Fazer remendo não vai adiantar

O deputado federal Efraim Filho (DEM-PB) está confiante no avanço da reforma tributária no Congresso Nacional. Ele baseia o seu otimismo no protagonismo que a Câmara dos Deputados assumiu em relação à reforma da Previdência, que espera ver se repetir na pauta tributária, e no amadurecimento do tema junto à sociedade.

Efraim tratou do assunto na palestra que encerrou o seminário Tributação no Brasil, promovido em parceria do ETCO com o jornal Valor Econômico. Na avaliação dele, os problemas do sistema tributário brasileiro já estão bem diagnosticados e é preciso “agora partir para a terapêutica”.

O deputado disse acreditar que a espinha dorsal da reforma será a PEC 45/2019, elaborada pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCIF), sob a coordenação do economista Bernard Appy e apresentada pelo deputado Baleia Rossi (PMDB-SP). Ele estima que o relatório da Comissão Especial da Reforma Tributária, a qual integra, deve ser apresentado na Câmara até o final de outubro.

Efraim reconhece que o tema é difícil, envolve muitos interesses e suscita questões complexas do ponto de vista econômico e legal. Mas defende uma mudança profunda, em vez de alterações mais pontuais e infraconstitucionais. “Fazer remendo não vai adiantar, porque remendo em tecido podre rasga”, comparou.

O deputado também criticou a visão de se privilegiar os interesses de arrecadação do Estado, em discussões sobre normas tributárias e fiscalização, desmerecendo a iniciativa privada. “O setor produtivo hoje é visto com presunção de culpa”, disse. “Precisa ser valorizado.” Efraim, que preside a Frente Parlamentar Mista de Combate ao Contrabando e à Falsificação, falou ainda sobre a importância de o País enfrentar o mercado ilegal que reduz a receita de impostos, provoca concorrência desleal e põe em risco a saúde da população.

Confira alguns trechos da palestra:

Protagonismo do Congresso

“O protagonismo que o Congresso assumiu na reforma da Previdência também se refletirá na discussão da reforma tributária. O presidente Rodrigo Maia, hoje grande fiel da estabilidade deste País – dentro do Congresso, na relação entre os poderes, no diálogo com os investidores externos –, tem chamado para o Congresso e para si a responsabilidade de avançar na reforma tributária.”

Qual proposta de reforma?

“A partir do momento em que o presidente Rodrigo Maia chama para si a responsabilidade e pede para que seus principais líderes subscrevam a proposta do Bernardo Appy, trazida pelo deputado Baleia Rossi, que lidera o PMDB, ela passa a ser a espinha dorsal desse debate. Isso é feeling, não é informação.”

Pensar fora da caixinha

“Para mim, vemos ainda muitas coisas sendo pensadas, para usar a expressão bem moderna, ´dentro da caixinha´. É preciso olhar de fora, é preciso tentar conceber algo novo. Fazer remendo não vai adiantar, porque remendo em tecido podre rasga. Remendo em tecido podre vai gerar um novo furo. É preciso ter a concepção de tentar viabilizar uma proposta que seja nova.”

Valorizar o setor produtivo

“É preciso priorizar quem produz no Brasil. Quem produz no Brasil não pode mais ser o vilão da história. Precisa ser visto como herói. Herói da resistência. O setor produtivo hoje é visto com presunção de culpa.”

“Há tempos que só se pensa no Brasil a regra para facilitar a vida do Estado. Está errado. As regras hoje são para facilitar a arrecadação. Não são para facilitar a vida do contribuinte, nem para que haja simplificação, nem para que ele tenha condições de manter o seu negócio sem precisar sonegar.”

Combate ao contrabando

“O setor de cigarros, por exemplo, como admitir que o mercado ilegal ocupe praticamente 60% do mercado? Deixa-se de arrecadar imposto, deixa-se de gerar emprego, é um jogo de perde-perde.”

“O contrabando, a falsificação, a pirataria, o mercado ilegal, tudo é extremamente nocivo para a sociedade, e o pior é que a nossa sociedade, que é tolerante com pequenos desvios, sente até pena do contrabandista, porque a primeira imagem que vem é aquela do vendedor de DVD, CD.”

