Artigo: A precariedade do estado de direito

A Constituição proclama, em seu art. 1º, que o Brasil é um estado democrático de direito, o que presume a submissão de todos à lei e à vontade popular.

Estabilidade e clareza são requisitos mínimos para a observância da lei. Não é isso que se vê no Brasil. Normas são alteradas frequentemente, não raro com qualidade técnica deplorável. A interpretação dada às normas também muda continuamente, sem justificativa plausível.

As evidências dessa degradação normativa, em desfavor da segurança jurídica e do estado de direito, superabundam na mídia. Emendas constitucionais são aprovadas a toque de caixa. Decisões judiciais de grande relevância são tomadas em plenário virtual. Apresento, em seguida, alguns exemplos dessa degradação.

A Emenda Constitucional nº 87, de 2015, que trata da tributação do ICMS nas operações interestaduais não presenciais, estabelece, no art. 2º, que seus efeitos ocorreriam a partir de 2015, ao passo que, no art. 3º, fixa 2016. Esse erro primário passou totalmente desapercebido.

A Constituição prevê que a tributação de combustíveis e lubrificantes pelo ICMS deveria, entre outros requisitos, ter alíquota uniforme no território nacional.

A Lei Complementar nº 192, de 2022, supriu a exigência constitucional de especificação daqueles produtos para instituição da alíquota uniforme, porém invadiu a competência dos Estados ao estabelecer critérios para sua fixação. Não é isso que diz a Constituição. Já os Estados contestaram aquela norma, incluindo nas alegações a de que uniforme não é idêntico. Não é isso o que diz o dicionário.

Decisão judicial recente estabeleceu a não incidência do imposto de renda nas pensões alimentícias recebidas, utilizando, entre outros fundamentos, o de que seria um caso de bitributação. Não é o que está nos arts. 4º e 8º da Lei nº 9.250, de 1995, que prevê a dedutibilidade da pensão alimentícia paga. Gerou-se, ao contrário, uma hipótese de dupla não tributação. Se um casal se separa, o imposto não incidirá nem em que paga, nem em que recebe. Um convite à simulação, especialmente para os ricos.

Desde a instituição do ICM, em 1967, se entendia que aquele imposto e o ICMS, seu sucessor, incidiam nas operações interestaduais havendo ou não transferência de titularidade. Decisão judicial, em 2021, reformulou esse entendimento, ao considerar inconstitucional a incidência sem transferência de titularidade. Será que passamos mais de meio século convivendo com essa inconstitucionalidade sem que ninguém se desse conta?

 

Ser legal no Brasil não pode ser uma opção

As pessoas físicas e jurídicas, no Brasil, vivem cotidianamente as dificuldades decorrentes do não cumprimento das leis. Esse tema está diretamente ligado a um dos fundamentos do próprio desenvolvimento do país, a segurança jurídica.

O poder público tem o dever de respeitar e fazer com que seja respeitada a Constituição Federal. Ninguém está acima dos seus princípios. A atração de investimentos, com a geração de empregos e renda, depende da certeza de que todos os agentes do mercado vão respeitar as mesmas regras, que os direitos e contratos serão respeitados. O Estado deveria, de um lado, facilitar a vida de quem quer agir corretamente e, de outro lado, combater aqueles que transgridem a lei. Conceitos óbvios, porém, o caminho para garantir essa realidade normal em uma República não é nada simples.

O necessário cumprimento de leis, decretos, regulamentos em qualquer área pode ser um verdadeiro tormento. São evidentes as agruras de quem quer constituir uma empresa, conseguir um mero habite-se para uma casa, obter licenças de funcionamento de uma loja, acompanhar a transbordante legislação tributária ou as interpretações oscilantes dos tribunais.

Em paralelo, temos o avanço das práticas ilegais no mercado: contrabando, pirataria, contrafação, fraudes, subfaturamento, não cumprimento de regulamentos técnicos, sonegação, atos que distorcem a concorrência e pervertem o ambiente de negócios.

