REVISTA ETCO – EDIÇÃO 27
DEZEMBRO, 2021
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O jovem Marcílio Marques Moreira

Uma homenagem do ETCO ao ex-presidente do nosso Conselho Consultivo, escrita pelo jornalista e diplomata Pedro Luiz Rodrigues*

Por Pedro Luiz Rodrigues*
24/11/2021

Ao completar Marcílio Marques Moreira 90 anos, pareceu-me propício rememorar, ainda que em traços largos, as etapas iniciais de sua trajetória profissional, pouco conhecida mesmo de seus amigos.
Este esboço cobre seus passos do final de 1954 – quando, aos 23 anos, ingressou na carreira diplomática – a dezembro de 1976, quando, aos 45 anos, era vice-presidente do Unibanco e diretor do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Rio de Janeiro, além de vigoroso defensor dos princípios da democracia e do liberalismo.

Marcílio entrou na carreira bem preparado. Não só dominava o inglês e o francês, como era fluente no alemão, aprendido nas escolas em Viena e em Berna, onde servira seu pai, o embaixador Mário Moreira da Silva. Tivera, desde cedo, contato com ilustres frequentadores da casa paterna: Clarice Lispector, Raul Bopp e Antônio Houaiss. No Instituto Rio Branco foi o 1º colocado, no concurso de acesso e no curso. Em 1957, bacharelou-se em Direito.
Seguindo a inclinação do pai por assuntos econômicos, Marcílio foi lotado inicialmente na Divisão Econômica e Comercial do Itamaraty, que chefiara Mário anos antes. Seus primeiros chefes foram Antônio Corrêa do Lago e Edmundo Barbosa da Silva.

Por dois anos, participou do processo de criação de um sistema multilateral de pagamentos com países europeus, em substituição ao das faixas bilaterais que tanto limitaram nosso comércio no pós-guerra. Fato pitoresco: Marcílio, em dado momento, atuou como tradutor de alemão, autorizado pelo chefe, depois de perceber imprecisões graves cometidas pelo tradutor contratado.

Em dezembro de 1956, o Jornal do Brasil registrou o casamento de Marcílio e Maria Luiza, na Igreja Abacial do Mosteiro de São Bento. Na cerimônia religiosa, os padrinhos de Marcílio foram o embaixador Paulo Leão de Moura e sua esposa; os de Maria Luiza, o historiador João Camillo de Oliveira Torres e Yara Moreira da Silva. Na cerimônia civil, foram testemunhas os pais do noivo e o escritor José Barreto Filho e sua mulher, Valquíria. A recepção teve lugar na residência da mãe da noiva, viúva Luiz Camilo de Oliveira Neto. Em 9 de março de 1957, o casal seria removido para Washington.

Washington, a equipe

Chefiava então nossa Embaixada em Washington Ernani do Amaral Peixoto, figura de relevo no cenário político, casado com Alzira Vargas, filha de Getúlio. Serviam lá, também, Henrique Vale, Ramiro Saraiva Guerreiro (futuro Chanceler), Maury Gurgel Valente (marido de Clarice Lispector), Francisco de Assis Grieco e Miguel Osório de Almeida. Entre os mais jovens, a equipe do setor econômico: os secretários Jorge de Seixas Corrêa, Oswaldo Castro Lobo, Geraldo Cavalcanti (que entraria em 2010 para a Academia Brasileira de Letras) e o oficial de Chancelaria Zeuxis Neves.

Estes produziam, com muito empenho, o anuário Brazil Survey, sobre a conjuntura brasileira, em inglês, cujas edições eram disputadíssimas por órgãos do governo americano, empresas e universidades. Elaboravam, também, estudos sobre setores-chaves do comércio, dos investimentos e do turismo. Marcílio participou dos dois projetos, respondendo pela área de investimentos. Seu trabalho foi apreciado, merecendo referência elogiosa de Amaral Peixoto, em palestra (junho de 1958) na Associação Comercial do Rio de Janeiro.

Durou pouco, contudo, o Brazil Survey, editado apenas de 1958 a 1960, tendo sido o último número obra de equipe integrada pelos diplomatas João Paulo do Rio Branco, Oswaldo Lobo, Ronaldo Costa, Otávio Rainho Neves e Sérgio Paulo Rouanet, amicíssimo de Marcílio.

