Agilidade da Justiça poderá melhorar o ambiente de negócios

Por ETCO

Autor: Joaquim Castanheira

Fonte: Revista ETCO, No. 13, Agosto 2009

Meses atrás, a Advocacia Geral da União anunciou que pretende fazer um acordo
para colocar o ponto final em uma antiga disputa judicial com a Varig. A
companhia aérea reclama uma indenização por perdas causadas pelo congelamento
dos preços nas passagens, imposto pelo governo no período entre 1986 e 1992. A
conta já atinge a fantástica soma de 5 bilhões de reais. Caso as duas partes
cheguem finalmente a um denominador comum, seria o epílogo de um embate que se
arrasta há mais de 15 anos nos tribunais e que envolveu, além da Varig, as duas
outras maiores empresas do setor naquele período, a Vasp e a Transbrasil.
Nenhuma delas existe mais. Vasp e Transbrasil pararam de voar anos atrás, e a
Varig foi dividida em duas. Uma parte está em recuperação judicial e foi
rebatizada de Flex. A outra se tornou uma marca da Gol. Ou seja, as companhias
passam, as pendências judiciais ficam. E como ficam. Uma demanda na Justiça no
Estado de São Paulo dura, em média, cinco anos – isso se não houver recurso para
instâncias superiores em Brasília. Caso contrário, o prazo médio se estende para
oito anos, segundo cálculos de Domingos Fernando Refinetti, sócio da banca de
advocacia Machado, Meyer, Sendacz e Opice e diretor da Associação dos Advogados
de São Paulo, AASP. Trata-se de um cenário que provoca impactos nocivos no
ambiente de negócios. “Até tempos atrás, Direito e Economia eram temas que
corriam paralelamente. Hoje, está claro que a questão jurídica tem efeitos
diretos no desenvolvimento econômico”, alerta Maria Tereza Sadek, professora de
Ciência Política da USP e estudiosa do assunto. “Além de legislação em excesso,
há vários mecanismos de burla, sobretudo por intermédio de recursos e medidas
cautelares.”


“Uma demanda na Justiça no Estado de São Paulo dura, em
média, cinco anos – isso se não houver recurso para instâncias superiores em
Brasília. Caso contrário, o prazo médio se estende para oito anos”

Para o universo dos negócios, essa situação cria um clima de insegurança e
transforma a questão jurídica em um fator de inibição para a atração de
investimentos, sobretudo estrangeiros, no país. A lentidão da Justiça provoca
ainda um custo financeiro extraordinário, certamente repassado para os preços, e
um componente de risco que dificulta a queda mais acentuada dos juros na
economia brasileira. Há pelo menos dois entraves para o ambiente de negócios. Um
deles é a legislação existente no Brasil, ora obsoleta, ora desconectada das
necessidades econômicas. “Muitas leis são feitas sem levar em conta as
peculiaridades e a realidade dos mercados”, afirma André Montoro, presidente do
ETCO. Além disso, a morosidade da Justiça é outro empecilho para o universo
corporativo. “Cada vez mais, tempo é dinheiro nos negócios. Há uma pressão
crescente para decisões rápidas dentro das companhias. E nos tribunais o ritmo é
mais lento”, diz Montoro. “Há um choque entre a natureza das duas atividades.”
Trata-se de um choque difícil de ser mensurado. Por isso, o ETCO patrocina um
estudo, conduzido pela professora Maria Tereza, para avaliar o impacto dessa
questão no dia-a-dia das empresas e em suas estratégias de negócios. Nesse
trabalho, serão ouvidos os titulares dos departamentos jurídicos das companhias
associadas ao ETCO, com o intuito de identificar “a percepção desses
profissionais a respeito do Poder Jurídico e sua avaliação no que se refere aos
diferentes ramos da Justiça e à atuação de suas diversas instâncias”, como
explica Maria Tereza. Além disso, ela conduzirá alguns estudos de caso com o
objetivo de mostrar o grau de influência de decisões judiciais na gestão das
organizações empresariais. Os resultados do trabalho serão discutidos no ciclo
de debates Direito e Economia, realizado pelo ETCO.



