Crime se infiltra em negócio legal e dificulta investigações

Mergulho no submundo dos negócios: Como o PCC distorce a economia formal no Brasil – uma investigação do Jornal Valor Econômico revela os desafios enfrentados por empresas legítimas diante da crescente influência do crime organizado.

Por Marcos de Moura e Souza — De São Paulo, Jornal Valor Econômico, edição impressa 29/04/2024
30/04/2024

Maior organização criminosa do Brasil, o PCC já não é mais um problema restrito às autoridades de segurança. Tornou-se também um fator que atrapalha e distorce negócios de diversos setores os Estados.

Empresas relatam dificuldades para concorrer com negócios que recebem “investimentos” da facção criminosa com intuito de lavar dinheiro e, alguns casos, de gerar receita extra para o crime.

Outras companhias têm rotinas alteradas em função da ameaça à segurança de suas operações em áreas sob controle do crime.

Recentemente, alertas sobre a penetração do crime organizado na economia formal foram feitos por promotores de Justiça, pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e até pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Também surgiram informações sobre empresas ligadas ao crime sendo contratadas por órgãos públicos.

Ao longo de duas semanas, o Valor reuniu relatos de empresas, advogados, de integrantes do Ministério Público, da Polícia Federal, de deputados que fizeram carreira na polícia e de acadêmicos sobre os reflexos do crime organizado nos negócios.

Ex-proprietário de postos de combustíveis em São Paulo, um empresário que refere se manter anônimo por segurança conta que o que pagava à distribuidora era muitas vezes o preço que postos próximos aos seus cobravam na bomba. Segundo ele, muitos concorrentes com preços muito baixos são “lavanderias do dinheiro da droga”. Quando quis sair do negócio, um dos interessados em comprar o negócio era de fora do setor. Acabou vendendo para outro pretendente.

A lista de negócios lícitos que passaram a interessar ao crime para lavagem de dinheiro inclui hotéis, motéis, restaurantes, açougues, clínicas de estética, lojas de carro, padarias e até fintechs.

No início de abril, uma operação da Polícia Federal fez uma investida contra duas empresas de São Paulo que produzem artistas e festas de funk, também apontadas como canais de lavagem.

“O crime organizado movimenta muito dinheiro da droga, que é sua principal receita. É um dinheiro que precisa ser lavado. Muitas vezes, os criminosos iniciam uma empresa com o dinheiro que precisa ser lavado e de repente o negócio surge. Não estamos falando de pequenos negócios, mas de estabelecimentos que vendem bons produtos, onde vai haver giro de dinheiro legal misturado com o ilegal e isso dificulta as investigações”, diz o delegado regional de Polícia Judiciária da Polícia Federal em São Paulo, Cristiano de Pádua. Outras vezes, o crime se associa – por meio da cooptação – a empresas já constituídas, diz o delegado. Nesse caso, o dono do negócio consegue elevar sua lucratividade, ficando com uma parte do dinheiro lavado pelo crime.

Às vezes, a entrada do crime num negócio legal se dá pela coação. O dono de uma padaria que tinha grande movimento na capital paulista recebeu uma oferta irrecusável de compra, associada a uma ordem para que ele aceitasse logo o negócio. O crime organizado também se vale de um dos negócios que mais movimentam dinheiro: a indústria de cigarros.

“Esse é um assunto que passou a ser tema de discussões periódicas na direção da companhia”, diz o integrante de uma fabricante de cigarros. Criminosos ligados ao PCC, ao Comando Vermelho, aos Os Manos (do Rio Grande do Sul) e a outras facções são vistos pela indústria como motores por trás das operações com cigarros ilegais. Outro player relevante do mercado clandestino, ao menos no Rio, são operadores do jogo do bicho.

Parte dos cigarros de marcas paraguaias vendidas ilegalmente no Brasil entra no país como contrabando e tem como atrativo o baixo preço. São marcas legais no Paraguai, mas não aqui.

Outra parte dos cigarros ilegais tem sido produzida no próprio no Brasil. São fabriquetas improvisadas que falsificam cigarros das marcas paraguaias, para reduzir custos e riscos da logística internacional.

No ano passado, os brasileiros fumaram 108,7 bilhões de cigarros. Deste total, 36%, ou 39 bilhões de unidades, eram cigarros ilegais, segundo estudo do Ipec, empresa de pesquisas de mercado. A fatia de mercado nas mãos de criminosos era de cerca de R$ 10 bilhões.

A contaminação de empresas privadas pelo PCC ganhou destaque este mês em São Paulo em função de dois casos. Um deles, uma operação que desmantelou um esquema que envolvia dirigentes de duas empresas de ônibus da capital paulista com criminosos do PCC. As empresas movimentam legalmente milhões de reais todos os anos, com receita própria e com repasses da prefeitura. Promotores públicos apontaram que parte desse dinheiro beneficiava o PCC.

Outra operação investiu contra um esquema de fraudes em licitações em prefeituras e câmaras municipais em cidades do interior paulista e que também beneficiava empresas de prestação de serviços de limpeza e fiscalização que tinham por trás integrantes do PCC, segundo os promotores.

Um advogado que conhece empresas que prestam serviços na área de limpeza relata que a presença do esquema criminoso em cidades paulistas está fazendo com que alguns empresários do ramo simplesmente deixem de buscar contratos em municípios onde o crime é concorrente direto.

Para as empresas legais, o ambiente de insegurança e concorrência com o crime é fatal, diz Edson Vismona, presidente executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) e do Fórum Nacional Contra a Pirataria.

Segundo a Confederação Nacional da Indústria as perdas de 14 setores para atividades ilícitas passaram de R$ 100 bilhões em 2014 para R$ 410 bilhões em 2022.

O MP já apontou ligações de integrantes do PCC com Organizações Sociais de Saúde (OSS), que prestam serviços para equipamentos públicos de saúde.

Lincoln Gakiya e Fábio Bechara, promotores de Justiça de São Paulo, dizem que aposta na entrada em empresas formais vem muitas vezes acompanhada de esquemas para driblar os órgãos de controle, sempre com a meta de ocultar os reais beneficiários.