Relação com o crime organizado

“Quando você quebra a casca superficial e vai ao âmago do crime de contrabando, está lá quem financia o crime organizado, o narcotráfico, gera evasão de divisas, perda de receita, deteriora o mercado de trabalho formal, gera riscos à saúde e à integridade do consumidor.”

Basta de contencioso tributário

Discussões sobre reforma tributária geralmente se concentram em mudanças nos tipos de impostos e na forma de repartir a carga e distribuir os recursos na sociedade. Mas costumam deixar de lado um aspecto extremamente relevante para o desenvolvimento do País: a segurança jurídica do sistema tributário.

O Brasil é um dos campeões mundiais em conflitos entre fisco e contribuintes. Os especialistas estimam que, em todas as instâncias administrativas e judiciais em que essas divergências são discutidas, os valores envolvidos já chegam a R$ 3,3 trilhões, o que representa cerca de metade do PIB do País. E a tendência é de crescimento.

Para contribuir nessa discussão e na busca de soluções para o problema, o ETCO realizou em junho, em São Paulo, o seminário Tributação e Segurança Jurídica. O evento reuniu grandes juristas na busca de soluções para o problema.

Heleno Torres, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), falou sobre os pontos que devem nortear o aperfeiçoamento do sistema tributário brasileiro, incluindo a solução de conflitos nos processos tributários.

Roberto Quiroga, advogado e professor da faculdade de direito da USP e da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV Direito SP), fez palestra sobre a interpretação da norma jurídica.

Humberto Ávila, também professor da USP, tratou dos princípios da segurança jurídica tributária e de sua relação com o desenvolvimento econômico.

Hamilton Dias de Souza, advogado e conselheiro do ETCO, apresentou uma visão crítica sobre a proposta de reforma tributária em discussão no Congresso Nacional (PEC 45).

Gustavo Brigagão, professor de direito e presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), abordou os desafios tributários internacionais diante das inovações tecnológicas do século XXI.

O seminário foi coordenado pelo presidente do Conselho Consultivo do ETCO e ex-secretário da Receita Federal (governo FHC), Everardo Maciel, que destacou a importância do tema: “É o mais relevante para o país em termos de investimento, especialmente no campo tributário.”

Na abertura, o presidente executivo do Instituto, Edson Vismona, chamou a atenção para os dois extremos do problema: de um lado, os contribuintes que procuram fazer tudo dentro da lei, mas sofrem com a complexidade do sistema, a arbitrariedade do fisco e as constantes mudanças nas normas ou em suas interpretações – e muitas vezes acabam pagando impostos que não devem enquanto aguardam decisões definitivas da Justiça; e de outro os devedores contumazes de tributos, que não pagam os impostos devidos usam a complexidade e a demora nas decisões para ganhar dinheiro de forma ilícita. “O lema do primeiro é: ´não devo, nego, mas pago´; o do segundo é ´devo, não nego e não pago´”, resumiu Vismona.

Nos links abaixo, apresentamos um resumo dos principais pontos tratados por cada palestrante. O conteúdo integral, incluindo vídeo e transcrição das palestras, está disponível  AQUI e será convertido também em livro. O objetivo, como explicou o presidente do Conselho de Administração do ETCO, Victório De Marchi, no encerramento do seminário, é “que essas ideias, essas sugestões, essas propostas sejam levadas aos nossos legisladores para ver se a gente consegue um sistema tributário compatível com as necessidades internacionais”.

O evento teve apoio da ABDF, da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do CESA (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados).

