O contribuinte e o Estado

Brasil precisa avançar na melhoria das relações do fisco com o contribuinte e medidas legislativas devem ser vistas como atos de equilíbrio

Edson Vismona, presidente do ETCO
18/11/2022

O pensador Alceu de Amoroso Lima ensinou que “O Brasil começou pelo fim” uma vez que ao sermos achados, o Estado, a soberania portuguesa se impôs, o povo veio depois.

Recorro a essa frase para demonstrar que o poder do Estado é determinante na realidade brasileira. Sabemos da difícil relação que o cidadão tem com o poder público. Não obstante o artigo 5º da Constituição Federal definir como cláusulas pétreas os nossos direitos e garantias fundamentais, no dia a dia o reconhecimento e a prática desses direitos enfrenta grandes percalços. É comum governantes confundirem Estado com governo e este com seus partidos políticos e interesses pessoais.

A área tributária reproduz essas dificuldades. A ação do fisco, com o argumento que está a defender os interesses públicos do erário, por vezes, ultrapassa limites na interpretação da lei, mediante decretos, portarias e regulamentos, apontando para o contribuinte o caminho do contencioso administrativo e judicial. Assim, não surpreende que tenhamos o maior contencioso tributário do mundo, com mais de R$ 5.0 trilhões em discussão.

Cientes desse contexto, o Instituto ETCO, por sugestão do presidente do seu Conselho Consultivo, Dr. Everardo Maciel, contratou, junto à consultoria EY, um estudo técnico sobre os instrumentos de defesa e proteção ao contribuinte na legislação brasileira e no direito tributário comparado, internacional. Foram tratados: Cenário atual; O contribuinte brasileiro nos níveis federal e  estadual (com o mapeamento das normas constitucionais e infraconstitucionais existentes) Análise comparada: instrumentos estrangeiros de proteção ao contribuinte. A proposta é identificar como o contribuinte é tratado no Brasil e em países com as melhores práticas para que possamos refletir como evoluir na relação do contribuinte com o fisco, ponto diretamente ligado à melhoria do ambiente de negócios e ao fortalecimento da segurança jurídica dos cidadãos e empresas.

O estudo apresentou dados que demonstram que, não obstante iniciativas como o Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal (Confia) da Receita Federal e Programas de Conformidade Tributária nos Estados, o índice de insatisfação do contribuinte com os serviços prestados (pesquisa da Receita Federal) em 2021 teve a média de 74%.

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Ao lado dessa constatação foram identificados os aspectos que merecem atenção: Previsão de direitos do contribuinte dispersa em diversos dispositivos legais e regimentos, dificultando a compreensão das suas garantias pelo próprio contribuinte; Imposição de multa agravada antes da efetiva comprovação de eventual cometimento de fraude, com foco em grandes contribuintes; Ausência de tratamentos distintos dos contribuintes eventual, reiterado e contumaz, em inobservância ao princípio da equidade; Expressivo percentual de aplicação da representação fiscal para fins penais, cujos dados de contribuintes são publicizados antes da conclusão na esfera administrativa; Ausência de iniciativas de avaliação de desempenho da administração tributária por meio de ferramentas internacionais, que foram adotadas por alguns dos entes federados, a exemplo do TADAT (Tax Administration Diagnostic Assessment Tool) que identificou que estamos entre os mais baixos índices de resolução eficiente de litígios tributários do mundo, entre outras constatações.

No nível estadual foram identificados 12 estados brasileiros que adotaram a positivação dos direitos e garantias do contribuinte por meio de códigos, além do Distrito Federal: Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Piauí, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.

Na comparação com as melhores práticas foram avaliados três países: EUA; Alemanha e Austrália. Em todos há leis voltadas para a defesa dos direitos dos contribuintes, com destaque nos EUA para a Taxpayer First Act com foco no atendimento ao contribuinte e, procedimentos de fiscalização; Taxpayers Advocate Services (TAS) que no âmbito do Internal Revenue Service (IRS), é o órgão independente de defesa ao contribuinte; Taxpayer Advocacy Panel (TAP) Comitê de consultoria federal do IRS que auxilia na identificação de questões tributárias relevantes para o contribuinte; E a expressa previsão de contato com superiores nos termos do item nº 2 do Taxpayer Bill of Rights, assegurando o direito a um serviço de qualidade que inclui a possibilidade de contato com superiores dos agentes fiscais em caso de problemas durante as fiscalizações.

Na Austrália, assim como nos EUA, há o reconhecimento dos direitos do contribuinte por meio da Carta do Contribuinte (Taxpayers’ Charter), destacando as seguintes posturas: Direito de audiência, contribuinte tem o direito de audiência no curso do processo administrativo; O Australian Taxation Office (ATO) se compromete a auxiliar o contribuinte quando necessário, explicar as suas manifestações, responder às solicitações do contribuinte e promover o seu atendimento efetivo e o direito de representação perante o ATO e inclusive de questionar o ATO que explicará os procedimentos possíveis, caso o contribuinte decida por recorrer a uma decisão do órgão, buscará resolução rápida dos problemas e manterá o contribuinte informado.

Por fim, na Alemanha foi identificado a adoção da defesa preliminar (Anhörung Beteiligter), na qual o contribuinte tem direito à audiência preliminar, que antecede atos administrativos que “impactariam os direitos da parte envolvida” e, também a audiência ao final da fiscalização (Schlussbesprechung) que ocorre após a entrega, pelo contribuinte, de todos os documentos e informações requisitados pelas autoridades fiscais. Caso as autoridades identifiquem alguma irregularidade, a realização da audiência é obrigatória.

O referido estudo demonstra que devemos avançar na melhoria das relações do fisco com o contribuinte e que medidas legislativas, como o PL 17/22, instituindo normas gerais relativas a direitos, garantias e deveres do contribuinte não devem ser considerados como atos contra o fisco e seus agentes, mas sim de equilíbrio, superando ancestrais querelas entre o Estado brasileiro e seus cidadãos.