‘Medo de decidir paralisa o Estado’, diz Marcos Lisboa

Por ETCO

Fonte: O Estado de S. Paulo, 01/09/2007

RIO – O setor público está paralisado pelo medo de tomar decisões, e isto é um sério problema de médio prazo para um País que necessita ampliar e melhorar a sua infra-estrutura. Para piorar a situação, parte do governo e da sociedade resistem à privatização, que seria uma forma de desfazer os nós que paralisam os investimentos em estradas, portos, energia, etc.

O diagnóstico é do economista Marcos Lisboa, 43 anos, que hoje é diretor executivo do Unibanco, responsável pelas áreas de risco e controle interno (“compliance”). Lisboa foi um dos principais formuladores da política econômica do ex-ministro da Fazenda, Antônio Palocci, como secretário de Política Econômica até abril de 2005.
 
 
 
 Em entrevista exclusiva ao Estado, a primeira que concede à imprensa desde que saiu do governo (do Instituto de Resseguros do Brasil, que presidiu até 2006), Lisboa critica a “criminalização das decisões técnicas”. Ele se refere à avalanche de processos contra funcionários públicos, por um Ministério Público e um Poder Judiciário que, em temas como meio ambiente, parecem querer assumir o papel do Executivo de tomar decisões.
 
 
 
 Lisboa está otimista quanto à economia global, e vê dois desafios principais para o Brasil. No curto prazo, lidar com o repique de inflação, que pode obrigar o Banco Central a mudar a direção da política monetária, o que pode provocar reações do governo e da sociedade. No médio prazo, o maior desafio é a carência de infra-estrutura, que já está se refletindo no aumento do custo Brasil. Ele também criticou a falta de rigor técnico no debate de política pública no Brasil, o que deriva, na sua opinião, da postura dos intelectuais e dos políticos.
 
 
 
 No seu período na Fazenda, Lisboa participou ativamente na estratégia macroeconômica do início do governo Lula, como a decisão de aumentar o superávit primário, mas ficou conhecido principalmente pela chamada “agenda microeconômica”. Este programa de ação incluiu inúmeras medidas para destravar e aprimorar os mercados de crédito, o setor imobiliário, os instrumentos de poupança de longo prazo, o setor de seguros, além de medidas de facilitação de negócios e de simplificação da resolução de conflitos judiciais (em conjunto com o Ministério da Justiça).
 
 
 
 Lisboa também foi influente nos rumos da política social, levando o apoio da Fazenda à aposta do governo no Bolsa-Família, depois do fracasso do Fome Zero. Grande parte das medidas que implementou ou iniciou no governo faziam parte do documento “Agenda Perdida”, elaborado por um grupo de economistas e cientistas sociais durante a campanha presidencial de 2002, sob a coordenação de Lisboa e do economista José Alexandre Scheinkman, da Universidade de Princeton. O trabalho foi uma encomenda do então candidato Ciro Gomes, mas acabou caindo nas mãos de Palocci, já com a missão de ser o ministro da Fazenda de Lula. Palocci não titubeou em adotar não só a Agenda Perdida, mas também trazer para o governo o principal formulador do documento. A seguir, a entrevista.
 
 
 
 Estado – Como o sr. vê o atual momento da economia global?
 
 
 Acho que vivemos uma conjuntura difícil num momento de médio prazo muito bom da economia mundial. Estamos num ciclo de expansão provavelmente sem precedentes, tanto pela duração quanto pela quantidade de países envolvidos. Hoje, partes importantes do mundo estão puxando o crescimento, algo inédito. Depois de um longo período histórico de economias fechadas, o comércio mundial está com um crescimento muito significativo, que tem beneficiado os países emergentes, em particular o Brasil. E as economias asiáticas em geral, e a chinesa em particular, são muito complementares à dos paÍses emergentes, em especial do Brasil. O crescimento dos asiáticos demanda commodities, alimentação, aquilo em que temos vantagens competitivas.
 