Os vídeos das palestras e a sua transcrição podem ser acessados  AQUI

 

 

 

“O fisco não consegue cobrar nem 1% da dívida ativa”

O professor titular do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Heleno Torres, falou em sua palestra sobre os conflitos entre contribuintes e o fisco, o processo administrativo e judicial e a reforma tributária. Ele lamentou que os projetos em discussão estejam demasiadamente focados na criação do imposto sobre valor agregado, sem dar a devida atenção às questões relacionadas com a segurança jurídica. Em sua opinião, o Brasil precisa de um sistema que traga mais previsibilidade à atividade econômica, permitindo “que as pessoas saibam exatamente quais são os tributos que devem pagar e quais são as obrigações que devem cumprir em relação aos tributos que são devidos e, ao mesmo tempo, constituir um estado de segurança, um estado de normalidade, onde o ambiente de negócios possa favorecer novos investimentos e a amplitude na expansão de negócios no Brasil”.

Defendeu que a alteração do sistema atual respeite cinco princípios:

    1. Não cumulatividade real de tributos, com uma incidência tributária que permita a tomada de créditos universais, ou seja, créditos financeiros em todas as operações.
    2. Alíquota única em todo o processo de circulação.
    3. Redução de regimes de exceção, como a substituição tributária.
    4. Revisão do modelo de benefícios fiscais.
    5. Simplificação das obrigações acessórias.

Heleno Torres chamou a atenção para a necessidade de controlar os excessos do fisco. “Falta ao Código Tributário Nacional, por exemplo, um capítulo sobre o processo e o procedimento de fiscalização, que atribua aos contribuintes direitos mais candentes sobre os limites da fiscalização e da ação do fisco nas relações administrativas”, afirmou.

O tributarista contou o caso de um cliente que, depois de ser advertido duas vezes pela fiscalização de que seu negócio deveria ser classificado como instituição financeira, resolveu mudar a sua razão social para enquadrar-se nessa categoria. Durante esse processo, foi surpreendido por decisão do CARF contrária à alteração, alegando que a empresa não atendia aos requisitos de instituição financeira. “O sistema tributário não pode levar os contribuintes a uma situação de tamanha contradição”, advertiu. “Essas contradições agravam o ambiente de negócios, agravam pesadamente os contribuintes com a soma de multas, juros, cobranças, pagamentos de advogados e tantas outras repercussões e, de fato, isso não é o que se espera de um sistema tributário com segurança jurídica.”

Reformar sistema de consultas

Heleno destacou a urgência de uma reforma no sistema de consultas para torná-lo efetivo na solução de dúvidas dos contribuintes e redução dos conflitos. “Precisamos reformular com muita urgência o sistema de consultas, aproveitar essa oportunidade para que exista, a partir do momento da apresentação do auto de infração, ou mesmo do lançamento, a possibilidade de o contribuinte iniciar sua impugnação, que isso seja célere, na medida em que o mercado também precisa de decisões rápidas em matéria tributária”, disse.

Falou sobre a necessidade de maior uniformização de entendimentos no julgamento de processos tributários, para evitar que casos iguais tenham resultados distintos em diferentes instâncias. E lembrou que a situação atual também não interessa ao Estado, que não recebe as dívidas tributárias, nem à sociedade. “Não há um único estado, um único munícipio no país onde a dívida ativa tenha cobrança superior a 1% do volume acumulado. Ou seja, a conflituosidade não interessa ao fisco”, afirmou. “O tributo que não entra para os cofres públicos espontaneamente faz falta no orçamento público. E, quando faz falta no orçamento público, de duas uma: ou temos aumento de impostos ou temos contingenciamento até que aquela receita ingresse nas contas públicas e aquele orçamento possa atender a essas despesas. De qualquer jeito, a sociedade perde.”

Ao final da palestra, em uma breve conversa com o tributarista Everardo Maciel, coordenador do evento, respondeu a uma pergunta sobre a integração das etapas administrativas e judiciais dos processos tributários. “Se isso for para simplificar, para reduzir a litigiosidade, é urgente que façamos uma simplificação dos processos nesse universo tão complexo que é o contencioso administrativo e judicial”, concluiu.

Segurança jurídica contra o arbítrio estatal

O advogado e professor Roberto Quiroga, da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Direito da FGV de São Paulo, tratou da insegurança jurídica na interpretação da norma tributária. “Hoje, temos um contencioso tributário que já chegou a R$ 3,3 trilhões: metade de um PIB brasileiro. Então, de duas uma: ou o contribuinte está interpretando muito mal a norma jurídica ou o Estado está exagerando na aplicação da norma jurídica”, afirmou.