Em Washington, Marcílio e Maria Luiza adotaram estilo de vida frugal. No começo locomoviam-se de ônibus, até que chegou o Fusca 1200, importado da Alemanha. Decidiram também não alugar uma casa, mas comprá-la, a longo prazo e taxas baixas, dando como entrada a ajuda de custo recebida para a remoção. Fora uma sugestão do amigo Maury Gurgel Valente. Começavam, assim, a formar seu patrimônio.

Saindo de reunião no Palácio do Planalto nos anos 1980

Incansável no trabalho e no estudo, Marcílio somaria às suas responsabilidades na Embaixada, um curso de mestrado em Ciências Políticas na reputadíssima Universidade de Georgetown. Fê-lo com vagar, uma ou duas cadeiras por semestre, concluindo-o em 1963, ano de seu retorno ao Brasil. Em Georgetown (a mais antiga instituição católica de educação superior dos EUA), teve como principal inspirador o professor Heinrich A. Rommen, um jurista alemão, opositor católico ao nazismo – o que o levou a fugir da Alemanha e asilar-se nos Estados Unidos – e pensador ético social de renome.

A decisão de Marcílio de estudar foi acompanhada por outros colegas e amigos. Rouanet entrou para a mesma Georgetown. Ronaldo Costa e Oswaldo Lobo optaram pela American University. Um grande amigo, que nada tinha a ver com o Itamaraty, Olympio Faisol Pinto – que depois se tornaria um famoso cirurgião-dentista no Rio – entrou também em Georgetown. Maria Luiza, por sua vez, embora já tivesse concluído a Cultura Inglesa, aprofundou-se no estudo do inglês.

Aumentam as tensões

Foram anos agitados aqueles, na Embaixada e no Brasil. O País crescia aceleradamente, mas tinha suas contas externas fragilizadas, tanto em razão dos baixos preços do café, quanto do sorvedouro de divisas em que se havia convertido o Plano de Metas de JK. Cabia, então, à Embaixada, assegurar do governo americano o apoio de última instância.

No início de 1958, o governo brasileiro recorreu ao americano (via Eximbank), em busca de apoio financeiro (US$ 300 milhões). Foi-nos exigido o aval do Fundo Monetário Internacional (FMI), mas a missão que este enviou ao Brasil – como informou a Embaixada ao Itamaraty, em 31 de março – “encontrou uma situação ainda mais grave do que se supunha”. O dinheiro não saiu e um impasse foi criado, culminando no “rompimento” de JK com o FMI. Pouco depois chegava Roberto Campos a Washington, com instruções para retomar as negociações.

No mesmo ano, o governo brasileiro proporia ao americano o lançamento da Operação Pan-americana (OPA), um programa para canalizar recursos para o desenvolvimento dos países da América Latina. Para o Brasil seria vantajoso, pois poderia receber recursos, sem condicionalidades, embora sobre isso nunca tivesse sido feita referência explícita. Toda a América Latina se mobilizou, mas os americanos não se entusiasmaram. Marcílio chegou a participar de algumas reuniões do “Comitê dos 21” da OPA, que a nada levaram. De concreto, mesmo, só a criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em abril de 1959.Essa rodada de negociações foi uma de tantas que tiveram lugar em Washington nos seis anos em que lá Marcílio permaneceu. Todas seguindo um enredo repetido, com os seguintes movimentos:

▪ Necessitado de dólares, o governo brasileiro recorria ao americano, ao FMI ou aos bancos, como ocorreu com JK, em 1958-1959; com Jânio, em 1961; e, em 1963, com João Goulart.

▪ O Fundo requeria do Brasil um programa de ajuste, cuja execução seria aferida pela ida de uma missão técnica ao Brasil. Esta, ao voltar, produzia um relatório desfavorável, bloqueando as negociações. Foi o que ocorreu com o Programa de Estabilização Monetária (PEM), de JK, e com os programas de ajuste de Jânio e João Goulart.

Nessa época, somente um acordo (stand-by) foi alcançado com o Fundo, em maio de 1961, diante de inédita pressão das autoridades americanas sobre aquela instituição.

Marcílio Marques Moreira acompanhou todas essas negociações, nas quais brandiam-se argumentos econômicos e políticos, e presidentes trocavam visitas e muitas cartas. Eisenhower foi ao Brasil ver JK. Kennedy recebeu Jânio e Goulart, e abriu sua agenda para San Tiago Dantas. Nesse processo, Marcílio granjeou o respeito profissional das partes envolvidas e adquiriu extraordinária experiência em negociações complexas e de alto nível.

