próprio trabalhava, e muito. De certa forma, quando se fala num capitalismo que requer uma ética intensa, é nele que se pensa.

Mas em nossos dias surge um upgrade. Cada vez mais, no lugar da ética protestante e moralista, aparece uma preocupação ética que nasceu da ideia do meio ambiente e agora se desenvolve para a sustentabilidade. Não tem mais por modelo ideal o empresário calvinista que faz, da empresa, sua razão de vida. Ao contrário, cada vez mais a vida é a razão de ser de tudo o que se faça, inclusive (mas não só, nem prioritariamente) a empresa. Tudo começa com o descontentamento ante a poluição. A economia que se desenvolve desde a Revolução Industrial tem um custo altíssimo para a vida – humana, animal, vegetal. Londres passa cem anos coberta pelo fog, uma neblina que se deve à poluição das fábricas. As pessoas não se enxergam. A cidade fica invisível e os cidadãos, cegos ao seu entorno. Contudo, após a 2ª Guerra Mundial, uma preocupação com a natureza cresce pelo mundo. Movimentos verdes lutam contra a má qualidade do ar, da água, em prol da preservação de florestas. A essa altura, por “verde” se entende o meio ambiente natural ou assimilado. Contudo, com os anos, as causas verdes anexam um elenco de outros valores. Não é só a defesa do mundo não contaminado pelo homem. É a defesa do homem, contra o que o desgasta ou desvaloriza.

Também se propõe uma reorientação da ciência. Tomemos o filósofo que é o primeiro grande referencial de toda preocupação com o meio ambiente, Rousseau. É um amante da natureza. Começa seus Devaneios do Caminhante Solitário narrando um passeio pelos arredores de Paris, em que olha as plantas, identifica-as, extasia-se. Mas é também alguém que faz seu début literário com um escrito, premiado pela Academia de Dijon, sustentando que “as artes e as ciências” – isto é, o que chamamos de tecnologia e ciência – fizeram mal, mais do que bem. Desnaturaram o mundo. Degeneraram o homem. Rousseau não vê em nada moderno, seja a economia, a política ou a ciência, capacidade de reverter o processo pelo qual “o homem nasceu bom e a sociedade o corrompe”.

Mas o que notamos na ciência das últimas décadas é um forte empenho em reduzir e mesmo suprimir os danos acarretados pelo desenvolvimento. Lembremos que não faz muito tempo a ciência e a tecnologia eram, em ampla medida, influenciadas por encomendas militares. Isso mudou. Tenhamos em mente que muitas pesquisas são conduzidas em nome de causas destrutivas, ainda hoje. Muitos desconfiam que os cultivos transgênicos, ou têm certeza de que os veículos de transporte individuais, causam males em maior número que as vantagens. Os carros são bons a curto prazo para poucos, mas péssimos para o futuro da humanidade como um todo. Mesmo assim, porém, em casos como o da indústria do tabaco, cientistas cortaram seu elo umbilical com ela, como se vê no filme O Informante. E são cientistas de renome que formam o “core” da Comissão Internacional de pesquisa sobre as Mudanças Climáticas, que talvez constitua o órgão mais prestigioso na luta por mudar o mindset que governa uma produção de custos negativos para a sociedade e a natureza.

Com uma ciência e uma tecnologia mais amigas do verde, um verde que saiu das plantas e colore tudo o que é vida e mesmo cultura, isto é, passa a propor uma qualidade de vida melhor para os humanos e seus parceiros no planeta, com a defesa da biodiversidade e do que podemos chamar a culturo-diversidade, por que não uma economia de novo recorte? Será possível o projeto de uma empresa ter no seu cerne a sustentabilidade, isto é, a proposta de que nenhuma intervenção humana piore o que foi recebido? Essa é uma exigência alta. Para eu me alimentar, tenho de matar animais ou mesmo vegetais. (O momento mais engraçado do filme Notting Hill, para mim, foi quando uma moça se disse vegetariana lapsariana. Lapso significa queda. O que ela dizia é que só comia frutas e legumes que já tivessem caído da planta que as gerou. Não comeria uma maçã arrancada da macieira, porque estaria matando um ser vivo. Fica difícil, claro, viver com uma ética tão radical.) Mas, se tenho de matar ou causar danos, posso reduzi-los, talvez revertê-los por completo e, quem sabe, um dia (esse é o sonho!), até melhorar as condições do que foi recebido. Aqui amplio a ideia de que recebemos insumos “da natureza” para a de que recebemos insumos também humanos: o trabalho, a saúde, a boa disposição uns dos outros. É sustentável a ação que não apenas zera o dano causado, mas também promove ganhos. Suponhamos uma empresa que decida fornecer, a seus funcionários, alimentação saudável – a cada três horas, como hoje se recomenda, em vez de poucas e lautas refeições. Pode melhorar a saúde deles. Ela assim terá devolvido mais do que consumiu. É claro que há tantos insumos que o cálculo não pode isolar um dos outros. Mas é um exemplo.