Quiroga lembrou que a relação de forças entre o Estado, que dispõe da prerrogativa da autotutela, e os contribuintes é desigual. “Nós não estamos falando numa relação privada entre A e B onde eu tenho que buscar o Estado Juiz para dirimir um conflito. O Estado lança o tributo, o Estado tem o direito de autotutela”, afirmou.

Ele criticou o instrumento de modulação de efeitos de decisões dos tribunais superiores, cuja finalidade de promover segurança jurídica estaria sendo submetida às conveniências das contas públicas. “É o instituto em que eu menos acredito, porque as decisões podem ser pelo faro”, disse. “Se a modulação é uma ideia para dar segurança, ela dá insegurança também. Ela cria uma condição tal que não sei qual é a interpretação que vou dar e para quando ela vai valer. Se para o futuro, para o passado ou para o presente.”

Quiroga defendeu o chamado “garantismo” da Constituição brasileira. “É claro que a gente tem que ver o lado do Estado. Mas a segurança jurídica que nós estamos falando é a segurança que o texto constitucional dá para o contribuinte. Contra o arbítrio, contra a autoridade estatal”, justificou.

Dez votos diferentes do STF

O tributarista criticou também a falta de embasamento conceitual de decisões tomadas pelos diferentes órgãos de julgamento, incluindo o CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) e o Supremo Tribunal Federal, mencionando temas em que persiste grande confusão na jurisprudência. Citou, como exemplo, a tributação de lucros no exterior, apreciada pelo plenário do STF. “Ele não decidiu nada. Ele só confundiu todo mundo”, afirmou. “Dez votos diferentes. Hoje, eu não sei dizer para o meu cliente como é a tributação do lucro no exterior.”

Após a palestra, Quiroga respondeu à pergunta do coordenador do seminário, o tributarista Everardo Maciel, sobre os serviços de consulta oferecidos pelo fisco aos contribuintes. Ele criticou a falta de preparo dos profissionais que realizam esse trabalho e o risco de agirem de maneira parcial pelo fato de atuarem dentro do órgão arrecadador. “Se eu tenho um consultor predeterminado a dizer não, o instituto não vale nada. Talvez devesse haver um concurso para consultor”, sugeriu como meio de dar mais efetividade e imparcialidade às consultas.

“Direito compreensível, estável e previsível”

O professor titular de Direito Tributário da Universidade de São Paulo Humberto Ávila é um dos maiores estudiosos brasileiros do tema da segurança tributária. Com uma trajetória acadêmica que inclui doutorado e pós-doutorado na Alemanha e pós-doutorado em Harvard, nos Estados Unidos, ele é o autor do livro Teoria da Segurança Jurídica, com 744 páginas, um “verdadeiro tratado sobre o tema”, nas palavras do presidente do Conselho Consultivo do ETCO, Everardo Maciel.

Em palestra no seminário Tributação e Segurança Jurídica, Ávila tratou de três aspectos que considera essenciais para a segurança jurídica tributária. “Só existe segurança quando o direito for compreensível, estável e previsível”, afirmou, atribuindo a esses fatores relação com o tempo.

A compreensão diz respeito ao presente: “O direito para ser seguido precisa ser no mínimo bem compreendido”.

A estabilidade, com a passagem do passado para o presente. “O contribuinte que confia no direito ontem não pode ser traído pelo próprio direito hoje. Por essa razão o direito protege o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, a proteção da confiança, as situações consolidadas, as preclusões, prescrições e decadências”, exemplificou.

Já a previsibilidade se refere à transição do presente para o futuro. “O contribuinte, quando age, precisa prever minimamente quais são as consequências que recairão no futuro sobre os atos que praticar no presente”, disse.