Em 1958, publicou, em inglês, um trabalho sobre as Bulas do Papa Alexandre VI, ressaltando a diferença entre as fronteiras móveis com que lidavam os pioneiros americanos, e a fronteira fixa, herdada pelos brasileiros, pelo Tratado de Tordesilhas.

Em 1989, dando entrevista como embaixador do Brasil em Washington

Em 22 de dezembro de 1962, dias antes do plebiscito que restauraria o presidencialismo no Brasil, Roberto Campos ligou, à noite, para John King, Subsecretário de Assuntos Interamericanos, protestando contra campanha de imprensa que o governo americano estaria articulando contra Goulart. King deixou registrado que “mais tarde ligou-me o segundo secretário Marcílio Moreira, da Embaixada brasileira, para discutir o que chamou de situação perigosa que se vai construindo no exato momento em que temos as melhores esperanças de uma definitiva melhora em nossas relações e fez também referências a comentários negativos que agências noticiosas vinham propagando sobre o estado das relações Brasil-Estados Unidos”. Marcílio também lhe dissera que o embaixador Roberto Campos começava a se sentir boicotado pelo governo americano, por não mais ter acesso aos Secretários de Estado e do Tesouro.

1963, na Fazenda com San Tiago Dantas

Período curtíssimo na vida profissional de Marcílio Marques Moreira, mas talvez o que lhe tenha deixado as mais gratas recordações, foram os quatro meses – no primeiro semestre de 1963 – em que trabalhou como assessor do Ministro da Fazenda, San Tiago Dantas. Este, apenas empossado, tomara medidas drásticas de ajuste. Em Washington, Campos e Marcílio movimentaram-se e lograram liberar um “interim aid” de 30 milhões de dólares, há muito prometido pelos EUA.

Em março de 1963, San Tiago Dantas foi a Washington, onde, por três semanas, reuniu-se com diversas autoridades americanas, inclusive com o próprio presidente Kennedy, a quem entregou carta de Goulart. Desse encontro Marcílio participou. O sucesso da visita pode ser avaliado pela liberação de empréstimo de cerca de US$ 400 milhões, dos quais 84 milhões de imediato. O restante teve sua liberação condicionada à avaliação que faria a missão do FMI.

De volta ao Brasil, San Tiago Dantas anunciou medidas adicionais de ajuste, inclusive uma desvalorização cambial de 30%; assinou um acordo comercial com a União Soviética, de 585 milhões de dólares, e obteve solução definitiva no caso da desapropriação da empresa Amforp. Mas encontrou um ambiente político envenenado pela radicalização. San Tiago foi à televisão explicar o acordo com os americanos. Numa dessas entrevistas, referiu-se à existência, no Brasil, de duas esquerdas: a “positiva”, da qual ele faria parte, e a “negativa”, dos que trabalhavam contra o País. Noutro programa, produziu a frase tão cara a Marcílio:“Não faz o Fundo boa figura como moinho de vento, para que nós partamos contra ele de lança em riste, sem primeiro identificar a sua verdadeira natureza e compreender o alcance do que com ele pretendemos acertar.”

Era tarde, porém. Quando a missão do FMI chegou ao Brasil, em maio, o plano já fazia água. O resultado foi um parecer negativo, que interrompeu as negociações da dívida externa iniciadas por Jânio. Jango afastou Celso Furtado da pasta do Planejamento e aceitou, em 20 de junho, o pedido de demissão de San Tiago Dantas, por razões de saúde.

Em 1963, Marcílio concluiu o curso de mestrado em Ciência Política na Universidade de Georgetown, em Washington, com a tese Algumas Pré-Condições Sociais e Políticas ao Crescimento Econômico.

Assessor no BNDE (1963-1965)

Marcílio foi convidado pelo novo ministro, Carvalho Pinto, para permanecer na função, mas não aceitou. Fez um “swap” com seu colega, o diplomata Ronaldo Costa, que tinha sido convidado para o BNDE. Veio este para a Fazenda, e seguiu Marcílio para o BNDE, como assessor-geral do Departamento de Operações Internacionais.

