Transação, reforma e divisão de devedores: saídas para o contencioso tributário

Enfrentar o descontrole do contencioso tributário brasileiro, que hoje já alcança magnitude equivalente a 73% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, segundo dados do Insper, precisa passar necessariamente por uma transformação profunda em inúmeras frentes do sistema tributário nacional.

Em webinar realizado pela Casa JOTA em parceria com Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) nesta sexta-feira (16/10), especialistas e autoridades elencaram algumas das prioridades que podem auxiliar na redução desses litígios.

Dentre elas estão a iniciativa da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional para transações tributárias, que só até agosto deste ano negociou R$ 28 bilhões em dívidas. Os palestrantes também frisaram a urgente necessidade de ampla reforma no tributária, assim como garantir que haja a separação do devedor contumaz do devedor eventual e do bom e do mau contribuinte.

Participaram do webinar João Henrique Grognet; coordenador-Geral de Estratégia de Recuperação de Créditos da PGFN; Breno Vasconcelos, advogado e pesquisador do Insper; Zabetta Macarini Gorissen, presidente executiva do Grupo de Estudos Tributários Aplicados (Getap); e Ana Amélia, ex-senadora.

Foi consenso, e não é novidade, que o grande e principal problema está na complexidade do sistema de cobranças de tributos. “Não existe país rico sem um modelo de jurídico que garanta previsibilidade e segurança. É impossível. E contencioso tributário é gerado na imprevisibilidade. Como que faz o contribuinte e empresário para navegar em um ambiente tão difícil de prever?”, afirmou Breno Vasconcelos.

Segundo o advogado, há alguns fatores que ampliam essa insegurança: possibilidade de retroatividade em novas interpretações, ausência de atos que registrem qual é a interpretação formal e oficial da nova norma tributária, ausência de processos de consulta eficaz, a excessiva duração dos processos, que hoje levam em média 19 anos para conclusão, e as incertezas decorrentes das novas tecnologias. “Esses são os indicados pela OCDE como fatores de insegurança jurídica e o Brasil gabarita todos eles”, apontou Vasconcelos.

A ex-senadora Ana Amélia citou como exemplo da complexidade na cobrança de impostos a realidade de um empresário brasileiro, Jorge Gerdau Johannpeter, do Grupo Gerdau, que tem uma siderúrgica no Rio Grande do Sul e outra igual no Canadá. “No RS, ele tem para a área tributária só para atender as mudanças quase diárias 250 profissionais. Para fazer o mesmo serviço no Canadá, ele precisa de apenas 3 pessoas”.

“Isso ilustra com uma clareza cristalina a situação que nós estamos vivendo. E o investidor estrangeiro, quando olha para nosso país, ele não vê só a questão de competição, mas também essas estruturas arcaicas que nós temos”, completou.

Para Zabetta Gorissen, nos último quatro anos, o Brasil intensificou o entendimento crítico em torno do contencioso tributário, com uma tentativa de aproximar contribuinte, governo, Congresso Nacional e Poder Judiciário. “Infelizmente, o contencioso virou um problema multifacetado, que afeta demais a todos”, disse.

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Neste sentido, a presidente do Getap citou o desenvolvimento de mecanismos de coperative compliance, sempre com foco em aproximar o fisco do contribuinte para resolver com mais facilidade os problemas enfrentados. Zabetta também chamou atenção para “o grande marco” trazido pelas transações tributárias, que são um instrumento de renegociação para extinção do crédito tributário.

De acordo com dados apresentados por João Henrique Grognet, coordenador-Geral de Estratégia de Recuperação de Créditos da PGFN, a renegociação de R$ 28 bilhões em dívidas atingiu 77,4 mil contribuintes e 275 mil inscrições agrupadas em acordos.

“Me parece que foi muito acertado, com largas vantagens na Justiça fiscal. Essa Justiça é boa em qualquer hipótese, mas não estávamos encontrando essa clareza nos programas de Refis anterior. Afinal de contas você dá desconto a quem não precisa”, disse Grognet.