Didatismo dos tribunais

Em seguida, apontou os principais problemas que existem hoje no Brasil nessas três dimensões. Ele criticou a prática, comum no País, de não se buscar o significado preciso das palavras e assim dar margem a possibilidades muito elásticas de interpretação. “Não há país no mundo que seja desenvolvido e no qual as palavras não tenham significado”, alertou.

Citando decisão recente da Suprema Corte dos Estados Unidos, que orientou os tribunais daquele país a declarar nulas as leis mal formuladas pelo Congresso em vez de tentar corrigi-las, argumentou que boa parte dos problemas de insegurança jurídica verificados hoje no Brasil se deve à falta de determinação do Judiciário em exigir mais qualidade nas decisões do Legislativo.

“Sabem por que no Brasil a legislação é ruim? Porque o Supremo Tribunal Federal não declara a inconstitucionalidade das leis por serem ruins”, afirmou. “Nós temos que recuperar o papel didático dos tribunais e começar a declarar a inconstitucionalidade de normas que sejam contraditórias, que sejam vagas demais, ambíguas demais. Porque o contribuinte tem que se pautar ou pautar a sua conduta com base em algum direcionamento.”

Ávila condenou a prática dos entes federados de instituir ou aumentar impostos por meio de regulamentos, e não de leis, como exige a Constituição. Criticou também mudanças de orientação na jurisprudência que produzem efeitos retroativos, violando direitos dos contribuintes.

Ao final da palestra, em conversa com Everardo Maciel, chamou a atenção para o risco que o País corre com a instituição da modulação dos efeitos de decisões judiciais para proteger as finanças do Estado. Segundo Ávila, esse instrumento estimula o desrespeito à Constituição por parte do Estado, que acaba se beneficiando financeiramente de leis inconstitucionais. “O direito produz muitos efeitos, um deles é definir o que é certo e o que é errado. Agora, se o certo for igual ao errado, eu fico pensando que tipo de cidadania vai haver no Brasil e que tipo de exercício de poder público vai haver no Brasil”, ponderou.

“Reformas devem ser disruptivas ou pontuais?”

O tributarista Hamilton Dias de Souza, membro do Conselho Consultivo do ETCO, falou sobre os princípios que acredita que deveriam nortear uma reforma tributária e fez críticas ao projeto proposto na Câmara dos Deputados (PEC 45). Ele lembrou que o País está diante de duas possibilidades: fazer uma reforma ampla, que chamou de “disruptiva”, envolvendo profundas mudanças no pacto federativo e na Constituição; ou realizar alterações pontuais para corrigir os problemas já identificados no modelo atual. Ele defendeu a segunda alternativa. “Não creio que uma reforma tributária deva abolir conceitos que já estão estabelecidos. Até porque muitas vezes esses conceitos demoram vinte, trinta anos para serem sedimentados”, afirmou.

Citando divergências que ainda persistem no sistema atual, como a devolução de valores cobrados a mais no regime de substituição tributária, a cobrança de ISS sobre operações de leasing e a criação de contribuições federais por leis ordinárias, alertou para o risco de que uma reforma radical introduza novos pontos de insegurança jurídica sem resolver os antigos. “Quando há uma reforma tributária disruptiva, alterando todos os conceitos, nós todos podemos imaginar o que vai acontecer. Quanto tempo vai demorar para todas essas coisas ficarem sedimentadas, e como os empresários, os contribuintes, como todos nós poderemos organizar a nossa vida”, disse.

Em relação à proposta, inserida na PEC 45, de criação de um imposto nacional, o IBS (Imposto de Bens e Serviços), em substituição aos impostos federais, estaduais e municipais, Hamilton expressou seu entendimento de que a mudança viola cláusula pétrea da Constituição, que impede “emenda tendente a abolir a federação”. “Há uma jurisprudência no Supremo que diz: quando se amesquinha, quando se enfraquece a federação, há uma tendência a aboli-la. Portanto, ´tendente a´ é ´diminuição de poder´, ´enfraquecimento da autonomia´”, argumentou. Em sua avaliação, ao reduzir a autonomia de estados e municípios para instituir e alterar livremente seus tributos, o IBS encaixa-se nessa definição.