A atuação de diplomatas fora do Itamaraty já se tornara habitual, tendo muitos desses contribuído para idealizar e executar nossa política econômica de desenvolvimento, entre os quais Otávio Dias Carneiro, Roberto Campos, João Batista Pinheiro, Antônio Corrêa do Lago, Benedito Moreira Fonseca, Evaldo Correia Lima, Miguel Ozorio de Almeida, podendo também Marcílio ser considerado – embora mais jovem do que os demais – como integrante do grupo.

No BNDE, o setor de Marcílio cuidava dos Acordos de Empréstimo, firmados com agências tais como o Eximbank e a AID, que incluíam os chamados “Acordos do Trigo”, com os EUA. Foram cursadas, também, negociações com o BID e com o Instituto de Crédito para a Reconstrução da República Federal da Alemanha, para o fomento industrial. Marcílio supervisionou, igualmente, a criação do mecanismo das moedas-convênios para o comércio entre o Brasil e os países da Europa Oriental e atuou na captação de 4 milhões de dólares do BID, para o aprimoramento de centros nacionais de pós-graduação.

Em fevereiro de 1964, Marcílio participou das reuniões preparatórias para Primeira Conferência de Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), tendo sob sua responsabilidade o tema dos financiamentos. Em março, seguiu para Genebra, onde se encontrava quando, no dia 31, Goulart foi deposto. Sobre esse momento, Marcílio diria que a despeito de o governo militar buscar romper com as posturas da “política externa independente”, não houve mudança na orientação da delegação brasileira. Houve, sim, uma ciranda de nomes na chefia da delegação: Araújo Castro, Jaime Azevedo Rodrigues, Octavio Dias Carneiro, Alfredo Valadão e, finalmente, Edmundo Barbosa.

No Brasil, Marcílio integraria, também, as comissões que negociaram o acordo de garantia de investimentos entre Brasil e EUA, e o acordo de compra, pelo governo, das subsidiárias da American Foreign Power Company (Amforp). Esta última comissão havia sido criada no governo Goulart e resultara de gestões da missão de San Tiago Dantas a Washington, em março de 1963.

Por essa época Marcílio recebeu convites para lecionar, e começou a dar aulas na PUC-Rio e no Instituto Rio Branco, onde foi professor de economia internacional de dez turmas de diplomatas. Produziu, ainda, interessante avaliação sobre a Nacional Financeira do México, publicada em dezembro de 1964 na revista do BNDE, e o artigo “A América Latina entre a Revolução e a Aliança”, em fevereiro de 1965, no Jornal do Brasil.

Na Guanabara, idealismo em ação (1965-1968)

Em dezembro de 1965, Marcílio Marques Moreira foi convidado pelo governador da Guanabara, Negrão de Lima, para a vice-presidência da Copeg (Companhia Progresso do Estado da Guanabara), empresa pública responsável pelo planejamento e desenvolvimento econômico do novo Estado.

Nessa função, buscou soluções para reverter o declínio industrial da cidade-Estado, que se acentuara depois da transferência da capital federal para Brasília. Entre essas, encampou três com mais vigor: orientar a expansão industrial da cidade-Estado para a Zona Oeste; criar um banco estadual de desenvolvimento, e “last but not least”, mudar a política do tratamento das favelas no Estado. Com esse fim, criou o Grupo de Trabalho (GT) 3881, dirigido pelo jornalista Sílvio Ferraz.

Ferraz ficou incumbido de coordenar os estudos de viabilidade para a urbanização das favelas de Mata Machado, Morro União e Brás de Pina. O levantamento de dados foi feito pela PUC-Rio e pela Escola de Medicina. A etapa seguinte se daria com a criação da Codesco – Companhia de Desenvolvimento das Comunidades –, anunciada no final de 1967 por Marcílio, que assumiria sua presidência.

A Codesco, subsidiária da Copeg, atuaria como mediadora entre o Banco Nacional de Habitação (BNH) e o governo estadual para a condução, de forma inovadora, da questão das favelas, “deixando os favelados próximos de seus locais de trabalho, integrando-os na comunidade adjacente e dando-lhes o direito de escolher o tipo de unidade de sua residência”, disse Marcílio ao anunciar a criação da empresa.

Caminhando pela praça dos Três Poderes nos anos 1980

A proposta da urbanização participativa de favelas – da qual Brás de Pina serviu de modelo – representava um desafio, por colidir com a visão generalizada de que a solução única para o “problema” era a remoção de sua população para conjuntos habitacionais distantes. Para Marcílio, a favela seria sociologicamente mais bem estruturada do que um conjunto habitacional. No caso de Brás de Pina, o espírito de comunidade ficara patente, quando, em 1965, seus moradores conseguiram evitar a remoção e, unidos, propuseram um plano de urbanização financiado por eles mesmos.