Segundo Zabetta, um ponto que precisa de melhoria na transação tributária envolve o fato de a Lei 13.988/20, que instituiu o programa, ter estabelecido um limite da transação do contencioso de pagamento de 50% do valor da dívida. “Colocar esse limite pode restringir um pouco o apetite da sociedade com relação a essa modalidade. Mas, como a gente sempre disse, vamos aguardar”.

Expectativas para a reforma tributária

O desafio de enfrentar o contencioso tributário é grande, mas na visão dos especialistas e autoridades, este cenário só terá de fato uma mudança a partir da reforma tributária.

“Nada disso vai ser resolver se a gente só trabalhar no contencioso. Precisamos trabalhar na origem. Contencioso é sintoma, não um problema por si só. Ele nasce de um sistema extremamente complexo, cheio de exceções. Uma reforma tributária substancial é essencial para o Brasil sair desse quadro disfuncional e contraproducente”, afirmou o advogado Breno Vasconcelos.

A princípio, essas mudanças não significam automaticamente que não surgirá um novo contencioso, uma vez que haverá uma legislação completamente nova em vigência. Na visão de Zabetta Gorissen, a sociedade deve dar uma “atenção absurda” para que as propostas em tramitação no Congresso Nacional saiam com o melhor texto possível e que eliminem a maior quantidade de contencioso possível.

“Se tiver contencioso, a gente tem que imediatamente voltar para o Congresso e arrumar. Não vamos fazer o que a gente faz hoje. Se não der certo logo de cara, tem que mexer na legislação”, disse.

Devedor contumaz

Para a ex-senadora Ana Amélia, autora do Projeto de Lei do Senado nº 284/2017 para caracterizar o devedor contumaz, quanto mais complicado for o sistema tributário de um país, mais fácil fica a sonegação.

“Neste projeto, estamos separando duas naturezas do contribuinte: um que tem como religião dever contumazmente, dever por ofício, dever por crença. É uma forma de sonegação. É um trampolim da sonegação”, disse, acrescentando que a intenção do PL é tratar de forma diferente contribuintes que têm comportamento diferente.

A ex-parlamentar citou que a caracterização desse tipo de devedor gerou uma briga dentro do Congresso e, por causa desse vazio legislativo, o Supremo Tribunal Federal (STF) entrou no debate. Em dezembro do ano passado, a Corte fixou tese no sentido de criminalizar o devedor contumaz, desde que se comprove dolo de apropriação.

“O STF fez um julgamento elevando a pena para o devedor contumaz de prisão. No nosso caso era uma multa, que tinha muito mais significado educativo do que a questão penal. A Corte deu um tratamento muito mais pesado do que aquele que a gente pretendia na lei”, afirmou Ana Amélia.

Cassação de registro de empresas tabagistas inadimplentes volta à pauta do STF

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) volta a discutir, nesta quinta-feira (17/9), a possibilidade de cancelamento de registro de empresas tabagistas pelo não pagamento contumaz de tributos. Trata-se de um dos assuntos mais importantes dentre os pautados pelo novo presidente da Corte, Luiz Fux, até o fim do ano.

Em setembro de 2018, o plenário do Supremo se debruçou sobre o tema. Oito ministros entenderam ser constitucional a cassação do registro, mas, na ocasião, eram três as linhas diferentes de fundamentação ou argumentação alinhadas a esta visão.

Diante da  complexidade da discussão num processo que tramita na Corte há 13 anos e já acumula oito volumes,  a ministra Cármen Lúcia, então presidente, adiou a proclamação do resultado. Agora, a expectativa é que o voto de Cármen Lúcia seja entendido como o médio e dê os contornos à proclamação.

A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 3952 chegou a voltar à pauta do plenário em 19 de outubro de 2019 e 12 de março de 2020, mas acabou não sendo apregoada. Diante dos seguidos adiamentos, a Corte passou a receber pedidos para que a proclamação fosse concluída logo.