Dupla complexidade

Hamilton também questionou o argumento de que a unificação dos impostos traria a necessária simplificação tributária, lembrando que ela prevê um período de transição de dez anos com a sobreposição dos dois sistemas. “Nós teremos a convivência do IBS com todos os demais tributos substituídos: ICMS, IPI, PIS, Cofins, Imposto sobre Serviço. Portanto, com custos de conformidade dos dois sistemas de tributos e com fiscalizações dos dois tributos. Eu diria que o coitado do contribuinte seguramente sofrerá muito”, disse.

Outras mudanças previstas na proposta, segundo Hamilton, poderão provocar novos pontos de insegurança jurídica, como a migração da tributação para o destino dos produtos e serviços, a aplicação do IPI a produtos primários e a criação de um novo tributo sobre “consumos especiais”. “E o que serão consumos especiais? O que o legislador do futuro quiser. Começa como imposto seletivo, e depois o imposto seletivo passa a alcançar inclusive produtos razoavelmente essenciais”, advertiu.

O tributarista alertou para o aumento extraordinário que a PEC 45 propõe para a tributação do setor de serviços, em comparação com a que é praticada atualmente. “A carga tributária máxima, que é de 5%, no dia seguinte viraria 25%, e nós teríamos um aumento de 500% sobre os serviços”, apontou.

Hamilton tratou também de temas que considera problemáticos no sistema atual, como o desvirtuamento da utilização de recursos arrecadados por meio de taxas, o excesso de liberdade para instituição de tributos por medida provisória e a majoração de tributos por atos do Executivo.

Em seguida, elencou alguns princípios que a reforma tributária deveria obedecer para melhorar o ambiente de negócios e trazer mais segurança jurídica ao País: simplificação, harmonia das normas do processo administrativo/tributário, transparência e neutralidade.

No final de sua palestra, o coordenador do evento, Everardo Maciel, lhe perguntou se o IBS proposto na PEC 45 poderia ser comparado com o Simples, no sentido de respeitar o princípio constitucional da federação. Hamilton mostrou a distinção entre os dois tributos. “O Simples não impede absolutamente que exista instituição normal de tributos por União, estados e municípios – até porque ele é opcional”, respondeu. E reafirmou sua visão sobre a inconstitucionalidade do IBS.

Os desafios de tributar a economia digital

O advogado, professor de direito e presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), Gustavo Brigagão, falou sobre passado e futuro da tributação. Ele traçou um breve panorama histórico das escolhas feitas pelo Brasil em matéria tributária e dos reflexos que elas produziram em termos de insegurança jurídica. Em seguida, tratou dos novos desafios que o mundo enfrenta no campo da tributação.

“Nosso sistema tributário é de 1965, quando o mundo era completamente diferente”, lembrou. “As mercadorias eram bens corpóreos que circulavam entre a indústria, o atacado e o varejo, até chegar ao consumo. O serviço era resultado de uma atividade humana, necessariamente.”

Naquela época, segundo ele, enquanto a maioria dos países caminhava na direção de um imposto nacional sobre valor agregado, o Brasil optou por criar impostos distintos para cada ente federativo – o IPI, federal; o ICM, depois ICMS, para estados; e o ISS, municipal. Na avaliação de Brigagão, essa escolha gerou muitos dos problemas jurídicos que surgiriam nas décadas seguintes, conforme a economia ia se tornando mais complexa e as unidades federadas passavam a disputar o direito de tributar as novas atividades que passaram a existir.

Ele citou vários conflitos e suas idas e vindas pelos tribunais, como a distinção entre mercadoria e serviço, a caracterização do local de prestação dos serviços e a definição de insumos. Depois, apresentou uma longa lista de novos desafios que os países estão enfrentando em virtude da globalização e da revolução tecnológica das últimas décadas. “Essas novas tecnologias tornaram o sistema tributário, não só o brasileiro, mas o sistema tributário internacional, caótico”, comentou.

