“O contencioso fiscal do Brasil equivale a meio PIB”, diz Edson Vismona à Istoé Dinheiro

Por ETCO
27/03/2020

“Se juntar União, estados e municípios, o contencioso fiscal passa de   R$ 5 trilhões ”  – Edson Vismona, presidente do ETCO.

Apenas no âmbito federal, a falta de acordo entre o Fisco e os contribuintes deixa parado o equivalente à metade do PIB brasileiro. O valor chegou a R$ 3,4 trilhões em 2019. É algo sem paralelo no mundo. Parte desse dinheiro poderia migrar para os cofres públicos e virar investimento do Estado. Para isso é preciso estabelecer uma nova relação com a Receita. Segundo o presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, “a atual quebrou”.

De Osvaldo, a honestidade. De Alice, a humildade. Os pilares que norteiam o dia a dia de Edson Vismona vieram de seus pais. Paulistano do Brás, 60 anos, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (Universidade de São Paulo), o presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco) acaba de iniciar a condução de sua maior cruzada: construir uma nova relação entre os contribuintes, especialmente os grandes, e o Fisco. “A que existe não serve mais”, diz. As lutas do Etco até aqui não eram pequenas. Mantido por empresas dos setores de bebidas, cigarros e combustíveis, que enfrentam pirataria, fraude e devedores contumazes – apenas o segmento de cigarros recolheu R$ 11,8 bilhões, em 2019, mas a evasão somou R$ 12,2 bilhões –, a entidade contratou a consultoria EY para elaborar o mais detalhado estudo sobre contencioso tributário no Brasil. Dinheiro equivalente a meio PIB (R$ 3,4 trilhões) parado em tribunais e que poderia ser injetado na veia do erário. “A luta de agora serve para toda a sociedade. É a nossa contribuição ao País”,

DINHEIRO — O Etco preparou um estudo parrudo sobre a questão do contencioso tributário no Brasil e constatou algo assustador, que o volume de recursos sob litígio equivale à metade do PIB, R$ 3,4 trilhões. Como se chegou a isso?
EDSON VISMONA — Nossos associados trouxeram essa preocupação, de existir muito dinheiro sendo discutido nas instâncias administrativas, ou instâncias judiciais. Contratamos a EY para não apenas verificar a situação, mas também compará-la a de outros países, ver se o Brasil está fora da curva ou não. O que era um comentário se traduziu em números: R$ 3,4 trilhões, em 2019, o que equivale a 50,4% do PIB.
Pelo estudo, esse dado tem crescido. Em 2013 era de R$ 2,2 trilhões (42% do PIB). Nominalmente, houve alta de 54% em sete anos, para os R$ 3,4 trilhões. Sim, além de um cenário já dramático, o viés é de alta. É algo assustador.

O que ocorre nos demais países pesquisados em comparação com o Brasil?
Escolhemos seis países, todos mais bem situados que o Brasil (80º) no Relatório de Competitividade Global 2017-2018: Estados Unidos (2º), Alemanha (5º), Austrália (21º), Índia (40º), Portugal (42º) e México (51º). A seleção buscou sistemas legais distintos e que funcionariam como benchmarking [os três primeiros], nações de influência direta, como Portugal, ou de semelhanças econômicas com o Brasil [Índia e México].

E o que descobriram?
Em nenhum o contencioso é semelhante ao nosso. Nos demais países mal passa de 2% do PIB.

Isso tem a ver com a complexidade do sistema tributário brasileiro?Sistema tributário complexo é o de todo país. O nosso não escapa. Mas além de complexo o nosso é caótico. Por quê?
Houve uma produção insana de normas tributárias. De 1988 [Constituição] a 2018 foram editadas mais de 390 mil normas. Isso mostra a voracidade do Estado em querer regular.

Nesse período (1988-2018) dá quase 20 mil normas por ano.
O que provoca o contrário do pretendido [que é arrecadar]. Porque quanto mais você regula mais alternativas de discussão você cria. Nós perdemos toda a ideia de estrutura racional de arrecadação.

Uma máquina arrecadadora não só voraz, como o senhor define, mas irracional. Mas o apetite aparentemente não mudou.
Mas bate em seu limite. Temos 35% de carga tributária em um País que oferece muito pouco à sociedade. Para onde vai esse dinheiro? Vai para pagar a Previdência. Vai para pagar salário. Não é para investir. O valor do orçamento da União para investimento é ridículo. Não se trata de perguntar se o Estado deve ou não gastar. Deve gastar, mas gastar bem. No que é importante. Particularmente, defendo uma forte presença na questão social, ainda mais num País tão desigual quanto o nosso. Mas não defendo um Estado maior. E não havia, em governos anteriores, uma discussão pela contenção do tamanho desse Estado.