Esse quadro é preocupante. As empresas que cumprem suas obrigações têm que competir com quem busca obter vantagens ilícitas, que se estruturam para burlar todas as regras e assim conquistar o mercado, elevando suas margens de lucro de modo totalmente irregular, às custas de toda a sociedade.

O resultados são impressionantes. O mercado ilegal (quinze setores produtivos), segundo dados do FNCP – Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade -, movimentou em 2019 R$ 291,4 bilhões. Os devedores contumazes, que se estruturam com o objetivo de não pagar impostos, acumulam mais de R$ 60 bilhões em débitos.

Entretanto, esses prejuízos bilionários são muito maiores, atingem valores intangíveis, pois corroem a crença de que o crime não compensa, desestimulam novos investimentos e esgarçam princípios éticos.

Para alterar essa situação a impunidade deve ser enfrentada; e a obediência das leis, valorizada. Algumas sugestões:

Leis que disciplinem as condutas com clareza e objetividade. E que sejam aplicadas de modo eficaz, diminuindo o espaço, não para o legítimo exercício da ampla defesa, mas sim para atitudes meramente protelatórias, que beneficiam quem deseja ganhar tempo e, assim, permanecer auferindo vantagens e lucros;

As iniciativas dos setores produtivos de denunciar práticas ilegais no mercado devem ser consideradas pelos agentes públicos como um importante apoio para as necessárias ações corretivas, que devem ser encaradas como relevantes e não como uma interferência no ritmo normal de trabalho;

Incentivar a cooperação e a integração entre os entes da administração pública, com a participação da sociedade civil, que pode auxiliar com informações que facilitem e agilizem o trabalho de contenção da ilegalidade;

Combater a corrupção sem tréguas, punindo quem desonra o serviço público. É certo que esse é o único “imposto” pago pelos infratores da lei;

Simplificação de procedimentos administrativos e da legislação, especialmente tributária, para que seja mais fácil cumprir a lei do que ignorá-la;

Essas propostas são conhecidas, mas há resistências. O combate à ilegalidade não é algo natural como deveria.

Um exemplo desse comportamento hostil foi dado pela consulta pública que o Senado faz sobre projetos de lei. A proposta de punir a pirataria de sinal de TV foi rejeitada por 95% das manifestações.

Esse breve panorama expõe alguns dos entraves do chamado “doing business” apresentado pelo Banco Mundial (de 190 países o Brasil está na 124º. posição) e que, há muito tempo, são debatidos, porém, a cada ano postergamos as necessárias medidas e esse atraso prejudica o nosso desenvolvimento.

Em verdade, ser legal no Brasil não pode ser uma opção; é sim um dever para que deixemos de ser o “país do futuro” que nunca chega.

Exploradores da Pandemia

Fomos atingidos em cheio. A tragédia sanitária tem exigido dos gestores públicos, parlamentares e empresas concentração total no combate ao novo vírus e na busca de alternativas que além de salvar vidas – essencial – possam manter o mínimo de condições para que nosso país não vá a bancarrota.

No enfrentamento das consequências da pandemia diversas iniciativas estão sendo adotadas para diminuir os efeitos tanto para a saúde pública como para a economia.

No Congresso Nacional, uma das propostas foi apresentada na Câmara Federal por meio do Projeto de Lei 1397/2020 que tem o objetivo de instituir medidas de caráter emergencial destinadas a prevenir a crise e de promover alterações, em caráter transitório, de dispositivos da lei que trata a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

Em seu escopo, entre outras providências, de acordo com o artigo 11 do texto apresentado, as obrigações previstas nos planos de recuperação judicial ou extrajudicial já homologados, independentemente de deliberação da assembleia geral de credores, não serão exigíveis do devedor pelo prazo de 120 (cento e vinte). Já o artigo 12 do referido projeto permite a apresentação de novo plano de recuperação judicial ou extrajudicial, tenha ou não sido homologado o plano original em juízo.

Já mais adiante (artigo 15), o PL1397/20 permite a suspensão de atos administrativos de cassação, revogação, impedimento de inscrição, registro, código ou número de contribuinte fiscal, independentemente da sua espécie, modo ou qualidade fiscal, sob a sujeição de qualquer entidade da federação que estejam em discussão judicial, no âmbito da recuperação judicial.

O Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) entende que nesse momento de pandemia iniciativas legislativas que visem reequilibrar as condições econômicas de pessoas físicas e jurídicas são bem-vindas e necessárias.

Não obstante, para que não só as condições excepcionais sejam tratadas, mas para que também seja mantido o quadro geral e abrangente de segurança jurídica e ética concorrencial, é desejoso que se façam ajustes no texto do referido projeto de lei.

No que diz respeito aos artigos acima citados, destaque-se que não por acaso existem as assembleias gerais de credores e os planos de recuperação homologados em juízo. Tratam-se de instrumentos que estabelecem prioridades e trazem segurança jurídica aos processos de recuperação judicial e extrajudicial. Do contrário, se ignorados tais dispositivos, correr-se-ia o risco de todo o processo cair em um limbo jurídico desconhecido, induzindo-as o crescimento de um contencioso judicial já exorbitante.

Já a suspensão de sanções, não atende à necessidade de preservar a atividade econômica e sim permite que empresas que já vinham procurando burlar a legislação aplicável e que, por esse motivo, sofreram sanções administrativas, sejam beneficiadas, possibilitando e facilitando a sonegação tributária estruturada e recorrente daqueles já conhecidos devedores contumazes que organizam seu modelo de negócio para nunca pagar impostos utilizando-a como vantagem competitiva para aumentar seus lucros, ganhar participação no mercado e prejudicar os concorrentes.

Nesse sentido, é que sugerimos que os artigos 11 e 12 obedeçam ao princípio da segurança jurídica, e que o artigo 15 seja suprimido, não só por ser  totalmente estranho ao mérito expresso no PL 1397/20, mas também para evitar distorções beneficiando ainda mais empresas que atentaram contra os princípios da concorrência.

Sim, devemos apoiar empresas em dificuldades. Agora, estimular quem já teve reconhecidos atos indevidos de sonegação, como modelo de negócio, não! Ainda mais agora nesse momento da pandemia no qual temos visto o crescimento dos oportunistas de plantão sempre procurando levar alguma vantagem e se aproveitar do malfadado “jeitinho” para, de alguma forma, se beneficiarem de qualquer iniciativa ou brecha da lei, desvirtuando bons propósitos do legislador.

 

*Edson Vismona – Advogado, presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial – ETCO, foi Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (2000/2002)

Basta de contencioso tributário

Discussões sobre reforma tributária geralmente se concentram em mudanças nos tipos de impostos e na forma de repartir a carga e distribuir os recursos na sociedade. Mas costumam deixar de lado um aspecto extremamente relevante para o desenvolvimento do País: a segurança jurídica do sistema tributário.

O Brasil é um dos campeões mundiais em conflitos entre fisco e contribuintes. Os especialistas estimam que, em todas as instâncias administrativas e judiciais em que essas divergências são discutidas, os valores envolvidos já chegam a R$ 3,3 trilhões, o que representa cerca de metade do PIB do País. E a tendência é de crescimento.

Para contribuir nessa discussão e na busca de soluções para o problema, o ETCO realizou em junho, em São Paulo, o seminário Tributação e Segurança Jurídica. O evento reuniu grandes juristas na busca de soluções para o problema.

Heleno Torres, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), falou sobre os pontos que devem nortear o aperfeiçoamento do sistema tributário brasileiro, incluindo a solução de conflitos nos processos tributários.

Roberto Quiroga, advogado e professor da faculdade de direito da USP e da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV Direito SP), fez palestra sobre a interpretação da norma jurídica.

Humberto Ávila, também professor da USP, tratou dos princípios da segurança jurídica tributária e de sua relação com o desenvolvimento econômico.

Hamilton Dias de Souza, advogado e conselheiro do ETCO, apresentou uma visão crítica sobre a proposta de reforma tributária em discussão no Congresso Nacional (PEC 45).

Gustavo Brigagão, professor de direito e presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), abordou os desafios tributários internacionais diante das inovações tecnológicas do século XXI.

