Justiça social e organização do orçamento

Por ETCO

Autor: João Sicsú *

Fonte: Valor Econômico, 29/08/2007

Valor EconômicoNos tempos modernos, onde vigora o capitalismo e a
democracia, o Estado é um prestador de serviços à sociedade que o constituiu.
Portanto, necessita de recursos. Alguns serviços são necessários para organizar
a sociedade de forma civilizada; outros serviços são necessários porque promovem
justiça social. Entre os primeiros, destaca-se a prestação do serviço de
segurança pública realizado através do aparato policial. Por outro lado, a
justiça social deve ser alcançada, por exemplo, através do acesso amplo e
irrestrito dos indivíduos a sistemas de saúde e educação de alta qualidade.
Impostos, taxas e contribuições são, portanto, uma necessidade da vida
civilizada.

Há diferenças, por vezes substanciais, de ganhos que conformam as rendas dos
indivíduos que vivem em sociedade. O ponto de partida para a promoção da justiça
social é a alíquota contributiva cobrada de cada indivíduo. Está consagrado que
aqueles que ganham mais devem pagar alíquotas superiores àqueles que ganham
menos. Assim, é através de alíquotas diferenciadas que sacrifícios para o
pagamento de impostos podem ser equalizados. Logo, um imposto com alíquota única
não é socialmente justo porque estabelece um sacrifício menor àqueles que ganham
mais. É reconhecido também que a melhor forma de diferenciar alíquotas é através
do imposto direto sobre a renda e sobre o patrimônio. Os impostos indiretos
sobre mercadorias de uso generalizado como o leite, por exemplo, que possuem a
mesma alíquota para todo e qualquer consumidor, são injustos porque sacrificam
demasiadamente os menos afluentes relativamente aos mais ricos.

 
 O outro canal de promoção da justiça social está na forma do
gasto da arrecadação realizada. Contudo, a justiça social deve ser entendida
através de um conceito amplo. É muito mais do que o lema do Robin Wood: tirar
dos ricos para dar aos pobres. Justiça social é mais do que um conjunto de
mecanismos de transferência de renda. Em uma sociedade democrática e com uma
economia de mercado, a justiça social desejada é a instituição pública que
oferta segurança de vida com qualidade para todos, sem qualquer distinção de
idade, de condição (formal ou informal) no mercado de trabalho, de condição
física, racial, social ou religiosa.
 
 Os gastos públicos devem
ser feitos de modo a atender a todas as necessidades de uma vida individual e
social com alta qualidade. Devem ser realizados para gerar empregos para todos
aqueles que desejam trabalhar, mas também devem ser feitos na forma de programas
de pagamentos monetários àqueles que estão desalentados para sempre, ou seja,
que foram colocados à margem do mercado de trabalho de forma definitiva. Mais do
que isso: devem prover a todos desde o básico para a sobrevivência em uma
sociedade civilizada – como o acesso a sistemas de saúde e educação sofisticados
– até gastos com alimentos para a “alma” dos indivíduos, tais como programas
culturais. O gasto público deve ser, em resumo, voltado para garantir qualidade
de vida para todos: todos devem ter o direito de ter acesso a
tudo.
 
 Gastos públicos devem ser feitos de modo a atender a
todas as necessidades de uma vida individual e social com alta qualidade

 
 Faz-se justiça social também impedindo a constituição de
mecanismos que geram oportunidades diferenciadas. Diferenças de rendas devem ser
aceitas até certo grau, diferenças de riqueza e patrimônio também. Mas acessos e
oportunidades diferenciadas não podem ser aceitos. A instituição da justiça
social deve impedir a emergência de mecanismos que geram privilégios como, por
exemplo, a transferência de heranças em magnitude capaz de fazer um indivíduo se
diferenciar dos demais não por sua capacidade, mas sim pela capacidade de seus
antepassados.
 
 A promoção da justiça social é um ato de
investimento permanente do Estado na sua sociedade, portanto é um ato de
investimento da sociedade nela mesma. Isto implica que o orçamento público não
pode ser contabilmente dividido, de forma míope, em gastos correntes e gastos de
investimento. Gastos de investimento seriam apenas os gastos em ativos que
constituem a infra-estrutura de um país, tais como estradas e ferrovias. E
gastos correntes são todos os gastos para fazer funcionar a “máquina” pública,
tais como o pagamento de salários ao funcionalismo, gastos com material escolar
etc.
 
 Esta divisão está absolutamente incorreta porque o
Estado investe em infra-estrutura (estradas, ferrovias), mas investe
fundamentalmente em indivíduos, investe em qualidade de vida. Portanto, a
divisão deve ser outra. Todo o gasto com atividades fins deve ser considerado
investimento. E todo o gasto que sustenta as atividades fins deve ser
considerado gasto corrente. Por exemplo, o salário de um médico não pode ser
rubricado como gasto corrente. Gasto corrente seria o gasto com salários de
funcionários administrativos do Ministério da Saúde. O gasto com a realização de
um grande concerto público de música clássica não pode ser considerado gasto
corrente, isto é, investimento em milhares de
indivíduos.
 
 Esta reorganização orçamentária teria
implicações. Governos que adotassem essa metodologia orçamentária deveriam
buscar reduzir os gastos correntes em relação aos gastos de investimento, sem
prejuízo destes, porque isto representaria aumento da produtividade da máquina
pública, o que é plenamente desejável. Cortar gastos correntes, como querem os
conservadores, sem mudar a metodologia orçamentária, significa retirar do Estado
o seu papel original. Afinal, o Estado é uma criação da sociedade para
beneficiá-la, para mantê-la organizada, para trazer segurança social para suas
famílias, para garantir segurança social para a coletividade. É para isso que
indivíduos recolhem impostos, contribuições e taxas. Cortar gastos correntes sem
mudar a organização do orçamento, como querem os conservadores, pode até
auxiliar a tornar o orçamento equilibrado, mas a sociedade estará em permanente
estado de desequilíbrio porque não haverá qualidade de vida. 

* João Sicsú é professor do Instituto de Economia da UFRJ e autor do
livro “Emprego, Juros e Câmbio” (Campus-Elsevier, 2007). É também co-autor e
organizador do livro “Arrecadação (de onde vem?) e Gastos Públicos (para onde
vão?)”, Boitempo Editorial, 2007. Website: www.ie.ufrj.br/moeda/sicsu