Porque, no fundo, nossa questão é: o que fará uma empresa ou um empresário agir eticamente, ser ético? Tudo o que afirmei não dá uma resposta definitiva. Quando uma empresa faz questão de não explorar o trabalho infantil ou de preservar a natureza, essa iniciativa é “da empresa” ou dos indivíduos que, entre outras coisas, são seus donos? A diferença é importante. Toda empresa busca o lucro. Mas o que a faz criar limites para sua voracidade? É algo que faz parte do próprio projeto empresarial, ou serão elementos externos, inclusive os valores pessoais dos proprietários? Para sair da moral e entrar no moralismo, conta-se que houve um tempo em que um vinho que tem no nome a palavra “diabo” não era distribuído aqui porque os importadores eram cristãos fervorosos. Era um valor deles, não da empresa. E uma empresa pode ter valores? Uma empresa é diferente dos seres humanos que são seus donos, que a fazem? Questões difíceis. O que parece certo, isso sim, é que uma empresa pode ter no seu próprio projeto de negócios uma solidez sustentável e que isso será mais viável se ela tiver compromissos sociais e ambientais e, além disso, estiver na linha de ponta, no cutting edge, da ciência. O mais, resta a esclarecer – ou a fazer.

 

ETCO lança novo livro nesta quinta

O ETCO e o Instituto Fernando Henrique Cardoso realizam no dia 18 de agosto, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o coquetel de lançamento do livro Cultura das Transgressões no Brasil – Cenários do Amanhã.

Com textos de Aristides Junqueira, ex-procurador geral da República; Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, Paul Singer, economista e secretário nacional de Economia Solidária; Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da USP e Marcílio Marques Moreira, presidente do Conselho Consultivo do ETCO, o livro completa a série Cultura das Transgressões e é resultado do Seminário promovido em abril pelo ETCO e Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC).

Os autores estarão presentes para autografar a obra.

Lançamento do livro Cultura das Transgressões

Data: 18 de agosto de 2011
Horário: a partir das 19h30
Local: MAM – Museu de Arte Moderna
Endereço: Parque do Ibirapuera – Portão 3

Cultura das Transgressões no Brasil: Visões do presente

No Brasil vivemos uma espécie de paradoxo: ao mesmo tempo que as condições materiais de vida melhoram, temos a sensação de experienciar uma espécie de “crise moral”, que se manifesta desde as relações entre as pessoas até as relações entre quem governa e quem é governado.

Haveria de fato uma “crise moral” com a qual devêssemos nos preocupar? Ou trata-se apenas de uma percepção distorcida, produto da nossa dificuldade em identificar e compreender a formação de novos valores, em substituição aos valores de uma sociedade tradicional?

É em torno dessas questões que giram os ensaios reunidos neste livro, o segundo da série Cultura das Transgressões no Brasil, que o iFHC e o ETCO realizam em parceria.

A apresentação foi feita por André Franco Montoro Filho e Fernando Henrique Cardoso.

 

Sobre os autores:

Marcílio Marques Moreira é presidente do Conselho Consultivo. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Georgetown. É membro honorário do conselho Universitário da PUC e efetivo do Conselho de Administração da Universidade Católica de Petrópolis e do FGV entre outras instituições de caráter acadêmico e cultural no Brasil e nos EUA.

Fábio Wanderley Reis é doutor em Ciência Política pela Universidade Harvard, é professor emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, membro do Conselho Deliberativo do CNPq, ex-presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico.

Caio Túlio Costa é jornalista, professor de Ética Jornalística na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, doutor em Ciências da Comunicação pela USP e consultor em novas mídias.