O seminário foi coordenado pelo presidente do Conselho Consultivo do ETCO e ex-secretário da Receita Federal (governo FHC), Everardo Maciel, que destacou a importância do tema: “É o mais relevante para o país em termos de investimento, especialmente no campo tributário.”

Na abertura, o presidente executivo do Instituto, Edson Vismona, chamou a atenção para os dois extremos do problema: de um lado, os contribuintes que procuram fazer tudo dentro da lei, mas sofrem com a complexidade do sistema, a arbitrariedade do fisco e as constantes mudanças nas normas ou em suas interpretações – e muitas vezes acabam pagando impostos que não devem enquanto aguardam decisões definitivas da Justiça; e de outro os devedores contumazes de tributos, que não pagam os impostos devidos usam a complexidade e a demora nas decisões para ganhar dinheiro de forma ilícita. “O lema do primeiro é: ´não devo, nego, mas pago´; o do segundo é ´devo, não nego e não pago´”, resumiu Vismona.

Nos links abaixo, apresentamos um resumo dos principais pontos tratados por cada palestrante. O conteúdo integral, incluindo vídeo e transcrição das palestras, está disponível  AQUI e será convertido também em livro. O objetivo, como explicou o presidente do Conselho de Administração do ETCO, Victório De Marchi, no encerramento do seminário, é “que essas ideias, essas sugestões, essas propostas sejam levadas aos nossos legisladores para ver se a gente consegue um sistema tributário compatível com as necessidades internacionais”.

O evento teve apoio da ABDF, da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do CESA (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados).

Os vídeos das palestras e a sua transcrição podem ser acessados  AQUI

 

 

 

“O fisco não consegue cobrar nem 1% da dívida ativa”

O professor titular do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Heleno Torres, falou em sua palestra sobre os conflitos entre contribuintes e o fisco, o processo administrativo e judicial e a reforma tributária. Ele lamentou que os projetos em discussão estejam demasiadamente focados na criação do imposto sobre valor agregado, sem dar a devida atenção às questões relacionadas com a segurança jurídica. Em sua opinião, o Brasil precisa de um sistema que traga mais previsibilidade à atividade econômica, permitindo “que as pessoas saibam exatamente quais são os tributos que devem pagar e quais são as obrigações que devem cumprir em relação aos tributos que são devidos e, ao mesmo tempo, constituir um estado de segurança, um estado de normalidade, onde o ambiente de negócios possa favorecer novos investimentos e a amplitude na expansão de negócios no Brasil”.

Defendeu que a alteração do sistema atual respeite cinco princípios:

    1. Não cumulatividade real de tributos, com uma incidência tributária que permita a tomada de créditos universais, ou seja, créditos financeiros em todas as operações.
    2. Alíquota única em todo o processo de circulação.
    3. Redução de regimes de exceção, como a substituição tributária.
    4. Revisão do modelo de benefícios fiscais.
    5. Simplificação das obrigações acessórias.

Heleno Torres chamou a atenção para a necessidade de controlar os excessos do fisco. “Falta ao Código Tributário Nacional, por exemplo, um capítulo sobre o processo e o procedimento de fiscalização, que atribua aos contribuintes direitos mais candentes sobre os limites da fiscalização e da ação do fisco nas relações administrativas”, afirmou.

O tributarista contou o caso de um cliente que, depois de ser advertido duas vezes pela fiscalização de que seu negócio deveria ser classificado como instituição financeira, resolveu mudar a sua razão social para enquadrar-se nessa categoria. Durante esse processo, foi surpreendido por decisão do CARF contrária à alteração, alegando que a empresa não atendia aos requisitos de instituição financeira. “O sistema tributário não pode levar os contribuintes a uma situação de tamanha contradição”, advertiu. “Essas contradições agravam o ambiente de negócios, agravam pesadamente os contribuintes com a soma de multas, juros, cobranças, pagamentos de advogados e tantas outras repercussões e, de fato, isso não é o que se espera de um sistema tributário com segurança jurídica.”