Ele inchado e ainda crescendo faz o dinheiro ficar menor.
Havia uma ideia muito maluca de que o dinheiro aparece. Eu já ouvi isso de gestores [públicos]: ‘Ah, uma hora o dinheiro aparece’. Onde? Aparece porque não é teu. A relação do administrador público com o dinheiro público muitas vezes é uma relação irresponsável.

Uma hora a conta chega.
Sim, a conta e o pesadelo. Um Estado que tradicionalmente vinha num processo de aumentar gastos vai querer aumentar a arrecadação de todas as formas possíveis, criando todos os penduricalhos para arrecadar, não importa como. A conta não fecha, aumenta o contencioso, o déficit aumenta. Aí vem a loucura.

Com tanta norma o ambiente para discutir com o Fisco fica fértil.
Vou dar um exemplo. O Fisco declara o seguinte: você não pagou tal imposto, isso é crime e você, ou seu diretor, vai ser denunciado ao Ministério Público. Você responde: ‘Pera lá, o que errei?, onde errei?, tivemos uma interpretação diferente da de vocês, isso não é crime’. A resposta é: ‘Vou representar mesmo assim, depois você se vira, vá lá se defender’. Isso impacta qualquer empresa séria. Apenas o percentual de representações fiscais para fins penais cresce de 25,4% do total (2017) para 29,4% do total (2018). Quer dizer que em um ano as empresas resolveram se tornar criminosas? Empresas com ações na bolsa, que pagam bilhões de impostos, que têm patrimônio…

O que pode ser feito para que esse ambiente fiscalmente em guerra seja desfeito?
Precisamos de uma DR, discutir o relacionamento. Vamos discutir a relação Fisco-Contribuinte. Porque a que existe quebrou. O Estado quer receber e o contribuinte quer pagar. Li numa notícia que o contencioso é bom para as empresas porque elas não pagam e empurram com a barriga por 19 anos. Não é verdade. Porque esse ‘não pagar’ está registrado no balanço.

E traz impactos.
Impacta na bolsa de valores, na avaliação daquela empresa, prejudica rating. Em nada isso é bom para o contribuinte.

Existe uma cultura da Receita em não buscar a solução, o acordo, logo de cara?
Aí entra discutir a relação. Na comparação com os demais países, isso chamou muito a atenção. Todos eles procuram definir o débito fiscal, o quanto é devido, no início. Mesmo o Fisco americano, famoso por ser duríssimo, procura resolver a pendência no início, usam dos mecanismos da mediação, da arbitragem. Isso vale para Estados Unidos, Alemanha, Austrália, pro México, pra Portugal… Até na Índia funciona melhor.

Já aqui…
Aqui ficamos encalacrados. Num processo em que você é autuado, não concorda com aquele valor, muitas vezes a resposta vem em forma de agravar com uma multa de 100%, 150% em cima e ainda com uma ameaça de receber uma representação fiscal e ser levado ao MP como criminoso. Acontece muito. Muitas vezes de início o Fisco diz ‘ah, eu errei’. Aí você pede para que então se corrija a autuação, mas ouve como resposta ‘não, não, leva pra discutir’. Não corrige o erro que ele próprio já admite. Um processo desse se for linear dá quase 19 anos. Fica em aberto, sem que o Fisco receba.

O que uma mudança nessa cultura poderia significar?
Uma estimativa nossa, depurando multas e chegando a um valor mais factível desse contencioso de R$ 3,4 trilhões, mostra que algo em torno de R$ 900 bilhões poderiam virar arrecadação, de grandes contribuintes. Vamos dividir isso em dez anos, dá R$ 90 bilhões ao ano [o déficit público do governo central em 2019 foi de R$ 95 bilhões]. E é factível.

De onde vem essa postura litigiosa?
Conversando com um fiscal ele disse que eles não têm essa liberdade de, diante de uma situação, não autuar. Em parte é verdade. Mas existe a possibilidade, no Código Tributário Nacional [artigos 156 e 171], de regulamentar acordo. Está no Código, só falta a lei para regulamentar. Mas é preciso também que os administradores busquem essa interpretação. Já há quem trabalha nesse sentido. Em São Paulo temos uma lei de 2018, que levou ao Programa Nos Conformes [em vigor desde 2019], que vai nesse sentido do acordo, da comunicação transparente.