 
 
 Estado – Quais as razões para o bom desempenho do mundo, em termos gerais?
 
 
 Além da seqüência de choques de produtividade em comunicações, informática, produção agrícola, estamos colhendo os frutos de muitos anos de reformas institucionais nos países desenvolvidos e periféricos. A parte mais pobre da Europa, nos anos 80, era de certa forma parecida com a América Latina. Estes países fizeram ao longo dos anos 80 e 90 reformas institucionais profundas, além de consolidar o equilíbrio macroeconômico, e convergiram em direção aos países desenvolvidos com uma rapidez muito impressionante. Veja a Irlanda, Espanha, e mesmo Portugal. No Leste Europeu, vários países já avançaram bastante. Isto para não falar nos emergentes tradicionais que se desenvolveram, como Chile, Coréia e Taiwan.
 
 
 
 Estado – Que reformas foram estas?
 
 
 Vários destes países fizeram profundas reformas institucionais, incluindo a lei de falência, sistemas de crédito, a legislação trabalhista, agências reguladoras, previdência, entre vários outros temas. E por outro lado, do ponto de vista macroeconômico, convergiu-se para equilíbrios fiscais, regimes de meta de inflação. Os ciclos econômicos reais fazem parte da vida, há pouco que se possa fazer para evitá-los. Depois de muita intervenção desastrosa, os governos se tornaram mais cuidadosos, porém talvez ainda não o suficiente. Até os anos 70, muitas tentativas de impedir a retração econômica resultaram na piora dos ciclos econômicos, culminando com a crise da estagflação, o pior dos mundos, com recessão e inflação. Hoje, até coisas pequenas como o auxílio de liquidez pelos bancos centrais e o redesconto são discutidas, para se saber se fazem mais bem do que mal. O governo não atrapalhar já é um grande avanço.
 
 
 
 Estado – Mas essa melhoria nas política econômicas é geral?
 
 
 Hoje nós achamos o Hugo Chávez uma coisa meio estapafúrdia, meio folclórica, meio Odorico Paraguassu, mas ele não estaria fora de esquadro nos anos 80, quando o Mitterrand nacionalizava bancos e seguradoras. O presidente Kirchner, da Argentina, parece hoje uma figura meio heterodoxa, mas nos anos 80 ele seria considerado a Margaret Thatcher dos pampas. É verdade que tem um pouquinho de congelamento de preços aqui e ali, mas há um equilíbrio fiscal jamais visto na Argentina. E lembre-se que o Nixon tentou controlar preços nos anos 70 para combater a inflação. Eu não estou, obviamente, defendendo a política econômica do Chávez e do Kirchner. Pelo contrário, acho ambas ruins, equivocadas, e que vão danificar suas economias no médio prazo. Usei estes exemplos para mostrar como a perspectiva mudou, houve uma convergência para melhor na política econômica, e a percepção do que é heterodoxo é muito mais rígida. A esquerda costuma dizer que o mundo mudou e por isso eles tiveram que mudar. Mas, como diz meu amigo, o economista Samuel Pessôa, acho que não, o mundo continua o mesmo. Foram as pessoas que mudaram, a política econômica que mudou, e para melhor.
 
 
 
 Estado – Há outras causas para o crescimento da economia global?
 
 
 A gente começa a colher todos os frutos das inovações dos meios de comunicação, de informação. E não é só na indústria de informação, as técnicas de produção de alimentos melhoraram enormemente, a produtividade agrícola teve um salto, e o Brasil se beneficiou disto. Normalmente, quando há um choque de positivo de produtividade, a economia cresce muito e depois a renda se estabiliza num nível mais alto. Na fase atual, houve uma sucessão de choques tecnológicos, e a economia vem crescendo sistematicamente acima do que seria esperado.
 
 
 
 Estado – A turbulência das últimas semanas não é um sinal de que esta fase pode estar acabando?
 