Reformar sistema de consultas

Heleno destacou a urgência de uma reforma no sistema de consultas para torná-lo efetivo na solução de dúvidas dos contribuintes e redução dos conflitos. “Precisamos reformular com muita urgência o sistema de consultas, aproveitar essa oportunidade para que exista, a partir do momento da apresentação do auto de infração, ou mesmo do lançamento, a possibilidade de o contribuinte iniciar sua impugnação, que isso seja célere, na medida em que o mercado também precisa de decisões rápidas em matéria tributária”, disse.

Falou sobre a necessidade de maior uniformização de entendimentos no julgamento de processos tributários, para evitar que casos iguais tenham resultados distintos em diferentes instâncias. E lembrou que a situação atual também não interessa ao Estado, que não recebe as dívidas tributárias, nem à sociedade. “Não há um único estado, um único munícipio no país onde a dívida ativa tenha cobrança superior a 1% do volume acumulado. Ou seja, a conflituosidade não interessa ao fisco”, afirmou. “O tributo que não entra para os cofres públicos espontaneamente faz falta no orçamento público. E, quando faz falta no orçamento público, de duas uma: ou temos aumento de impostos ou temos contingenciamento até que aquela receita ingresse nas contas públicas e aquele orçamento possa atender a essas despesas. De qualquer jeito, a sociedade perde.”

Ao final da palestra, em uma breve conversa com o tributarista Everardo Maciel, coordenador do evento, respondeu a uma pergunta sobre a integração das etapas administrativas e judiciais dos processos tributários. “Se isso for para simplificar, para reduzir a litigiosidade, é urgente que façamos uma simplificação dos processos nesse universo tão complexo que é o contencioso administrativo e judicial”, concluiu.

Segurança jurídica contra o arbítrio estatal

O advogado e professor Roberto Quiroga, da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Direito da FGV de São Paulo, tratou da insegurança jurídica na interpretação da norma tributária. “Hoje, temos um contencioso tributário que já chegou a R$ 3,3 trilhões: metade de um PIB brasileiro. Então, de duas uma: ou o contribuinte está interpretando muito mal a norma jurídica ou o Estado está exagerando na aplicação da norma jurídica”, afirmou.

Quiroga lembrou que a relação de forças entre o Estado, que dispõe da prerrogativa da autotutela, e os contribuintes é desigual. “Nós não estamos falando numa relação privada entre A e B onde eu tenho que buscar o Estado Juiz para dirimir um conflito. O Estado lança o tributo, o Estado tem o direito de autotutela”, afirmou.

Ele criticou o instrumento de modulação de efeitos de decisões dos tribunais superiores, cuja finalidade de promover segurança jurídica estaria sendo submetida às conveniências das contas públicas. “É o instituto em que eu menos acredito, porque as decisões podem ser pelo faro”, disse. “Se a modulação é uma ideia para dar segurança, ela dá insegurança também. Ela cria uma condição tal que não sei qual é a interpretação que vou dar e para quando ela vai valer. Se para o futuro, para o passado ou para o presente.”

Quiroga defendeu o chamado “garantismo” da Constituição brasileira. “É claro que a gente tem que ver o lado do Estado. Mas a segurança jurídica que nós estamos falando é a segurança que o texto constitucional dá para o contribuinte. Contra o arbítrio, contra a autoridade estatal”, justificou.

Dez votos diferentes do STF

O tributarista criticou também a falta de embasamento conceitual de decisões tomadas pelos diferentes órgãos de julgamento, incluindo o CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) e o Supremo Tribunal Federal, mencionando temas em que persiste grande confusão na jurisprudência. Citou, como exemplo, a tributação de lucros no exterior, apreciada pelo plenário do STF. “Ele não decidiu nada. Ele só confundiu todo mundo”, afirmou. “Dez votos diferentes. Hoje, eu não sei dizer para o meu cliente como é a tributação do lucro no exterior.”

Após a palestra, Quiroga respondeu à pergunta do coordenador do seminário, o tributarista Everardo Maciel, sobre os serviços de consulta oferecidos pelo fisco aos contribuintes. Ele criticou a falta de preparo dos profissionais que realizam esse trabalho e o risco de agirem de maneira parcial pelo fato de atuarem dentro do órgão arrecadador. “Se eu tenho um consultor predeterminado a dizer não, o instituto não vale nada. Talvez devesse haver um concurso para consultor”, sugeriu como meio de dar mais efetividade e imparcialidade às consultas.

