Favela, mercado e lei

Por ETCO

Autor: ALBA ZALUAR

Fonte: Folha de S. Paulo, 14/01/2008

DE FÉRIAS em Paris, tentei trocar produtos diferentes, porém de mesmo preço, para não alterar o total da nota fiscal. “Não pode”, disse a vendedora, “a alfândega francesa vai querer ver o produto especificado, e a senhora terá problemas”. Choque cultural. Como não pensei nisso? Não havia nada de errado moralmente, mas era contra a lei.

Por que nós, brasileiros, priorizamos o critério moral mais facilmente e esquecemos a lei? Aonde vai a legitimidade da lei? Nem sempre lei e moral se sobrepõem. Quando estão de acordo, a legitimidade é incontestável. Mas, no Brasil, os espaços não encobertos por ambas ampliam-se sobremaneira.


E tudo se complica, porque nem sempre a moral é consensual e regida por critérios de justiça, e há muitas áreas da economia, da sociedade e da política fora do controle da lei. Mesmo em políticas públicas cruciais, como a habitação e o mercado imobiliário, cujo exemplo mais evidente é a favela.


Tornou-se truísmo dizer que a favela é solução para a falta de plano habitacional que contemple os pobres. Mas a favela não é mais a mesma. As casas hoje são de alvenaria, cada vez mais verticalizadas.


No Rio de Janeiro, os gabaritos legalmente prescritos são mais altos do que em bairros classe média: na Rocinha, cinco andares, na colina da Fonte da Saudade, três. Mas, na favela, gabaritos, arruamentos e espaços entre as casas usualmente não são respeitados. Um mercado imobiliário selvagem alterou as relações de classe no interior da favela de tal modo que não se podem mais ignorar as enormes distinções entre moradores e entre estes e outros agentes econômicos e políticos que nela atuam. Policiais corruptos tornaram-se também empreendedores imobiliários em favelas com ou sem milícias. Associações de moradores, controladas por milícias ou traficantes, demarcam terrenos para vender, permitem ou não a construção de prédios, definem regras para resolução de conflitos na construção e no aluguel dos valorizados imóveis.


Nas favelas controladas por traficantes, cuja atividade econômica não é condenada moralmente por moradores, a informalidade-ilegalidade atingiu as raias do absurdo.
Traficantes expulsam moradores, tomam casas e exercem justiça implacável, que condena à morte quem atravessa seus desejos de grandeza e de poder ilimitados. E constroem fortalezas, crematórios, cemitérios clandestinos. Essas são ações ilegais não-aprovadas moralmente pelos moradores. Foram o silêncio e a indiferença das autoridades competentes e de alguns especialistas sobre tais ações ilegais e imorais que deixaram criar a tirania na favela.

ALBA ZALUAR escreve às segundas-feiras nesta coluna.