 
 Quando falamos de uma desaceleração na economia americana hoje, não estamos falando de uma crise como a de 1929, nem mesmo de uma como a dos anos 70. Os mais pessimistas acham que podemos ter uma leve recessão, como a de 1991, dois ou três trimestres com a economia americana andando de lado. A surpresa de todo mundo é que, apesar da escalada de juros que houve, do endurecimento da política monetária pelos bancos centrais, a economia real continuou crescendo muito forte no mundo inteiro.
 
 
 
 Estado – O sr. poderia explicar melhor?
 
 
 A dúvida é a seguinte. Será que, por um lado, houve um problema maior de inadimplência do que o esperado, gerando um dano maior ao sistema financeiro, que levaria a uma reversão significativa da atividade econômica? Ou será que, apesar das dificuldades recentes, a economia mundial, com todas as fontes de crescimento que ela tem, continua crescendo muito, gerando pressões inflacionárias? E esta dúvida gerou volatilidade, gerou incerteza, e uma sensibilidade muito grande às notícias, que têm se refletido nos mercados desde o início do ano.
 
 
 
 Estado – Como o sr. vê o Brasil neste contexto?
 
 
 O País está melhor preparado para enfrentar um cenário global mais adverso, mas, no curto prazo, os últimos dados de inflação acenderam uma luz amarela. Temos que olhar com cuidado, porque não é mais só um problema dos tradeables (produtos comercializados internacionalmente, e mais influenciados pelo câmbio do que pela taxa de juros). Temos um problema um pouco maior, e aquela discussão sobre as metas de inflação não ajudou, até piorou. Ela coincidiu com o início da turbulência (internacional), e a curva de juros abriu (os juros subiram). A economia brasileira está crescendo a uma taxa impressionante, o que é saudável. Mas esta subida da inflação é um desafio no curto prazo. A política monetária talvez tenha que mudar de direção, e o governo e a sociedade vão ter que lidar com isso. O Banco Central fica muito exposto nestes momentos.
 
 
 
 Estado – E a médio e longo prazo, como o sr. vê o Brasil?
 
 
 Se olharmos o Brasil de 15 anos atrás e hoje, o País deu um imenso salto, e transformou-se em uma economia muito mais forte, muito mais saudável. Conseguimos avançar em reformas institucionais que vão do crédito ao desenho de agências reguladoras, à política social que agora está contribuindo para reduzir a desigualdade e a pobreza, à condução da política macroeconômica e fiscal. Este movimento da economia brasileira guarda semelhança com o que ocorreu em vários países. Só que a nossa distância em relação ao centro talvez tenha aumentado, na medida em que outros países fizeram mais do que a gente em menos tempo. A gente gastou mais tempo para fazer, demorou mais para começar, e fez muito à meia-boca. O Brasil está bem melhor do que já foi, mas não tão bem assim. Há grandes dificuldades. Nós temos toda uma agenda de reformas para garantir uma trajetória de queda da carga tributária que não entrou em ação. Enquanto a gente sinalizar, com a Previdência, por exemplo, que vamos precisar de carga tributária alta, talvez crescente, para financiar os gastos públicos, vamos ter dificuldades para sustentar o crescimento de longo prazo. Por outro lado, a proposta de reforma tributária do governo é muito boa.
 
 
 
 Estado – O sr. falou de outros países irem mais rápido. Pode exemplificar?
 
 
 Se você pega a Espanha, no fim do franquismo, e o Brasil na redemocratização, havia diferenças entre os dois países, mas nem tão significativas no que se refere ao estágio de desenvolvimento. Em uma década, a Espanha mexeu na lei de falências, no regime trabalhista, na Previdência, nos incentivos à poupança de longo prazo. Ela virou um país muito próximo, do ponto de vista institucional, dos países anglo-saxões, dos países desenvolvidos. Alguns países fizeram muito, como a Espanha, como a Irlanda, que colocaram a política fiscal em ordem, a política monetária em ordem, que fizeram as reformas institucionais completas. Eu acho que, apesar de tudo o que o Brasil fez nos últimos 15 anos, hoje somos mais diferentes da Espanha do que talvez fôssemos nos anos 80. Porque fizemos menos, fizemos pela metade. Isto gera um sentimento ambíguo. As pessoas reclamam: “Nós já fizemos a reforma da Previdência”. Já fizemos várias, e do jeito como são feitas, teremos que fazer várias outras.
 