A ação, proposta pelo Partido Trabalhista Cristão (PTC), contesta o “cancelamento sumário” pela Receita Federal do registro especial das empresas tabagistas quando houver inadimplência de tributos federais. O partido alegava que a restrição ao exercício de atividade econômica ou profissional lícita constituiria sanção política vedada pela Constituição, na medida em que não se admite a existência de “instrumentos oblíquos” para coagir ou induzir o contribuinte ao pagamento de tributos .

Em síntese, alegava que o artigo 2º do Decreto-Lei nº 1.593/77, com a redação dada pela Lei 9.822/1999, violaria os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência, da liberdade de iniciativa e da proporcionalidade. Segundo o partido, a sanção imposta às empresas de cigarro não atingiria o fim almejado, que é o pagamento de tributo ou de contribuição.

Edson Vismona, presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), que é amicus curiae na ação, defende que, na verdade, a cassação é medida adequada para aqueles que, segundo ele, estruturam um empreendimento com o fim de lesar o Fisco para lucrar. Na medida em que assim agem, não se deveria contar com uma possibilidade de recuperação do imposto devido.

“Tem devedores contumazes com dívidas de milhões. A ação corrosiva do devedor contumaz fica muito clara. E não se pode mais protelar. E esse é o verbo preferido do devedor contumaz. ele existe para protelar, não ter decisão, cassação e ele continuar livre e solto, seguir sonegando. A cassação é importante porque impede a continuidade de um delito criminoso e que afeta toda a concorrência”, enfatiza Vismona.

Devedor contumaz é a empresa que declara possuir uma dívida tributária, mas de forma reiterada e premeditada não age para quitá-la. Como o empresário não sonega, apenas não paga o imposto devido, em tese, não comete um crime. Mas, deixa a concorrência para trás, já que o não pagamento dos tributos impacta positivamente o preço dos produtos, que ficam artificialmente mais baratos.

O trabalho para recuperar os montantes devidos é, segundo Vismona, hercúleo. E, com o tempo, tende a ficar ainda mais dificultado. “É um processo contínuo para o Fisco. A cassação não impede que a ação se repita, porque esses grupos abrem novos CNPJs, têm uma estrutura em torno disso. Mas temos de cercá-los, diminuir o espaço que tem.”

A definição final da ADI 3.952 consolida um precedente importante e, na visão do ETCO, fortalece a atuação do Congresso para legislar sobre o combate aos devedores contumazes. Dois projetos de lei em tramitação no Congresso contêm critérios para detectar e punir empresas que se valem desta prática: o PLS 284/2017 e o PL 1646/2019. O primeiro, por exemplo, diferencia o devedor contumaz do eventual — justamente uma das preocupações de quem acompanha o debate. Mas, no Parlamento, a discussão está parada.

O advogado constitucionalista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Gustavo Binenbojm atua na causa pelo Sindicato da Indústria do Fumo no Estado do Rio Grande do Sul (Sindifumo-RS). De acordo com ele, “a cassação se dá diante da circunstância especial de que essa é uma indústria que a tributação é tão elevada que não basta o Fisco ter à sua disposição os instrumentos tradicionais para cobrança, penhora de bens”.

Nesses casos, avalia Binenbojm, o que se tem é a constituição de empresas que vivem da sonegação fiscal e “por meio dela distorcem o mercado porque oferecem valores muito inferiores aos economicamente viáveis para uma competição justa”.

Desta forma, o dano comercial provocado pela ação é irreversível. Nesse contexto, o fato não se enquadraria na jurisprudência do Supremo de não permitir o que se chama de sanção política. Como regra, não se permite que haja efeitos extrafiscais para o não pagamento de tributo. Mas, neste caso, o entendimento é o de que o Estado não dispõe de outros meios para combater a prática.