A Codesco deve ser compreendida como a consolidação, na órbita do Estado da Guanabara, do trabalho do sociólogo José Artur Rios e da Igreja Católica, origem do Projeto Mutirão, de curta duração, no governo Lacerda (que precedeu ao de Negrão de Lima).

O trabalho foi executado em parceria entre a Codesco – presidida por Marcílio, sendo Sílvio Ferraz o responsável pelo projeto específico, com o apoio da arquiteta Gilda Blank – e o Quadra, grupo integrado pelos arquitetos Carlos Nélson Ferreira dos Santos, Sílvia Wanderley e Rogério Aroeira. Como os trabalhos se desenvolviam em consulta permanente com as comunidades, para Brás de Pina muitas vezes seguiu Marcílio nos fins de semana, levando as filhas pequenas, que adoravam o programa.

A experiência despertou grande interesse no Brasil e no exterior. O arquiteto e urbanista John Turner, que fazia trabalho nas “barriadas” de Lima, no Peru, entusiasmou-se com a experiência, tendo declarado, em evento no Instituto dos Arquitetos do Brasil: ”Mostraram-me soluções que são problemas e problemas que são soluções”.

Marcílio também levou a Brás de Pina o economista e padre dominicano Louis-Joseph Lebret, fundador do movimento Economia e Humanismo, que propunha a ampliação da compreensão e o planejamento de reforma para melhorar as condições das classes mais pobres.

Mas a personalidade estrangeira fundamental em Brás de Pina foi o padre espanhol Artola, que viera para o Brasil cuidar da Obra Social da Irmandade de Santa Edwiges, naquela comunidade, e que ajudou a construir os laços de confiança entre os residentes e a Codesco.

Os planos de Marcílio deram certo em Brás de Pina, mas não prosperariam nas demais experiências. Certos fatores contribuíram para esse resultado. Primeiro, passou a operar na mesma área uma entidade federal, mais bem aquinhoada financeiramente: a Chisam (Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio), que trabalhava com a tradicional visão “remocionista” das favelas. Além do mais, deixou de prevalecer a harmonia inicial no relacionamento Codesco-Copeg, tendo esta sido cerceada em termos orçamentários.

Sobre o assunto, Sílvio Ferraz diria, anos depois, em entrevista, que a existência simultânea da Codesco, em nível estadual, e da Chisam, no federal, era contraditória, e lembrou que o governador Negrão de Lima lhe dissera que podia urbanizar (as favelas), desde que não alardeasse sobre isso, para não provocar o governo federal.

Em 1968, Marcílio proferiu palestra na Universidade do Estado da Guanabara – da qual, no mesmo ano, assumiu a direção do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos – na abertura do curso “Maquiavel e os Primórdios do Pensamento Político Moderno”. Assumiu, também, a diretoria financeira do Museu de Arte Moderna do Rio.

Marcílio, no Unibanco (1968-1983)

No final de 1968, aos 37 anos, Marcílio deu importante guinada em sua vida profissional, ao aceitar convite do banqueiro Walter Moreira Salles para assumir uma vice-presidência do Unibanco, uma das mais respeitáveis e dinâmicas casas bancárias da época. Convivera com Moreira Salles quando este foi, pela segunda vez, embaixador em Washington (1959-1960) e, depois, como negociador da dívida externa, em 1961, no governo de Jânio Quadros.

Quando assumiu o novo cargo, o Brasil vivia etapa política delicada, tendo sua transferência para o banco praticamente coincidido com a emissão do Ato Institucional nº5 (AI-5), que autorizava o presidente da República a decretar o recesso do Congresso, intervir em Estados e municípios, cassar mandatos parlamentares, suspender direitos políticos, entre outras medidas.

Além de atribuições na área de atuação internacional do banco, Marcílio foi-se tornando mais “visível” à opinião pública, por intermédio de entrevistas e palestras (processo que iniciara quando na Copeg), nas quais atuava não apenas como porta-voz do Unibanco, mas como diretor do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais da Universidade do Estado da Guanabara (UEG).

