Projeto tipifica crime de biopirataria e prevê punição de até 12 anos de prisão

Por ETCO


O Globo, 17/04/2005


O governo federal prepara um projeto de lei destinado a frear a sanha dos biopiratas que agem quase que sem punição nas florestas brasileiras. Um dos principais objetivos é tipificar o crime de biopirataria, hoje inexistente nas leis do país. Por causa do vácuo legal, a prática vem sendo punida apenas com base na lei de crimes ambientais, cujas penas são mais brandas. Resultado: são raros os casos de biopiratas presos, o que funciona como incentivo à atividade.


A falta de uma lei que defina a biopirataria como crime dificulta o trabalho das autoridades incumbidas de combatê-la. A lei de crimes ambientais prevê penas de seis meses a um ano e meio de prisão somente, o que quase sempre dá ao acusado o direito de responder ao processo em liberdade. No caso de biopiratas estrangeiros, na maioria das vezes eles apenas assinam um termo circunstanciado e ficam livres para deixar o país.


? Isso dificulta nossa ação ? diz o delegado Paulo de Tarso Teixeira, chefe da Divisão de Combate a Crimes Contra o Meio Ambiente da Polícia Federal.


Aranhas vendidas a R$11 mil na Europa


Além do vazio legal, há a falta de infra-estrutura para lidar com a biopirataria. Em todos os estados da Amazônia, a PF tem menos de 20 policiais lotados nas delegacias de meio ambiente, responsáveis por investigar esse tipo de atividade.


O GLOBO teve acesso à cópia de um relatório reservado, preparado pela área de inteligência do governo, que revela um festival de artimanhas de biopiratas para driblar o já frágil esquema de controle. Um caso emblemático é o do alemão Marc Baumgarten. Em fevereiro de 2001, ele foi preso em Curitiba carregando aranhas caranguejeiras e solto em seguida, inclusive com aval do Ministério Público, sob o argumento de que aranhas não se enquadram na definição de animais silvestres.


Logo Baumgarten voltaria a dar trabalho às autoridades, desta vez na Amazônia. Em 2003, no município de Presidente Figueiredo, a 110 quilômetros de Manaus, ele arregimentou crianças para coletar aranhas em troca de alguns trocados. Pagava R$3 pelo exemplar. Sua estratégia fez com que várias dessas crianças fossem picadas. Numa investigação mais detida, descobriu-se que ele já havia entrado dez vezes no país desde 1994. Só em 2001, enviou 20 diferentes espécies de aranhas para a Alemanha. Ele vendia os espécimes por valores que chegavam a 3.250 euros (cerca de R$11 mil).


Outro alemão, Hans-Joachim Thiem, passou-se por funcionário de uma empresa de turismo estrangeira interessada em vender pacotes de viagens para a Amazônia e conseguiu, com a ajuda de índios, coletar 21 sementes.


Os estratagemas incluem cooptação de nativos e de estudantes das universidades da região, como fez Irina Yokoyama, uma mulher de traços orientais que se dizia interessada no potencial medicinal das sementes de cumaru e saracura mirá.


? Estamos traçando uma linha de ação, mas os resultados ainda vão demorar um pouco para aparecer ? admite Eduardo Vélez, secretário-executivo do Conselho Gestor de Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente.


Lobby de laboratório por regras flexíveis


A despeito da necessidade de se criar punições mais severas, o projeto a ser enviado ao Congresso Nacional segue a passos lentos. O texto-base foi enviado pelo Ministério do Meio Ambiente para a Casa Civil da Presidência no fim de 2003, para que fossem feitos os últimos ajustes. Até agora, porém, o projeto continua sem um ponto final.


O motivo da lentidão está relacionado ao emaranhado de interesses que o assunto envolve. Além das punições aos infratores, o projeto prevê a repartição de lucros obtidos com o comércio de produtos feitos a partir de material genético coletado no país. Laboratórios privados têm feito lobby em favor de regras menos rígidas, inclusive para obtenção de autorização para pesquisa.


Mas não são apenas interferências externas que atrasam o envio do projeto ao Congresso. Dentro do próprio governo há divergências. Uma delas é exatamente a fixação das penas. O anteprojeto que saiu do Meio Ambiente previa desde multa a prisão de até 12 anos para casos mais graves, como a exploração ilegal de material genético para fins de bioterrorismo.


Acessar material genético sem autorização seria caso para prisão de um a três anos, mais multa. Envio ilegal de amostras ao exterior poderia render de dois a quatro anos de reclusão. E piratear sob risco de causar danos ao meio ambiente daria cadeia de até seis anos. Essas penas estavam aliadas a multas de até R$50 mil. Mas o Ministério da Justiça argumenta que a punição está rigorosa demais e incompatível com penas de outros crimes de maior potencial ofensivo.


O projeto cria regras rígidas para o acesso ao patrimônio genético brasileiro. Abrange até os conhecimentos tradicionais de populações nativas. Traz ainda um procedimento novo, que poderá financiar as ações públicas no setor: benefícios resultantes da exploração econômica do produto obtido com o material pesquisado terão de ser divididos, igualitariamente, entre todos os envolvidos no processo, incluindo o próprio governo.