Não resta dúvida, porém, de que as empresas pagam um preço alto em função
da pouca agilidade do Judiciário. O jurista Luiz Olavo Baptista, professor
aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, estima que, “se
a demora no decurso dos processos fosse reduzida à metade, o PIB cresceria entre
3% e 5% só por isso.” E enumera uma série de efeitos sobre os negócios e,
principalmente, os custos das empresas. Um deles: o juro nos financiamentos é
maior, pois a demora na recuperação de créditos está embutida nesse custo.
Outro: a criatividade dos inventores, designers e empreendedores é prejudicada
negativamente, já que a demora torna inúteis os privilégios de patentes, os
registros de direito autoral e similares. Mais: “a vida societária é afetada,
pois a demora na solução dos litígios desencoraja as pessoas a reclamar seus
direitos”, afirma Baptista. 



 


Jairo Saddi

“Contrato é um instrumento particular e não social. Mas, a
partir desse conceito, o Judiciário discute a função social de um contrato de
financiamento, por exemplo. Em outros países, se alguém não paga uma dívida,
isso é inadimplência”



Jairo Saddi,
diretor do Centro de Estudos de Direito do
Insper Instituto de Ensino e Pesquisa de São Paulo



 


Esse cenário não é exatamente uma novidade na sociedade brasileira, mas
recebeu um involuntário estímulo há pouco mais de 20 anos, quando a atual
Constituição Brasileira foi promulgada, lembra Refinetti. A Carta de 1988
ampliou o acesso da população aos tribunais e criou outros instrumentos de
acionamento da Justiça, como as ações civis públicas e os juizados especiais,
conhecidos como Juizados de Pequenas Causas. Além disso, surgiram, nos anos
seguintes, legislações específicas, a exemplo do Código de Defesa do Consumidor.
Ao mesmo tempo em que conscientizavam os cidadãos, esses conjuntos de leis os
estimulavam a procurar o abrigo da Justiça. “Isso tudo significa um avanço da
cidadania e deve ser saudado como uma vitória da democracia. Mas a estrutura do
Poder Judiciário não acompanhou o aumento da demanda e não houve um enxugamento
dos instrumentos utilizados para protelar decisões judiciais”, pondera
Refinetti. Para carregar um pouco mais nas tintas sombrias desse quadro, alguns
conceitos “discutíveis” se cristalizaram no ambiente jurídico do país, completa
Jairo Saddi, doutor em Direito Econômico e diretor do Centro de Estudos de
Direito do Ibmec São Paulo. Por exemplo: a chamada função social do contrato.
“Afinal, o que vem a ser isso?”, questiona ele. “Contrato é um instrumento
particular e não social. Mas, a partir desse conceito, o Judiciário discute a
função social de um contrato de financiamento, por exemplo. Em outros países, se
alguém não paga uma dívida, isso se chama inadimplência. Aqui no Brasil, não.
Pode-se alegar até a questão da distribuição de renda nesses casos.” Saddi
alerta para um erro comum nesse tipo de situação. “Juízes acreditam que, assim,
defendem a sociedade. Mas as empresas e os bancos se protegem desse risco
aumentando os juros e restringindo o crédito para os diversos agentes
econômicos. No final, a conta sai mais cara.” O resultado, hoje, pode ser visto
nas mesas de juízes e nos arquivos dos tribunais de todo o país: pilhas de
pastas amarradas com barbante e abarrotadas de documentos. Hoje, existem cerca
de 70 milhões de ações correndo na Justiça brasileira, enquanto nos Estados
Unidos esse número não supera 10 milhões, embora o PIB americano seja dez vezes
superior ao do Brasil, compara Saddi.