São iniciativas ainda isoladas e enquanto o cenário não muda, ele se agrava.
Porque esse contencioso se avoluma a cada ano. Nós estamos num fosso tributário e em vez de escada nos jogaram uma pá. Não quero pá, quero escada.

E o que efetivamente o Etco tem feito para que ocorra a mudança?
A partir deste estudo faremos um roadshow, levando a autoridades, lideranças políticas. Queremos despertar a discussão. A gente tem dados de que se juntarmos estados e municípios o contencioso passa de R$ 5 trilhões. Porque é uma lógica que não vale só para o Fisco federal. Vale para o estadual e o municipal.

Esse debate pode se embaralhar ao da reforma tributária?
O tema da reforma tributária nos preocupa muito porque não temos números sobre ela. A gente não sabe o que virá. Quem tem os números é o governo federal, que não entrou no jogo ainda. Então não temos clareza. E aí cada um fala uma coisa. Às vezes assustadoras, como o de que em cima de serviços os tributos vão aumentar 300%… De toda forma, o que nossa experiência mostra é que toda reforma tributária aumentou o contencioso.

Então virá mais briga por aí?
Sim. Vai aumentar o contencioso. Ou seja, estamos trocando a pá do fosso do contencioso tributário por uma escavadeira.

A discussão de relação Fisco-Contribuinte, proposta pelo Etco, não pode atrapalhar a da reforma tributária?
Nossos tributaristas são unânimes em enxergar na questão do contencioso algo mais importante que a própria reforma tributária. Porque daríamos um fôlego de caixa para o Estado. Resolver o contencioso seria algo prévio à reforma tributária, porque ela seria feita em outro patamar, não no desespero.

Mas a sociedade, incluindo praticamente todas as lideranças empresariais, financeiras, economistas de todas as linhas, todos têm expectativa pela reforma.
Sim, a sociedade quer resposta, mas ela não quer entrar num pântano. Sem saber o que sairá dali.

Sobre essa inércia do Executivo. Parte considerável dela não tem origem na falta de pressão de parte da elite empresarial, que passou o primeiro ano do mandato de Bolsonaro dizendo ser possível blindar a pauta econômica das questões políticas, que uma não contaminava a outra?
São temas absolutamente conectados. Uma declaração de um presidente ou um ministro, uma mera declaração, pode derrubar a bolsa ou elevar a bolsa. Por isso nosso mercado é tão volátil. Pegue a questão do coronavírus, que não é um tema político em si. Declarações políticas podem agravar ainda mais a situação, por exemplo, se passarem a percepção de que nossos políticos não estão encarando a situação com a gravidade que ela merece. As coisas estão todas conectadas. Não há como separá-las.

E os temas se contaminam?
Sim. Está tudo conectado. O setor produtivo brasileiro é muito competitivo, da porta para dentro. Mas da porta para fora, as coisas ficam difíceis. Arcamos com o ônus de nossa conjuntura.

A condução da agenda econômica do ministro Paulo Guedes passou a receber duras críticas, inclusive de economistas do seu próprio espectro conceitual, como Armínio Fraga e André Lara Resende, que chegou a chamar o liberalismo de Guedes de primitivo. E o setor empresarial?
O setor empresarial está sempre preocupado em como otimizar seus ganhos, mas também que esse processo aconteça em equilíbrio. Há uma maturidade cada vez maior de que o lucro a qualquer custo não adianta. E uma preocupação do setor empresarial sempre foi em relação ao tamanho do Estado. O nosso cresceu muito. Isso onerou demais a sociedade, onerou muito os setores produtivos. É um Estado pesado e ineficiente.

E o discurso do ministro vai ao encontro dessa preocupação.
Ele [Guedes] está falando claramente em diminuir o Estado. Isso é bom, então o empresariado apoia. Mas chega a um ponto em que você não vê as consequências, mesmo considerando todas as dificuldades que essa agenda tem no Congresso. Aí vem mais uma vez a relação com a política. A economia não conversa com a política, claramente não há diálogo… Isso nos preocupa muito.

A saída…
O que queremos é que haja uma convergência. E temos nossa contribuição para esse debate.