 
 
 Estado – Qual a sua análise da Previdência?
 
 
 Esta discussão sobre se tem déficit ou não é surrealista. Se há déficit ou não na Previdência, se a CPMF deve ser considerada como receita para o INSS, ou se deve-se excluir as despesas com assistência – essa discussão é quase picaretagem intelectual. O problema é o seguinte: o gasto com Previdência aumentou muito nos últimos dez anos no Brasil e vai aumentar mais ainda, por duas razões. Primeiro, porque vários idosos que não tinham acesso a recursos públicos, chame-se de Previdência ou assistência, passaram a ter. Nós expandimos significativamente a população coberta, e eu acho muito bom que o País dê condições de vida mínimas aos idosos. Em segundo lugar, há uma questão geral, do mundo: as pessoas viviam 60 anos, e agora estão vivendo 80. No Brasil, a nossa expectativa de vida não está em 80, mas nas novas gerações já está. E em várias partes do mundo, a idade da aposentadoria foi aumentada, de 55, 60, para até 70, às vezes mais. No Brasil, então, como se aposenta muito cedo, e as pessoas vivem muito, tem que aumentar a carga tributária para cobrir. Vamos acabar pegando a CPMF inteirinha e dando para a Previdência, e daqui a dez anos vamos criar uma CPMF 2. É isso, ou então fazer o que o resto do mundo faz, que é aumentar a idade média da aposentadoria.
 
 
 
 Estado – Qual a sua análise da questão da infra-estrutura no Brasil?
 
 
 Eu acho que talvez o nosso mal maior é que não conseguimos consolidar e aperfeiçoar o marco regulatório no País. Nós, que defendíamos o modelo de agências reguladoras, fracassamos em convencer a sociedade de que as agências eram boas para o investimento, para o crescimento, para o desenvolvimento. Desde o governo FHC há um grande debate sobre o modelo de agências, e esse debate se acirrou na mudança de governo. Acho que parte do governo e parte do Judiciário ficaram sensibilizados pela idéia de que talvez o modelo de agência não fosse o melhor. Que talvez as empresas tivesses lucros extraordinários, e que talvez o interesse público não estivesse sendo melhor servido pelo desenho das agências. E houve ações muito duras em relação a alguns setores, como no caso de seguro saúde, energia elétrica, telefonia. No primeiro ano do governo, houve todo o debate sobre os contratos das telefônicas com a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e vários juízes deram liminares contra reajustes previstos.
 
 
 
 Estado – E o sr. acha que esta atitude teve conseqüências?
 
 
 Eu acho que, quatro anos depois, fica mais claro que não eram corretas as teses centrais dos críticos, de que as empresas tinham lucros extraordinários, de que os contratos poderiam ser revistos sem conseqüências importantes sobre a decisão de investimento. O investimento diminuiu muito em áreas vitais, nos últimos anos, em boa parte pela insegurança das empresas sobre a solidez dos contratos. Não tivemos, por exemplo, os investimentos que queríamos no setor elétrico, e em diversas outras áreas de infra-estrutura. Hoje, as grandes seguradoras não oferecem mais seguro saúde individual, só oferecem para empresas.
 
 
 
 Estado – O apagão aéreo levou muitas pessoas a questionarem a independência das agências reguladoras.
 