Tudo isso ajuda a explicar a morosidade da Justiça, mas seria simplista
afirmar que os outros agentes não têm parcelas de responsabilidade nessa
situação. O excesso no número de advogados no país, em vez de garantir maior
fluidez nos processos, se transformou em mais um ingrediente na ineficiência da
Justiça. Segundo Refinetti, da AASP, existem hoje 1.100 faculdades de Direito no
território brasileiro, com 700 mil estudantes matriculados. “Só no Estado de São
Paulo, há mais alunos que nos Estados Unidos”, afirma Refinetti. A cada ano,
entre 70 mil e 80 mil estudantes recebem o diploma de bacharel. Embora apenas
20% a 25% dos formandos passem pela peneira dos exames da Ordem dos Advogados do
Brasil, um pequeno exército de profissionais invade o mercado de trabalho. “De
alguma forma, esses advogados precisam trabalhar, e a forma mais fácil é partir
para o contencioso”, afirma Refinetti. A profusão de profissionais ajuda a criar
o que o advogado Hamilton Dias de Souza chama de “judicialização das relações”.
“Muitas questões que poderiam ser resolvidas no próprio ambiente de negócios vão
parar nos tribunais”, afirma ele.



Outros problemas originários das salas de aula de Direito provocam
efeitos nocivos ao cenário econômico. Um dos principais é a formação dos futuros
advogados. “A maioria das faculdades de Direito brasileiras restringe-se às
matérias básicas, não dando relevo suficiente às matérias ligadas à economia e à
gestão”, afirma João Grandino Rodas. Ex-presidente do Conselho Administrativo de
Defesa Econômica (Cade), Rodas pode falar (sem trocadilho) de cátedra sobre o
assunto. Desde 2006, é diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo. “As faculdades de Direito devem preocupar-se mais, doravante, com que
seus alunos somente se formem se possuir, ao menos, tinturas básicas de economia
e negócios”, afirma ele. “Contudo, o alto número de juízes, promotores e
advogados sem as noções mais básicas faz com que as escolas tenham por missão
contribuir fortemente para que essa lacuna seja sanada, por meio da educação
continuada.” A pouca intimidade dos profissionais da área com assuntos
econômicos ajuda a tornar a Justiça ainda mais lenta. “Os juízes e promotores
necessitam de muito mais tempo para analisar processos quando deparam com temas
ligados a negócios. Em geral, eles precisam se inteirar até mesmo dos conceitos
básicos de gestão antes de se pronunciar”, avalia Dias de Souza. Para Rodas, o
Brasil poderia seguir o exemplo de outros países para abastecer os profissionais
da área com conhecimentos econômicos. “Por aqui, ainda não ecoaram as tendências
vislumbradas em outros países, que possibilitam aos alunos de Direito cursar
mais alguns semestres e obter a licenciatura em Economia, ou vice-versa”, diz
ele.

Luiz Olavo Baptista


O jurista Luiz Olavo Baptista: “Se a demora no decurso dos
processos fosse reduzida à metade, o PIB cresceria entre 3% e
5%”

A melhoria na formação de advogados, magistrados e promotores não será,
porém, sufi ciente para azeitar toda a máquina judiciária do país, embora seja
um ingrediente importante na receita de melhoria. Os especialistas mostram que
uma das primeiras providências deveria vir dos próprios juízes. “Eles devem
assumir uma postura rigorosa para evitar a avalanche de recursos protelatórios e
inclusive aplicar multas quando identificarem tentativas nesse sentido por parte
de advogados ou promotores públicos”, sugere Dias de Souza. Rigor semelhante
deveria ser cobrado também dos legisladores e de entidades públicas, como a
Receita Federal e as agências reguladoras. Mensalmente, dezenas de decretos,
portarias, instruções normativas, medidas provisórias entre outros são
publicadas. A metamorfose constante no conjunto de leis e regras que regem as
relações de negócios é um fator de estresse entre empresários e executivos.
Primeiro, porque demandam tempo para a assimilação dos novos parâmetros e a
adaptação da companhia a eles – em outras palavras, custos administrativos
maiores. Além disso, como alerta Jairo Saddi, a “legislação é um ser vivo, que
nasce, se desenvolve e amadurece”. “Sempre que uma nova lei entra em vigor, é
necessário um tempo de maturação em que ocorre um processo de regulamentação e
de interpretação por parte dos legisladores e dos magistrados”, diz ele. “Isso
requer anos. Em cada alteração ou novidade na legislação, esse processo
recomeça.” Nesse caso, só há uma solução: a mudança de atitude de todas as
partes envolvidas, seja o governo, seja o legislativo, seja o Judiciário. Mas,
para os especialistas, sem uma pressão da sociedade, dificilmente esse movimento
será desencadeado. “Os empresários, que sentem no dia-a-dia tanto a falta de
leis adequadas quanto a ausência de distribuição de justiça ‘em tempo
econômico’, deviam usar o poder que têm para mudar tal estado de coisas”, sugere
Rodas. “Se, além disso, a imprensa se sensibilizasse mais, certamente os
problemas seriam minorados, em curto espaço de tempo.”