“Direito compreensível, estável e previsível”

O professor titular de Direito Tributário da Universidade de São Paulo Humberto Ávila é um dos maiores estudiosos brasileiros do tema da segurança tributária. Com uma trajetória acadêmica que inclui doutorado e pós-doutorado na Alemanha e pós-doutorado em Harvard, nos Estados Unidos, ele é o autor do livro Teoria da Segurança Jurídica, com 744 páginas, um “verdadeiro tratado sobre o tema”, nas palavras do presidente do Conselho Consultivo do ETCO, Everardo Maciel.

Em palestra no seminário Tributação e Segurança Jurídica, Ávila tratou de três aspectos que considera essenciais para a segurança jurídica tributária. “Só existe segurança quando o direito for compreensível, estável e previsível”, afirmou, atribuindo a esses fatores relação com o tempo.

A compreensão diz respeito ao presente: “O direito para ser seguido precisa ser no mínimo bem compreendido”.

A estabilidade, com a passagem do passado para o presente. “O contribuinte que confia no direito ontem não pode ser traído pelo próprio direito hoje. Por essa razão o direito protege o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, a proteção da confiança, as situações consolidadas, as preclusões, prescrições e decadências”, exemplificou.

Já a previsibilidade se refere à transição do presente para o futuro. “O contribuinte, quando age, precisa prever minimamente quais são as consequências que recairão no futuro sobre os atos que praticar no presente”, disse.

Didatismo dos tribunais

Em seguida, apontou os principais problemas que existem hoje no Brasil nessas três dimensões. Ele criticou a prática, comum no País, de não se buscar o significado preciso das palavras e assim dar margem a possibilidades muito elásticas de interpretação. “Não há país no mundo que seja desenvolvido e no qual as palavras não tenham significado”, alertou.

Citando decisão recente da Suprema Corte dos Estados Unidos, que orientou os tribunais daquele país a declarar nulas as leis mal formuladas pelo Congresso em vez de tentar corrigi-las, argumentou que boa parte dos problemas de insegurança jurídica verificados hoje no Brasil se deve à falta de determinação do Judiciário em exigir mais qualidade nas decisões do Legislativo.

“Sabem por que no Brasil a legislação é ruim? Porque o Supremo Tribunal Federal não declara a inconstitucionalidade das leis por serem ruins”, afirmou. “Nós temos que recuperar o papel didático dos tribunais e começar a declarar a inconstitucionalidade de normas que sejam contraditórias, que sejam vagas demais, ambíguas demais. Porque o contribuinte tem que se pautar ou pautar a sua conduta com base em algum direcionamento.”

Ávila condenou a prática dos entes federados de instituir ou aumentar impostos por meio de regulamentos, e não de leis, como exige a Constituição. Criticou também mudanças de orientação na jurisprudência que produzem efeitos retroativos, violando direitos dos contribuintes.

Ao final da palestra, em conversa com Everardo Maciel, chamou a atenção para o risco que o País corre com a instituição da modulação dos efeitos de decisões judiciais para proteger as finanças do Estado. Segundo Ávila, esse instrumento estimula o desrespeito à Constituição por parte do Estado, que acaba se beneficiando financeiramente de leis inconstitucionais. “O direito produz muitos efeitos, um deles é definir o que é certo e o que é errado. Agora, se o certo for igual ao errado, eu fico pensando que tipo de cidadania vai haver no Brasil e que tipo de exercício de poder público vai haver no Brasil”, ponderou.

“Reformas devem ser disruptivas ou pontuais?”