Segundo ele, inovações como e-commerce, cloud computing, internet das coisas, impressão 3D, assinatura de softwares, serviços de streaming, aluguel de imóveis por aplicativo, venda de dados sobre consumidores, publicidade digital e criptomoeda trouxeram uma série de desafios tributários que ainda não encontram respostas satisfatórias em nenhum lugar do mundo. “Hoje, a mercadoria pode ser vendida através de um e-mail. E a impressão é feita na casa do consumidor. Ou seja, a cadeia que existia de circulação de mercadorias passa a ser uma cadeia de valores”, afirmou.

Iniciativas internacionais

Para dimensionar o tamanho desses negócios, lembrou que as cinco gigantes da tecnologia que compõem o acrônimo GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft) faturaram 767 bilhões de dólares em 2017. “Isso equivale ao PIB da Suíça”, comparou.

Brigagão destacou três características específicas desses negócios que impõem grande dificuldade à sua tributação: não precisar de presença física no país de prestação do serviço; ter a maior parte do seu valor concentrada em ativos intangíveis; e gerar receita a partir do próprio usuário. “O fornecimento de dados desses participantes cria um valor que faz essas empresas passarem a valer bilhões. Seja através do uso que eles fazem desses dados, seja através da propaganda, do nível de público que o marketing dessas empresas consegue atingir”, explicou.

Ele fez um relato das iniciativas que vêm sendo estudadas ou propostas por organizações como a OCDE, o G20 e o Conselho Europeu e outras adotadas recentemente por países como França, Espanha e Reino Unido para tributar esses novos negócios. Mas ressaltou que elas ainda não apontam em uma direção clara sobre a melhor forma de tributar essas empresas.

Brigagão falou também sobre as dificuldades que as empresas globais têm em entender o sistema brasileiro e fez uma avaliação sobre as propostas de reforma tributária em discussão hoje no País. Defendeu a adoção do IVA para resolver alguns dos principais problemas do modelo atual, como a sua complexidade e cumulatividade, e lembrou que ele é adotado por 165 dos 193 países do mundo. Mas considerou inadequada e possivelmente inconstitucional a forma como ele é proposto na PEC 45.

A compreensão dos investidores

Ao final da palestra, o tributarista Everardo Maciel, coordenador do seminário, reforçou os pontos trazidos por Brigagão sobre os desafios que os países enfrentam para tributar os gigantes da tecnologia. No entanto, apresentou ponto de vista contrário à adoção do IVA, por considerá-lo um tributo do passado, sem deixar de reconhecer os problemas do sistema atual. “Nós estamos discutindo a solução de 1949 para o século XXI”, observou.

Brigagão concordou com a obsolescência do IVA, mas reforçou sua crítica ao caráter cumulativo da tributação nacional e voltou a defender sua adoção para resolver problemas que afetam o desenvolvimento do Brasil. ”Eu gostaria muito de poder dizer a investidores estrangeiros que nós temos uma forma de tributação que é compatível com aquilo que eles conhecem. E hoje eu não consigo dizer isso”, lamentou.

Luz sobre o contencioso tributário

O contencioso entre o fisco e os contribuintes vem crescendo. O tempo em que essas disputas são discutidas nas esferas administrativas e judiciais continua extremamente elevado. E o Brasil aparece em situação muito desfavorável, em termos de contencioso tributário, em análise comparativa com países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Essas são algumas das conclusões preliminares do estudo que o ETCO encomendou à consultoria EY (antiga Ernst & Young), para fazer um diagnóstico e apontar caminhos para reduzir a litigiosidade entre o fisco e os contribuintes, intitulado Desafios do Contencioso Tributário Brasileiro – Principais Desafios da Prática do Contencioso Tributário e Potenciais Medidas Mitigadoras no Brasil.

O trabalho analisou informações oficiais do governo, estudos sobre o tema realizados no Brasil e informações colhidas pelos escritórios da EY em outros países e deverá ser apresentado à sociedade em outubro. O foco foi o contencioso federal.

“De 2014 em diante, vemos um aumento expressivo no volume de autuações, mas que vem acompanhado de um crescimento do estoque de crédito tributário contencioso”, afirma Natalie Branco, gerente sênior de Business Tax Services da EY. Segundo ela, isso mostra que o rigor maior do fisco não está resultando necessariamente em incremento de caixa para a União.

