Cadê o remédio?

Por ETCO

Autor: Roberta Paduan

Fonte: Exame, 22/08/2008

Durante o mês de agosto, 16 pessoas portadoras do vírus da Aids passaram dois dias internadas voluntariamente em um hospital de Campinas, no interior de São Paulo, recebendo um medicamento e fazendo exames de sangue de hora em hora. O resultado dessa bateria de exames revelará se um remédio em desenvolvimento no laboratório carioca Farmanguinhos, braço do Ministério da Saúde, é absorvido pelo organismo dos pacientes na mesma quantidade e no mesmo prazo que a droga que tenta replicar, o Efavirenz, pertencente à multinacional Merck. A análise dos testes, que deve sair no final de setembro, é uma prova de fogo para o laboratório estatal e, sobretudo, para o governo federal. Em maio de 2007, sob a alegação de que a Merck cobrava do Brasil mais que o dobro do preço pago pela Tailândia, o Ministério da Saúde suspendeu a compra do Efavirenz, decidiu importar versões genéricas mais baratas da droga e prometeu que, em um ano, iniciaria a produção no país. Passados quatro meses do prazo anunciado pelo governo, o início da fabricação do medicamento — um anti-retroviral do coquetel anti-Aids — ainda é incerto. Se os testes com os pacientes derem certo — o que não ocorreu na primeira tentativa, realizada no início deste ano —, os comprimidos devem começar a chegar aos pacientes no primeiro semestre de 2009. O atraso em relação ao cronograma inicial pode chegar a um ano.

Problemas em testes clínicos e atrasos no desenvolvimento de remédios ocorrem também nos maiores laboratórios mundiais. Porém, nesse caso, alguns elementos aumentam a responsabilidade do governo. Para importar o genérico do Efavirenz e iniciar o desenvolvimento da droga no país, o governo lançou mão de um polêmico recurso previsto na legislação internacional de comércio: a licença compulsória. Esse recurso é uma quebra de patente admitida em casos extremos, como o alegado abuso da Merck. Para manter o fornecimento do remédio aos portadores do vírus HIV, o governo passou a importar genéricos fabricados na Índia, que até recentemente não havia aderido ao tratado internacional de respeito à propriedade intelectual e que por isso desenvolveu a droga apesar de a original ainda ter patente em vigor. A medida gerou polêmica. “Esse tipo de episódio desgasta a imagem do país, que ainda tenta se afirmar como cumpridor de regras internacionais”, diz Ricardo Mendes, da Prospectiva, consultoria especializada em relações internacionais. Na outra ponta estão os que apóiam ações como a que foi tomada contra a Merck. “O setor farmacêutico é um dos que mais têm possibilidade de exercer abuso econômico, pois, em algumas situações, se vale da proteção de patentes para manter o benefício da exclusividade”, diz a economista Lia Hasenclever, especialista no setor farmacêutico.

Polêmicas à parte, o fato é que o governo está na berlinda. Além de lançar mão de um recurso controverso, o Ministério da Saúde prometeu algo que até agora não entregou. O atraso na produção do Efavirenz tem levantado dúvidas sobre a capacidade técnica e gerencial não só de Farmanguinhos mas dos laboratórios públicos em geral. À exceção de Cuba, o modelo brasileiro de indústrias farmacêuticas estatais não encontra paralelo no mundo. Por aqui há 19 laboratórios públicos — o mais antigo deles é do Exército, criado por dom João VI após sua chegada ao Brasil, em 1808. Parece consenso que tal rede de laboratórios oficiais é, no mínimo, um exagero. “A ‘Farmobras’ é um atraso”, afirma Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. “O governo não tem competência para produzir medicamentos e deveria fechar a maioria desses laboratórios.” Apenas quatro dos 19 fabricantes estatais de remédios são responsáveis por 75% do total de medicamentos produzidos pela rede pública.

O anacronismo e a ineficiência da rede de laboratórios estatais foram demonstrados por um estudo coordenado pela economista Lia Hasenclever. “Em geral, os laboratórios do governo não têm capacitação tecnológica nem gerencial para justificar sua existência”, afirma Lia. “Não foram criados para inovar e também não conseguem ser ágeis por estar amarrados a regras de licitações e concursos públicos.” Os próprios laboratórios oficiais demonstramse desconfortáveis com a situação atual.

“Compro matéria-prima, o coração do medicamento, da mesma forma que compro um pacote de papel”, afirma Ricardo Oliva, presidente da Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil e superintendente do Furp, laboratório do estado de São Paulo. Por lei, as compras têm de ser feitas por licitação em que vence o menor preço. Isso toma tempo. Também é vital, no caso de produtos complexos, levar em conta aspectos como a qualidade do produto. “É dificílimo manter a competitividade com sistemas de gestão tão arcaicos”, diz Oliva. Parte do atraso com o Efavirenz, aliás, pode ser creditada aos entraves burocráticos do sistema público. Após a aprovação do princípio ativo do medicamento — desenvolvido por um consórcio formado por três empresas privadas, Nortec, Cristália e Globe —, a Farmanguinhos decidiu introduzir uma alteração na formulação final do comprimido. A mudança foi feita porque um dos ingredientes teria de ser importado e, para isso, passar pelo rito da burocracia. “Quisemos economizar o tempo da importação utilizando outro insumo”, afirma Eduardo Costa, superintendente do Farmanguinhos. “Mas, como não deu certo, tivemos de fazer a importação e voltar para a fórmula original.” Só esse vaie- vem consumiu sete meses.