Ao mesmo tempo, os três Poderes deveriam se unir numa maratona para “limpar”
a legislação do entulho acumulado ao longo do tempo, revendo e anulando leis
anacrônicas e modernizando códigos, como a CLT, que trata das questões
trabalhistas. “Uma legislação mais enxuta e com menos possibilidade de leituras
variadas traria mais fluidez ao trabalho do Judiciário”, afirma Maria Tereza
Sadek, da USP. Há bons exemplos dos resultados obtidos pela simplificação dos
trâmites judiciários. Uma boa parcela de contribuição veio da Emenda
Constitucional nº 45, da Reforma Judiciária, que significou um duro golpe contra
a chamada “indústria de recursos”. Entre outras medidas, criou-se uma espécie de
filtro para que o Supremo Tribunal Federal, STF, pudesse evitar o julgamento de
recursos sem relevância. Com isso, o número de processos que chegaram às mesas
dos ministros, no primeiro semestre deste ano, despencou 42%, caindo de 40.082
para 23.378. Já no Superior Tribunal de Justiça, STJ, a redução atingiu 20%,
graças à aplicação da Lei dos Recursos Repetitivos.

Maria Tereza Sadek


Maria Tereza Sadek, professora de Ciência Política da USP: “Há
legislação em excesso”


Mas, enquanto reformas gerenciais como essa não chegam, as empresas
apelam para instâncias mais ágeis do que a Justiça. Por isso, a arbitragem ganha
terreno como alternativa para a solução de pendências entre duas partes. “O uso
da arbitragem no Brasil teve um grande impulso e ela é cada vez mais usada por
aqui”, afirma Luiz Olavo Baptista, um especialista no assunto. “Inclusive o país
adotou uma tendência que já havia sido notada nos Estados Unidos, que é a
existência de arbitragens especializadas, o que só foi possível dado o aumento
do número demandas arbitrais.” No entanto, o maior obstáculo ao desenvolvimento
e uso desse mecanismo vem da própria Justiça. “Há ainda resistências à
arbitragem, especialmente na Justiça do Trabalho”, diz Baptista. “Uma
interpretação equivocada da lei de arbitragem faz com que se confundam os
direitos indisponíveis, aqueles que não são passíveis de discussão, com a prova
de que a pessoa preenche determinados requisitos para exercer esses direitos.”
Por exemplo: o direito a férias é indisponível, mas a prova de que o funcionário
cumpriu o tempo necessário para gozá-las pode ser objeto de discussão. Enfim,
como se vê, há uma distância considerável para que a atividade jurídica consiga
acompanhar mais de perto o ritmo acelerado dos negócios. Trata-se de um caminho
longo e tortuoso, mas que tem de ser percorrido caso o país pretenda realmente
ingressar numa era de crescimento econômico contínuo e sustentável.



 


João Grandino Rodas

“Os juízes e promotores necessitam de muito mais tempo para
analisar processos com temas ligados a negócios. Eles têm de se inteirar até
mesmo dos conceitos básicos de gestão”


 


João Grandino Rodas, ex-presidente do Cade, Conselho
Administrativo de Defesa Econômica


 


Revista ETCO (No. 13, agosto
2009)