O tributarista Hamilton Dias de Souza, membro do Conselho Consultivo do ETCO, falou sobre os princípios que acredita que deveriam nortear uma reforma tributária e fez críticas ao projeto proposto na Câmara dos Deputados (PEC 45). Ele lembrou que o País está diante de duas possibilidades: fazer uma reforma ampla, que chamou de “disruptiva”, envolvendo profundas mudanças no pacto federativo e na Constituição; ou realizar alterações pontuais para corrigir os problemas já identificados no modelo atual. Ele defendeu a segunda alternativa. “Não creio que uma reforma tributária deva abolir conceitos que já estão estabelecidos. Até porque muitas vezes esses conceitos demoram vinte, trinta anos para serem sedimentados”, afirmou.

Citando divergências que ainda persistem no sistema atual, como a devolução de valores cobrados a mais no regime de substituição tributária, a cobrança de ISS sobre operações de leasing e a criação de contribuições federais por leis ordinárias, alertou para o risco de que uma reforma radical introduza novos pontos de insegurança jurídica sem resolver os antigos. “Quando há uma reforma tributária disruptiva, alterando todos os conceitos, nós todos podemos imaginar o que vai acontecer. Quanto tempo vai demorar para todas essas coisas ficarem sedimentadas, e como os empresários, os contribuintes, como todos nós poderemos organizar a nossa vida”, disse.

Em relação à proposta, inserida na PEC 45, de criação de um imposto nacional, o IBS (Imposto de Bens e Serviços), em substituição aos impostos federais, estaduais e municipais, Hamilton expressou seu entendimento de que a mudança viola cláusula pétrea da Constituição, que impede “emenda tendente a abolir a federação”. “Há uma jurisprudência no Supremo que diz: quando se amesquinha, quando se enfraquece a federação, há uma tendência a aboli-la. Portanto, ´tendente a´ é ´diminuição de poder´, ´enfraquecimento da autonomia´”, argumentou. Em sua avaliação, ao reduzir a autonomia de estados e municípios para instituir e alterar livremente seus tributos, o IBS encaixa-se nessa definição.

Dupla complexidade

Hamilton também questionou o argumento de que a unificação dos impostos traria a necessária simplificação tributária, lembrando que ela prevê um período de transição de dez anos com a sobreposição dos dois sistemas. “Nós teremos a convivência do IBS com todos os demais tributos substituídos: ICMS, IPI, PIS, Cofins, Imposto sobre Serviço. Portanto, com custos de conformidade dos dois sistemas de tributos e com fiscalizações dos dois tributos. Eu diria que o coitado do contribuinte seguramente sofrerá muito”, disse.

Outras mudanças previstas na proposta, segundo Hamilton, poderão provocar novos pontos de insegurança jurídica, como a migração da tributação para o destino dos produtos e serviços, a aplicação do IPI a produtos primários e a criação de um novo tributo sobre “consumos especiais”. “E o que serão consumos especiais? O que o legislador do futuro quiser. Começa como imposto seletivo, e depois o imposto seletivo passa a alcançar inclusive produtos razoavelmente essenciais”, advertiu.

O tributarista alertou para o aumento extraordinário que a PEC 45 propõe para a tributação do setor de serviços, em comparação com a que é praticada atualmente. “A carga tributária máxima, que é de 5%, no dia seguinte viraria 25%, e nós teríamos um aumento de 500% sobre os serviços”, apontou.

Hamilton tratou também de temas que considera problemáticos no sistema atual, como o desvirtuamento da utilização de recursos arrecadados por meio de taxas, o excesso de liberdade para instituição de tributos por medida provisória e a majoração de tributos por atos do Executivo.

Em seguida, elencou alguns princípios que a reforma tributária deveria obedecer para melhorar o ambiente de negócios e trazer mais segurança jurídica ao País: simplificação, harmonia das normas do processo administrativo/tributário, transparência e neutralidade.

No final de sua palestra, o coordenador do evento, Everardo Maciel, lhe perguntou se o IBS proposto na PEC 45 poderia ser comparado com o Simples, no sentido de respeitar o princípio constitucional da federação. Hamilton mostrou a distinção entre os dois tributos. “O Simples não impede absolutamente que exista instituição normal de tributos por União, estados e municípios – até porque ele é opcional”, respondeu. E reafirmou sua visão sobre a inconstitucionalidade do IBS.