Prometeu, mas não entregou


Entenda o imbróglio em torno do Efavirenz — droga anti-Aids que teve a patente quebrada pelo governo — e as causas do atraso de sua produção nos laboratórios estatais


2006


Novembro


O governo inicia as negociações com o laboratório Merck para reduzir o preço do Efavirenz, uma das drogas do coquetel anti-Aids. O Brasil paga 138% mais que a Tailândia


2007


Maio


Sem chegar a um acordo com a Merck, o governo decreta a licença compulsória do remédio. O recurso, previsto na legislação internacional, permite que o país importe genéricos da droga. O ministro José Gomes Temporão anuncia que Farmanguinhos, do governo federal, e Lafepe, do estado de Pernambuco, produzirão o medicamento em um ano


Janeiro


O princípio ativo do Efavirenz (cuja produção foi delegada a três empresas brasileiras) passa em todos os testes. Farmanguinhos e Lafepe começam a desenvolver o produto final


2008


Abril


A droga não passa no teste de biodisponibilidade feito para comprovar que o remédio se espalha pelo corpo nas doses e nos espaços de tempo idênticos aos do produto da Merck. Farmanguinhos e Lafepe têm de refazer a formulação


Agosto


Os testes com a segunda versão do remédio começam a ser realizados com pacientes voluntários. Os resultados devem sair em setembro. Se tudo der certo, os primeiros lotes do Efavirenz serão entregues até junho de 2009. O atraso pode chegar a um ano

A criação da estrutura estatal tem raízes nas distorções da economia e do sistema regulatório do país. A indústria farmacêutica nacional demorou a se desenvolver por uma série de motivos. O histórico controle de preços — ainda hoje existente —, o baixo poder aquisitivo da população e a falta de uma política de proteção de propriedade intelectual não estimularam os investimentos no setor por um longo período. As conseqüências foram produção baixa e preços elevados. Ao mesmo tempo, a União e vários estados passaram a produzir remédios sob a justificativa de que muitos laboratórios privados não tinham qualidade confiável. Mais recentemente, a evolução da competitividade da indústria nacional e o advento dos genéricos, que barateou sensivelmente os medicamentos, eliminaram muitas razões para a existência desses laboratórios. Uma análise do catálogo de Farmanguinhos, por exemplo, mostra que apenas seis dos 66 produtos que saem de lá fazem sentido. “À exceção de remédios contra malária e tuberculose e alguns anti-retrovirais, o resto tem vários fabricantes e poderia ser comprado pelo governo a um custo mais baixo”, diz Vecina Neto.

O próprio governo federal parece ter percebido a necessidade de reformulação da rede, mas sabe que mexer nesse vespeiro não é fácil — a maioria dos laboratórios pertence a governos estaduais. “A partir de agora, só conseguirá recursos quem estiver adequado à nova visão do ministério”, afirma o titular da Saúde, José Gomes Temporão. Nos últimos cinco anos, o Ministério da Saúde investiu 318 milhões de reais nos laboratórios oficiais. De acordo com Temporão, essas instituições terão de produzir medicamentos considerados estratégicos, contribuir com o desenvolvimento de novos processos de produção e ter um projeto de modernização de gestão em curso. “Os laboratórios são importantes para que o governo mantenha programas de assistência, mas eles têm de passar por ajustes”, diz o ministro. Neste ano, a União gastará 5,2 bilhões de reais na compra de remédios. O Ministério da Saúde não sabe informar quanto desse valor é gasto com a compra de medicamentos dos laboratórios oficiais. Apenas o programa anti-Aids consome 1 bilhão de reais em remédios, dos quais 350 milhões são comprados da rede pública.

Algumas medidas adotadas recentemente mostram alguns avanços. No ano passado, o ministério delegou aos municípios a compra de medicamentos, antes centralizada em Brasília, abrindo espaço para que busquem remédios na rede privada. “Isso deve melhorar bastante a eficiência e até eliminar os mais ineficientes”, afirma Lia Hasenclever. Outra iniciativa foi a determinação de que o BNDES só libere recursos a laboratórios oficiais que aceitarem se submeter ao crivo de uma consultoria independente. O objetivo é que a consultoria avalie desde o tipo de medicamento a ser produzido até as melhorias de gestão adotadas. Já é um começo — mas será preciso bem mais para arejar o sistema estatal de produção de remédios.