Em 1969, foi nomeado pelo governo da Guanabara para integrar a Comissão do Ano 2000, juntamente com seu amigo Arnaldo Niskier. Outros registros: reuniões do Conselho da UEG; a presença em almoço que Austregésilo de Ataíde ofereceu a Nelson Rockefeller, onde compartilhou mesa com Cândido Mendes, Danton Jobim, Luiz Alberto Bahia, Alceu Amoroso Lima e Manuel Francisco do Nascimento Brito, entre outros. Em 18 de julho, compareceu à missa de sétimo dia pela alma de Júlio Mesquita filho, diretor-presidente do Estadão.

Em março de 1970, publicou artigo de grande repercussão no Jornal do Brasil: “Mercado Financeiro e Segurança Nacional”, onde salientou “que mais importante para o desenvolvimento do que o acúmulo de capital ou o avanço tecnológico, é a confiança da sociedade no futuro do País e a consequente determinação de torná-lo realidade”. Segundo Marcílio Marques Moreira:
“Desde as lições de Maquiavel em seu Príncipe e nos Discursos sobre a Década, de Tito Lívio, que nesse ponto ainda nada perderam de atualidade, tornou-se um truísmo que a segurança de qualquer país repousa na confiança de seus cidadãos. Nenhum complexo financeiro, por mais forte e grande que seja, é capaz de resistir ao ataque simultâneo de todos os seus depositantes tomados de súbita desconfiança, como nenhum Governo resistiu na história – por mais democrático ou totalitário que fosse – a uma retirada súbita do apoio de todos os seus governados. […] Será, pois, sob o prisma da confiança que procuraremos examinar as perspectivas da economia brasileira.”

Em 1971 Marcílio continuava a ser procurado pela imprensa para falar sobre o Rio de Janeiro. Numa delas, refere-se ao Rio como portador de “uma vocação insofismável para ser o centro universitário, cultural e artístico do Brasil, e que essa é uma função primordial para o processo moderno de desenvolvimento”. Marcílio, apontado como “um dos estudiosos dos problemas da Guanabara”, propõe soluções para seus problemas econômicos e sociais. No II Painel de Debates sobre o Plano de Ação Integrado (Guanabara-Rio), declara que “os cariocas devem tomar consciência de que não somos mais Distrito Federal, mas um Estado autônomo, com problemas particulares a resolver”.

Em 25 de novembro de 1971, data de seu 40º aniversário, Marcílio Marques Moreira lança o livro Indicações para um projeto brasileiro, obra na qual procurou refletir sua “experiência, observação crítica e meditação teórica” quanto a fenômenos que envolvem os problemas do desenvolvimento do País.
O Unibanco crescia e Marcílio passava a integrar a direção ou o Conselho Consultivo de empresas tais como o Banco de Investimento do Brasil (BIB), o Condomínio Deltec, o Grupo Crescinco, a Credibrás, o Garantia União Seguradora.

Em 1972, dedicou-se às gestões internacionais que resultaram na compra do banco Bandeirantes, ao qual a Caixa Geral de Depósitos de Portugal era acionista. No mesmo ano, o BIB associou-se ao Daiichi Kangio, do Japão.

Em 1973, participou de conferências na Fundação Getulio Vargas (“Pleno emprego e alocação ótima de recursos materiais numa economia dualista”) e, na Escola Superior de Guerra, expôs sobre “Diplomacia, Política de Força e Política de Poder”.

Em 1974, primeiro ano do governo Geisel, intensificou-se substancialmente a agenda pública de Marcílio. Organizou, na UEG, alguns seminários como “Ecologia e Desenvolvimento” (em janeiro), onde observou “não ser a pura e simples difusão das chaminés que contamina o ar, mas o crescimento desordenado das fábricas sem as indispensáveis pesquisas de localização das unidades para a proteção do ambiente”.

Em outras entrevistas e palestras tratou de temas tais como o da educação profissionalizante: “A educação deve desenvolver a capacidade de pensar, de criar e de comunicação. Com essas três aptidões o aluno não encontrará dificuldades em aprender uma profissão”; a fusão dos Estados do Rio e da Guanabara; agricultura e alimentação: “o futuro será marcado mais profundamente por uma demanda insatisfeita de alimentos do que pela escassez de combustíveis” e “(…) uma simples mudança de mentalidade, de métodos gerenciais, e o apoio financeiro à produção podem dar uma virada muito grande no setor agrícola, que sempre foi muito negligenciado no desenvolvimento brasileiro. Esta negligência pode ser verificada até pela imagem do Ministério da Agricultura, muito marginalizado, esquecido e que não controla nem os setores mais importantes de sua área, como o café, o açúcar ou o financiamento da produção”. Ainda em 1974 Marcílio tornou-se membro do Conselho do BNDE.