 
 Eu acho que este caso mostra a importância da boa institucionalidade, de o processo ser bem conduzido o tempo todo, a indicação ser a mais adequada, o Senado cumprir da forma mais adequada o seu papel de avaliar os candidatos, de haver um marco regulatório claro que estabeleça os papéis que devem ser desempenhados pelas agências e como seus executivos devem ser periodicamente avaliados pelo Senado. Além disso, agência não é para tudo, foram colocados no modelo setores que não eram para ter agência.
 
 
 
 Estado – Aviação tinha de ter agência reguladora
 
 
 É um bom debate. Agência reguladora é para quando existem investimentos de longo prazo, em setores com custos fixos muito altos, custos marginais muito baixos, e investimentos muito longos, que demoram dez, 15 anos, perpassando vários governos. Alguém investe, e aí há o risco de algum governo, ou mesmo o Judiciário, argumentar, depois que a obra foi feita, que “assim não”, que o custo para produzir uma unidade a mais é muito baixo, que os preços deveriam ser menores, no limite rompendo o contrato estabelecido, ou expropriando a concessionária. Só que, com esse risco, as empresas preferem não investir. Então foi para resolver esta questão que o mundo – não foi o Brasil – inventou as agências reguladoras, como um órgão de Estado independente do governo, porém com prestação de contas ao Congresso Nacional, para setores como telecomunicações, eletricidade, transportes.
 
 
 
 Estado – Que outros fatores impedem os investimentos em infra-estrutura?
 
 
 Nós temos questões institucionais muito complicadas. Pega o meio ambiente, por exemplo. Se um técnico do Ibama autoriza uma obra qualquer, e o procurador do Ministério Público discorda, ele pode processar o técnico do Ibama na pessoa física, criminalmente. Você criminaliza uma decisão técnica. Não é nenhum indício de má-fé, é discordância. Quer dizer, com uma espada destas em cima da cabeça, quem é que vai autorizar qualquer coisa? Isto é um custo para a sociedade.
 
 
 
 Estado – Mas a questão do meio ambiente não é uma preocupação legítima?
 
 
 Não é apenas uma questão de desenvolvimento versus meio ambiente. É pior do que isso. O que você tem hoje é uma incapacidade muito grande em analisar os casos, em tomar decisão. Hoje, temos uma grande paralisia. Claro que sempre existe um “trade-off”. Quais impactos são aceitáveis, quais não são, e quais os custos que a sociedade está disposta a pagar para preservar o meio ambiente, como os empregos ou a renda que deixarão de ser gerados. Trata-se de um típico problema de escolha social. O problema é que hoje você não consegue tomar decisão em função dos riscos pessoais. O Ministério Público e o Judiciário são muito importantes, mas em alguns casos seus membros parecem tentar substituir o funcionário público na decisão a ser tomada, o que gera insegurança e paralisia. Esse problema hoje não ocorre apenas no meio ambiente, e torna cada vez menos eficaz a gestão do setor público. Se em vez de analisar o ilícito, se começa a discutir a tecnicalidade da decisão, o bom funcionamento do governo fica cada vez mais inviabilizado. Sobretudo, quando a discordância técnica é acompanhada da criminalização do gestor público. A sociedade reclama, com razão, da impunidade, dos culpados soltos. Porém, há igualmente muitos funcionários públicos injustamente processados com base em discordâncias puramente técnicas.
 
 
 
 Estado – Quais as conseqüências da paralisia em infra-estrutura?
 
 
 Para responder a esta pergunta, é preciso acrescentar que, além da paralisia no setor público que eu descrevi, há uma resistência de parte do governo e de parte da sociedade em privatizar setores que na imensa maioria dos países são eficientemente geridos pelos setor privado. Então as coisas não andam, e a conseqüência é que o custo Brasil está subindo. Está cada vez mais caro entregar soja no porto, construir uma fábrica, ter acesso a energia. Isto vai virar perda de renda para o País. A sociedade vai ter um empobrecimento relativo. A carência de infra-estrutura aumenta o custo do serviço, cria fila. A fila, o racionamento, às vezes são o pior preço possível . Tem fila para entregar soja no porto do Paraná, uma fila longa, todos aqueles caminhões parados. E, os custos não vêm só da infra-estrutura física, mas também da institucional. O custo de resolução de conflitos no Brasil é muito alto.
 