Yves de La Taille é professor titular do Instituto de Psicologia – USP. Cadeira de Psicologia do Desenvolvimento e Psicologia Genética – Instituto de Psicologia – USP.

Içami Tiba é psiquiatra pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) há 41 anos; psicodramatista e consultor de família. Conselheiro do Instituto Nacional de Capacitação e Educação para o Trabalho “Via de Acesso”.

 

CULTURA DAS TRANSGRESSÕES

Visões do Presente

Marcílio Marques Moreira, Fábio Wanderley Reis, Caio Túlio Costa, Yves de La Taille e Içami Tiba

Editora Saraiva
1.ª edição 2009
brochura
168 páginas
ISBN: 978-85-02-09024-8

iFHC e ETCO promovem seminário sobre cultura das transgressões

Evento - Cultura das Transgressões

Foto (à partir da esquerda): Janine Ribeiro, Henrique Cardoso, Paul Singer e Marques Moreira

Um auditório lotado marcou a realização, no dia 18 de abril, do Seminário A Cultura das Transgressões no Brasil: Cenários do Amanhã, promovido pelo ETCO e Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC) com palestras de Aristides Junqueira, ex-procurador geral da República; Paul Singer, economista e secretário nacional de Economia Solidária; e Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da USP.

Para Marcílio Marques Moreira “a parceria com o iFHC tem sido valiosa para sustentar a discussão sobre o tema da transgressão, uma vez que as inovações da sociedade têm que obedecer balizamentos permanentes, no que diz respeito aos princípios éticos”.

Durante o encontro, Fernando Henrique Cardoso disse estar “relativamente otimista quanto ao futuro” e falou sobre os riscos das pequenas concessões. “Enquanto aceitar as premissas de que pequeno furto não é furto ou de que roubar um pouquinho não é roubar, a sociedade não fará o movimento necessário que leve à efetiva sanção penal e social da transgressão”, alertou o ex-presidente.

Entre os 80 convidados presentes, estiveram no iFHC nomes como Celso Lafer, José Pastore, José Gregori, Leôncio Martins Rodrigues, além de Hoche Pulcherio e representantes do ETCO.

Esse seminário deu continuidade à série Cultura das Transgressões, que já teve duas edições: Lições da História, em 2007, e Visões do Presente, em 2009. Assim como nas anteriores, esta edição será transformada em livro que o ETCO publicará no segundo semestre deste ano.

 

Cultura das Transgressões no Brasil – Lições da História

Segunda edição do livro editado pelo ETCO em parceria com o iFHC investiga a origem das práticas que fogem ao senso das responsabilidades. A obra foi elaborada a partir de um seminário, realizado em agosto de 2007 no iFHC, onde a questão central foi a cultura de transgressões no Brasil.

Pouca reflexão tem merecido no Brasil o tema das transgressões, não obstante a prática de comportamentos ao arrepio de leis, normas e códigos de conduta estar tão arraigada no jeito de ser do povo brasileiro, no individual e no social, a ponto de ser um elemento fundamental da construção da memória nacional.

 

A urgência – sempre presente – da necessidade de trazer à luz do debate tema tão complexo e ao mesmo tempo difuso torna imprescindível a leitura do livro Cultura das Transgressões no Brasil – Lições da História, recém-lançado pelo ETCO – Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, em parceria com o Instituto Fernando Henrique Cardoso, iFHC. Sob a coordenação do ex-ministro Marcílio Marques Moreira e do próprio ex-presidente Fernando Henrique, e com apresentação do economista e presidente do ETCO, André Franco Montoro Filho, o livro traz um bom apanhado das várias facetas que dão forma às transgressões, com a preocupação de tentar rastrear ao longo da história do país a origem e a evolução de práticas que fogem ao senso das responsabilidades e das obrigações nos mais diversos segmentos, tanto no âmbito público como no privado.

 

Por serem multifacetadas, as transgressões permitem interpretações e enfoques variados, e está justamente na “riqueza” das formas de sentir e de encarar o tema, tão vital ao alargamento da discussão, a grande contribuição da iniciativa do ETCO junto com o iFHC. Resultado de seminário dedicado ao tema, o livro aglutina textos de quatro especialistas, estudiosos da problemática social, política e cultural do país, sob a ótica da História, do Direito, da Antropologia e da Ciência Política.