Os tributos representam o principal fator de insegurança jurídica das empresas brasileiras, de acordo com estudo feito pela FGV em balanços de 2014 de companhias de capital aberto. Naquele ano, os valores discutidos em processos de natureza fiscal somavam mais de R$ 283 bilhões, cerca de sete vezes o montante em litígio em ações trabalhistas, por exemplo.

Metade do PIB

Um primeiro dado que chama a atenção no estudo é a velocidade do aumento do contencioso tributário federal, que cresceu 51% nos últimos cinco anos. Em 2013, o estoque na esfera federal estava avaliado em R$ 2,275 trilhões, o que equivalia a 42,7% do PIB. No ano passado, alcançou R$ 3,440 trilhões, valor correspondente a 50,4% das riquezas geradas pelo País.

“É evidente que as divergências na interpretação das normas tributárias e os processos de cobrança de impostos atingiram um nível de disfuncionalidade insustentável”, afirma o presidente executivo do ETCO, Edson Vismona. “Isso gera enorme insegurança jurídica no setor produtivo, afasta investimentos, compromete a arrecadação do Estado e gera despesas inúteis para todos. O contribuinte, se não aceitar os critérios de lançamento, contesta, e o Estado, que precisa receber, fica sem os recursos.”

 

 

 

 

 

 

 

 

O estudo trará também detalhes sobre uma correlação possível e preocupante entre os critérios adotados pelo modelo de bonificação dos auditores fiscais e o aumento dos créditos tributários lançados pelo fisco. O valor passou de R$ 122 bilhões em 2016 para R$ 206 bilhões em 2017, primeiro ano de pagamento do bônus. Uma alta de 68%.

No mesmo período, houve aumento também nas chamadas representações fiscais para fins penais, um instrumento que leva a discussão de impostos para a esfera criminal. O uso abusivo desse dispositivo é considerado uma forma de coagir o contribuinte a pagar mesmo os tributos que ele considera indevidos.

“Nós defendemos que o fisco seja rigoroso com quem efetivamente deve impostos”, diz Vismona. “Mas repudiamos de forma veemente práticas instituídas visando apenas aos interesses arrecadatórios do Estado ou a interesses corporativos.” O presidente do ETCO lembra que cobranças indevidas constituem uma causa importante de disputas entre contribuintes e a Receita Federal.

Duas décadas

O estudo fará também uma análise sobre a demora no período de tramitação dos processos tributários nas diferentes instâncias, que gira em torno de vinte anos.

Entre as diversas razões que explicam o alto grau de litígio, destaca-se o grande número de mudanças nas regras referentes aos impostos que acontece no Brasil. Um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação e citado no trabalho da EY contabilizou 390.726 normas tributárias federais, estaduais e municipais criadas entre 1988, ano de promulgação da Constituição Federal, e 2018. Uma média de 774 normas por dia útil – ou 1,92 por hora.

A pesquisa faz ainda um comparativo da situação brasileira com a de outros seis países desenvolvidos ou em desenvolvimento – Alemanha, Austrália, Estados Unidos, Índia, México e Portugal –, escolhidos por apresentar características semelhantes ao Brasil ou por representar bons exemplos de segurança jurídica tributária. “Outros países possuem medidas alternativas de solução de conflitos que impactam no número de autuações discutidas pelos contribuintes e no estoque de contencioso tributário, conforme será demonstrado no estudo”, conta a gerente sênior da EY.

O trabalho trará também propostas que podem ser consideradas para reduzir a litigiosidade do sistema tributário brasileiro, incluindo um mapeamento dos projetos em discussão no Legislativo e na Receita Federal que caminham nessa direção. “Fizemos essa pesquisa para contribuir nas discussões sobre a mudança do nosso sistema de impostos que devem ocorrer nos próximos meses”, justifica o presidente do ETCO. “A reforma tributária precisa carregar também a bandeira da segurança jurídica.”