 
 
 Estado – Por falar em política social, com o sr. vê o Bolsa-Família?
 
 
 Fiquei muito surpreso no início do governo quando intelectuais de esquerda foram radicalmente contra o Bolsa-Família, acusaram o ministério da Fazenda de estar indevidamente interferindo na política social, e, sobretudo, sustentaram que destinar os recursos especificamente para os mais pobres, ou focalizar a política social, como foi denominado, era um grande equívoco. O Bolsa Família é um aperfeiçoamento de programas que começaram no governo Fernando Henrique, e que foram desenvolvidos de forma fragmentada. Nós sabemos que o maior porcentual de pobreza está em famílias com crianças pequenas. E também se sabia que, se alguma coisa ajuda esta criança, quando ficar adulta, a sair da pobreza, é a escolaridade. O objetivo era unificar os recursos dos diversos programas sociais já existentes, destiná-los a essas famílias, com diversas condicionalidades, como as de que as crianças fossem vacinadas, freqüentassem a escola, etc. Dessa forma, o programa por um lado, garante alguma renda mínima à família, e, por outro, procura estimular a criança a permanecer na escola. O Bolsa-Família teve um impacto significativo sobre a desigualdade. Agora, tem que ter cuidado, porque o programa pode ficar muito caro ou se tornar ineficaz, e os recursos sociais são importantes para a saúde, para a educação. E o Bolsa-Família é um programa que tem custos. Além do mais, como qualquer política social, ou tratamento médico, tem efeitos colaterais.
 
 
 
 Estado – Como assim?
 
 
 Havia a idéia no começo de que o programa deveria se concentrar em regiões muito pobres e muito homogêneas. Dessa forma, mesmo que ocorram transferências equivocadas, o erro é pequeno, porque quase todo mundo que vai receber é pobre mesmo. Nas grandes regiões urbanas, mais heterogêneas, o programa tem desafios incomparavelmente maiores e pode não funcionar tão bem: os mecanismos de transferência podem ficar sujeitos aos problemas que conhecemos tão bem, de tráfico de influência, uso eleitoral, corrupção. Além do mais, como saber para quem transferir os recursos? Não há dinheiro para todo mundo que mora nas grandes cidades e a desigualdade é muito maior, mesmo em áreas mais pobres. Como garantir que está recebendo quem de direito? E o programa pode afetar o mercado de trabalho, gerar incentivos ao aumento da taxa de fertilidade nas famílias. Eu vejo com preocupação o fato de o Bolsa-Família estar crescendo muito, de forma talvez indiscriminada, que inclusive pode torná-lo muito caro. É um risco adotar o programa onde talvez ele não funcione tão bem, pode queimar um bom programa.
 
 
 
 Estado – Qual seria o caminho para o Bolsa-Família?
 
 
 Com as famílias já cadastradas nas regiões mais pobres, você poderia começar a fazer uma discussão mais profunda sobre que políticas sociais adicionais poderiam ser feitas para retirá-las da pobreza. O programa já chega aos mais pobres, aos lugares mais carentes do Brasil. Mas será que está funcionando? Será que tem alguma coisa adicional a dar? Será que falta alguma coisa de infra-estrutura ou de educação para estas famílias? O que eles precisam a mais para sair da pobreza? Será que estas crianças que vão para a escola de fato vão continuar e vão progredir na vida, vão conseguir ter uma qualidade de vida melhor que a dos seus pais? Tem muita coisa que a gente não entende. Talvez seja a hora de, dado o programa que existe, estudar que políticas adicionais podemos fazer para de fato ajudar estas famílias, ou os filhos destas famílias, a sair da pobreza. Em vez disso, estamos expandindo para regiões onde o controle é muito mais difícil, onde garantir que os recursos de fato cheguem a quem você quer é mais difícil.
 