 

Joaquim Falcão, diretor da Escola de Direito da FGV-Rio, introduz em seu texto a noção de “transgressões coletivizadas”, em que a repetida e costumeira prática das transgressões individuais acaba por extrapolar o limite da unidade para ganhar a forma do coletivo, entendido por ele como resultado da repetição de um mesmo ato por milhões de pessoas ou entidades. Recorre ao direito da propriedade para discorrer de forma prática sobre três situações características da crescente ilegalização da vida cotidiana: o direito à moradia, a relacionada questão da escritura definitiva e o direito autoral. Falcão crê que são exemplos da estrutura legal monopolista sedimentada no país. Ele defende a diversifi cação da legislação na forma de uma pluralização dos atos legais em conformidade com os aspectos mais complexos e diferenciados que orientam hoje as relações sociais.

 

Já o historiador José Murilo de Carvalho aprofunda o conceito do monopólio legal e destaca em seu texto o papel que leis e legistas sempre tiveram na evolução política do país. Para ele, o cipoal de leis, que benefi cia os operadores do sistema policial e legal, tem o efeito de elitizar a Justiça e de incitar à transgressão. É como se o que José Murilo chama de “fúria legiferante” funcionasse como uma espécie de fator de realimentação da transgressão, criando um círculo vicioso que só beneficiaria os próprios operadores da lei ou os que podem pagar as custas de um processo.

 

Para romper com esse estado de coisas, José Murilo acredita que algumas atitudes, na forma de pensar e de agir, precisariam desaparecer da sociedade, como a postura moralista característica do “udenismo”, o fatalismo e o cinismo pragmático, além da visão corrente de que a lei é meio descartável, em vez de ser entendida como um fi m, necessário à sobrevivência do sistema da democracia representativa.

 

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Na economia, o país sustenta um sistema sofisticado e avançado, mas ainda está subordinado a um arcabouço institucional pesado e atrasado

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O texto do antropólogo Roberto DaMatta destaca o aspecto “representativo” do entorno do transgressor na medida em que, para ele, a variável “quem foi” englobaria a natureza do crime cometido em um complica do complexo de valores igualitários e hierárquicos. “Nosso problema não seria a lei, mas o cuidado em sua aplicação, o que obriga a considerar quem cometeu o crime”, diz ele. Também aqui se levanta a importância de uma mexida mais profunda nos valores sociais que levem à politização do tema, pois, acredita DaMatta, sem que se tome consciência da diferença entre “transgressão” e “transgressões” concebidas e vividas em sociedades específicas, dotadas de regime de culpabilidade, vergonha, respeito e honra igualmente particulares, a tendência é de continuidade na introdução de mecanismos legais que, “mesmo capazes de cercar todo o quarteirão, deixam escapar o ladrão”.

 

O cientista político Bolívar Lamounier tenta estabelecer uma relação entre transgressão e economia de mercado. Seu intrigante artigo questiona a possibilidade de a classe média desempenhar o papel de agente de revisão de valores e de apoios políticos que impulsionem a economia de mercado e possam frear a escalada da transgressão. Seria, pergunta ele, a classe média brasileira uma solução ou um problema no contexto do tema das transgressões? A resposta não é trivial. Bolívar está, no entanto, convencido de que o persistente aumento da transgressão no Brasil é um correlato inevitável do processo de modernização, o preço que se paga por uma sociedade dinâmica, moderna e democrática. O outro lado da questão, ressalta, está no atraso acumulado no campo institucional, na construção de valores e padrões de sociabilidade comparáveis aos de países mais desenvolvidos. A leitura do livro Cultura das Trans gressões no Brasil vem confi rmar a percepção de que vivemos uma realidade profundamente dicotômica: o país opera em um sistema sofi sticado e avançado no setor econômico, mas ainda está subordinado a um sistema institucional pesado e atrasado. Entre um e outro, prolifera uma sociedade que se beneficia do progresso da eco nomia enquanto tenta sobreviver ju risdicionalmente aos saltos, pulando de galho em galho.

 

* Maria Clara R. M. do Prado é jornalista sócia-diretora da Cin – Comunicação Inteligente, colunista do jornal Valor Econômico e autora do livro A Real História do Real, editado pela Record.