Em 1992, quando era ministro da Economia, Fazenda e Planejamento

Igualmente intensa foi sua agenda pública em 1975. Abriu ciclo de conferência na UEG: “energia e ecologia estão intimamente relacionadas com a qualidade da vida, que deve ser um objetivo permanente. Seria extremamente penoso se depois de várias décadas de sacrifícios chagássemos à conclusão de que passamos de país subdesenvolvido para a de pais mal-desenvolvido”; escreveu artigo sobre educação: “Temos de deixar de encarar a educação como mera atividade escolar e começar a perceber que tão importante quanto o desenvolvimento é a preparação do homem para o conhecimento e as técnicas básicas do viver. Torna-se urgente uma abertura da educação no Brasil, que está muito mais voltada para o passado do que para as tendências futuras”; sobre os vínculos entre política e economia: “Não há, entretanto, um determinismo entre um modelo político e o desenvolvimento econômico. Autoritarismo, por exemplo, não é idêntico a desenvolvimento econômico. Se o fosse, estaríamos assistindo hoje na Rússia a um crescimento fantástico. O que se sente, porém, é que o regime, embora bem sucedido numa fase, acabou se transformando num
passivo oneroso para a sociedade”.

Revelação surpreendente na Coluna do Zózimo, no Jornal do Brasil de 25 de setembro de 1975: “Trata-se Marcílio Marques Moreira de um notório sambista.”

Em 1976, último ano desta cronologia, Marcílio já havia se convertido num dos mais influentes e respeitados defensores do retorno do Brasil à democracia, além
de reputado analista de uma economia que em breve enfrentaria o segundo choque do petróleo (1979) e ingressaria numa grave crise de balanço de pagamentos na década seguinte.

Em 30 de maio, nota editorial n’O Estado de S. Paulo daria o tom do momento:
“Quem se entusiasmou pela proeza ambígua do regime brasileiro, conseguindo a estabilidade social enquanto deixa arrastar-se indefinidamente a instabilidade institucional, pode preparar-se para pagar bem cedo o preço dessa euforia inconsiderada: inabalável, o regime tornou-se também sem atrativos. Sobre o hiato das gerações modela-se um vazio de poder porque as gerações emergentes voltam as costas à política, embora cultivem uma vocação política. A Arena (partido do governo) acabou de ouvi-lo, sem meios tons, do diretor do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Rio de Janeiro, professor Marcílio Marques Moreira, no seminário promovido pela Fundação Milton Campos.”

Na mesma palestra, fez magistral defesa do liberalismo:

“O liberal, hoje, é considerado com desconfiança, tanto pela esquerda quanto pela direita. Ele é mesmo considerado um homem obsoleto, a quem falta pragmatismo, a quem no máximo se presta o testemunho da nostalgia. Entretanto, e as sociedades mais vitais o mostram, como a norte-americana, o liberalismo, ao colocar o desenvolvimento humano no centro de sua preocupação, tanto política quanto econômica, é uma força latente de grande vigor e grande importância para que as sociedades não caiam num estágio de entropia e de falta de criatividade.”


* Pedro Luiz Rodrigues é jornalista e diplomata de carreira. Serviu nas Embaixadas do Brasil em Daca, Washington, Assunção, Buenos Aires, Tel-Aviv e Paris. Foi embaixador do Brasil na Nigéria. Foi repórter de economia do Jornal do Brasil e d’O Estado de São Paulo, e diretor da sucursal de Brasília deste último. No governo foi porta-voz do Itamaraty, de Marcílio (na Embaixada em Washington e no Ministério da Economia) e de dois ministros da Fazenda (Ernane Galvêas e Pedro Malan). Foi nomeado subsecretário de imprensa do presidente Tancredo Neves, secretário de imprensa do presidente Fernando Collor e diretor internacional da Presidência do Senado. No setor privado, foi sócio da Flecha de Lima Relações Institucionais e diretor de comunicação da Febraban. Integra o Conselho Consultivo da Campo e escreve regularmente no Diário do Poder.

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