 
 
 Estado – Uma reforma que parece nem ter começado é a trabalhista.
 
 
 De fato, essa a gente não fez. O problema no Brasil é que o debate é muito preconceituoso. Se você não gosta do diagnóstico, descarta o médico. Se eu falo que acho que a legislação trabalhista hoje piora o mercado de trabalho, reduz o acesso a emprego, se digo que ela aumenta muito o custo da demissão, e portanto ela gera um custo na admissão e desestimula a expansão do emprego, se eu acho que ela piora a vida do trabalhador, e listo as razões, as pessoas falam que é porque eu sou contra o trabalhador e a favor da empresa. Desqualifica-se o argumento porque não se gosta da conclusão. Como o paciente que troca de médico porque não gostou do diagnóstico de câncer, e prefere outro que disse que era apenas uma indisposição e que nada como alguns cigarros e bastante chop para curar o mal estar. Isto me lembra o debate sobre política social, quando o governo ia lançar o Fome Zero e o Primeiro Emprego. Nós argumentávamos que havia erros de concepção intrínsecos, que os programas não iam funcionar, e então diziam que éramos contra o trabalhador jovem, ou contra a ajuda ao pobre. Parece que as pessoas debatem política social e econômica teleológica, já sabendo o que querem ouvir.
 
 
 
 Estado – Como deveria ser a discussão?
 
 
 Eu acho que devemos discutir a política pública com o mesmo cuidado que discutimos novos medicamentos: testes, grupos de controle, análise estatística, acompanhamento ao longo do tempo dos resultados. Isso porque mesmo a melhor conjectura pode ter efeitos colaterais inesperados. Sobretudo, deve-se evitar o debate com base no exemplo pitoresco, ou no argumento de autoridade. Quando eu era garoto, tinha sempre alguém que argumentava que cigarro não fazia mal pois havia um tio, ou um avô, que fumava e já era bem idoso. Para usar outro exemplo da minha infância, havia essa figura do motorista de táxi que tinha sempre uma tese, entre curiosa e estapafúrdia, para resolver algum grande problema, do conflito árabe-israelense à fome no mundo. Havia sempre alguma lógica na loucura do argumento, obviamente muito pouco centrado em qualquer análise cuidadosa dos fatos. Os intelectuais brasileiros têm um pouco essa síndrome do motorista de táxi. São construídas grandes teses com o objetivo de argumentar alguma complexa teia de causalidade, seguida de prescrições genéricas de política pública, que mal ficam de pé. O mais curioso nessas abordagens, que lembram um pouco os argumentos esotéricos e os homeopatas, é a rejeição de testes usuais da abordagem científica e do uso cuidadoso dos dados, cujo único papel para esses intelectuais parece ser ilustrar o argumento e não testá-lo estatisticamente.
 
 
 
 Estado – O sr. acha difícil debater os problemas no Brasil?
 
 
 Eu acho que o debate esquerda-direita no Brasil desqualificou a importância da gestão, da técnica na gestão pública. Tudo virou política, tudo virou interesse. São todos como o motorista de táxi da minha infância dizendo qual o melhor procedimento a ser tomado. Quando se trata de fazer uma cirurgia do coração, todo mundo acha a técnica importante. Mas para fazer política social não precisa. Pior, ao invés de debater os argumentos, com freqüência procuram desqualificar o autor da posição divergente, que estaria defendendo algum interesse escuso. Há uma recusa em debater fatos e dados, e uma preferência por preconceitos ou opiniões individuais. E eu não troco uma boa evidência empírica por qualquer preconceito ou opinião. Na discussão do reajuste do preço da telefonia, da energia e do seguro-saúde, com a maior facilidade foram tomadas decisões sem qualquer embasamento que, a longo prazo, prejudicaram a vida muita gente. E não deveria ser assim. Às vezes as pessoas querem fazer o bem e terminam por fazer o mal.