“O Direito funciona a partir da realidade. Não é uma abstração filosófica. O argumento de que se fechar a empresa, aí mesmo é que não vai ter como pagar não se coloca com empresas que abrem e fecham e criam novos CNPJs para praticar o mesmo ilícito. A única forma de estancar a sangria e evitar novos danos é impedir a continuidade da ação”, disse.

Binenbojm lembra o caso em que o Supremo autorizou a prisão por dívida de ICMS declarado, mas não pago. “Agora não envolve privação à liberdade. Mas o direito de a pessoa praticar atividade econômica ou não. Se o STF validou a prisão, muito mais grave, por maior razão deve validar a cassação do registro de empresas com intenção inerentemente ilícita”, ressalta.

No fim de 2019, o plenário do Supremo, por sete votos a três, definiu a tese de que o contribuinte que deixa de recolher o ICMS pratica crime desde que haja dolo e de forma contumaz. Na ocasião, a Corte julgou o RHC 163.334 impetrado pelos proprietários de lojas de roupas em Santa Catarina denunciados por não recolher ICMS entre 2008 e 2010. Venceu o voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, que incluiu o critério da contumácia para a construção da tese proposta — alterando a sugestão inicial, sem a expressão.

As correntes de voto

O julgamento teve início em 2010 e foi suspenso após pedido de vista de Cármen Lúcia. Na ocasião, o relator, ministro Joaquim Barbosa, votou pelo provimento parcial da ADI, para conferir aos dispositivos normativos impugnados interpretação conforme a Constituição Federal, estabelecendo as seguintes condições para que a cassação do registro das empresas aconteça: a análise do montante dos débitos tributários não quitados; o atendimento do devido processo administrativo tributário na aferição da exigibilidade das obrigações tributárias e o exame do cumprimento do devido processo legal para aplicação da sanção.

Cármen Lúcia acompanhou Barbosa. Segundo a ministra, essa interpretação “equaliza os princípios da livre iniciativa econômica lícita, da livre concorrência, conciliando com a garantia do devido processo legal tributário e da inafastabilidade da jurisdição, com o dever do contribuinte de cumprir suas obrigações tributárias”. Acompanharam esse mesmo entendimento a ministra Rosa Weber e o ministro Celso de Mello.

O ministro Alexandre de Moraes defendeu que a empresa deve continuar funcionando até que o secretário da Receita Federal julgue o recurso por ela apresentado. Assim, ele votou no sentido de excluir a expressão “sem efeito suspensivo” do parágrafo 5º do artigo 2º da norma, mantendo o restante da lei. Segundo o ministro, a norma, com as alterações feitas pela nova legislação (Lei 12.715/2012), prevê as condicionantes propostas pelo relator da ação. Os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes acompanharam a corrente aberta por Moraes.

Uma terceira linha foi aberta por Fux. Ele afirmou que a opção do legislador deve ser obedecida e votou pela improcedência do pedido. “Se o legislador entendeu que a medida tem que ser severa, ele tem expertise melhor do que a nossa para saber se um efeito suspensivo não posterga uma atividade ilícita”. Além disso, para Fux, a medida do cancelamento do registro não impede de modo definitivo a atividade econômica da empresa, que poderá ser estabelecida desde que cumpridas as exigências legais. “A liberdade de iniciativa quando exercida de forma abusiva deixa de merecer a tutela do ordenamento jurídico”, concluiu.

Único a votar pela total procedência do pedido do PTC, e consequentemente contra a constitucionalidade da cassação dos registros das empresas, o ministro Marco Aurélio ressaltou que a norma impugnada compele a empresa devedora do tributo, não importando o valor devido, à satisfação do débito tributário. “O preceito não se refere a devedor eventual, reiterado ou devedor contumaz, não há distinção. Contenta-se o dispositivo atacado, para chegar-se a esse ato extremo da cassação do registro, com o inadimplemento puro e simples”, disse.

Os ministros Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso se declararam impedidos e o ministro Luiz Edson Fachin não votou por ter assumido a cadeira de Barbosa.